quarta-feira, 16 de maio de 2018

Titulares do poder não podem intervir com base em estados de alma


O enunciado em epígrafe vem a propósito dos desenvolvimentos dos últimos dias em torno da invasão da academia do Sporting Clube de Portugal.
Com efeito, ontem, dia 15 de maio, à tarde, a equipa principal do Sporting cumpria o primeiro treino da semana, depois da derrota no terreno do Marítimo (2-1), que relegou a equipa para o 3.º lugar da I Liga, iniciando a preparação para a final da Taça de Portugal, no domingo, dia 20, frente ao Desportivo das Aves.
Entretanto, a Academia do Sporting, em Alcochete, foi invadida por várias dezenas de ditos adeptos ‘leoninos’ (segundo o jornal desportivo Record foram cerca de cinco dezenas), que surgiram a correr, de cara tapada e tentaram impedir os jornalistas de filmar. Todavia, após terem chegado à zona dos relvados e ao balneário da equipa principal, saíram do local ao fim de 15 minutos, sem que a polícia tivesse intervindo.
De acordo com o jornal desportivo A Bolaa fação terá agredido Jorge Jesus, Bas Dost, Acuña, Rui Patrício, William Carvalho, Battaglia e, ainda, Raul José, adjunto de Jorge Jesus. O Record refere que Misic também fez parte do lote de agredidos e que Jorge Jesus terá sido alvo de uma cabeçada na cara. A TVI pormenoriza que as agressões foram feitas com cintos e barras de ferro e que houve fisioterapeutas esfaqueados.
Entretanto, surgiu nas redes sociais e em alguns meios de comunicação social uma foto de Bas Dost ferido na cabeça e de lágrimas nos olhos – algo que fonte do clube confirmou ao DN ser verdadeira –, assim como uma imagem do balneário do Sporting depois de terem sido atiradas tochas lá para dentro. O holandês terá mesmo sido o jogador mais mal tratado.
Também terá sido agredido o preparador físico Mário Monteiro; os alarmes contra incêndios dispararam porque houve tochas atiradas para o balneário e os jogadores recusam treinar se não tiverem garantias de segurança e de condições de trabalho; e já haverá empresários de futebolistas a procurar fundamento jurídico para rescisões por justa causa, tendo vindo a direção do Sporting clarificar que não indícios de que algum jogador rescindirá. Várias estações de televisão já transmitiram algumas das imagens do episódio. A este respeito, o empresário do avançado holandês, Gunther Neuhaus, afirmou a O Jogo:
Isto não é aceitável, é uma situação perigosa. Bas Dost é um dos jogadores mais importantes do Sporting nos últimos 10 anos.”.
O caso é notícia nas principais publicações internacionais, que falam em tarde de “terror” no treino dos ‘leões’. Assim, no seu site, o espanhol A Marca faz manchete com o sucedido à equipa principal do Sporting, com a fotografia das lesões de Bas Dost, falando numa invasão dos “adeptos radicais” do clube, insatisfeitos com as recentes exibições dos jogadores. A italiana Gazzetta dello Sport destaca na sua primeira página as agressões, no que diz ser a “fúrias dos Ultra” do clube, depois da qualificação falhada para a Liga dos Campeões. No francês L’Équipe, entre as notícias de antecipação para a final da Liga Europa, entre Marselha e Atlético Madrid, há espaço para contar que “jogadores do Sporting foram agredidos” após a invasão de adeptos ao centro de treinos. Em Inglaterra, a BBC Sport noticia os acontecimentos e destaca a reação oficial do clube: “o Sporting não é isto, não pode ser isto”. As agressões de Alcochete também chegaram à América do Sul, com o argentino Tyc Sports a dar sobretudo destaque a Acuna e Battaglia, jogadores que estão pré-convocados para o Mundial 2018, enquanto o Globoesporte, do Brasil, realça as marcas que ficaram na cabeça de Bas Dost. A fotografia do avançado holandês aparece igualmente no site da ESPN, com o jornal norte-americano a dar destaque ao que aconteceu em Alcochete, na sua página dedicada ao ‘soccer’.
Fonte da GNR confirmara à Lusa estar a proceder à “identificação presencial de indivíduos que presumivelmente estiveram envolvidos” na ocorrência, recusando confirmar se foram efetuadas detenções no local ou nas imediações – o que veio, depois, a acontecer.
Em resultado do sucedido, as autoridades policiais detiveram efetivamente 23 suspeitos (serão adeptos de Lisboa e da Madeira), que são ouvidos no Tribunal do Barreiro, depois de ter chegado o respetivo processo. Os detidos, que pernoitaram nas instalações de diversos postos da GNR e PSP na região de Setúbal, chegaram ao Tribunal do Barreiro cerca das 13 horas de hoje.
A inquirição começou depois de ter chegado àquela comarca do processo completo, no qual consta a audição a 38 testemunhas e a elaboração dos respetivos autos.
Segundo o JN, os suspeitos estão indiciados dos crimes de associação criminosa, dano qualificado, ofensa à integridade física qualificada e, em pelo menos um caso, tentativa de atropelamento – a que a TSF junta as acusações de terrorismo e sequestro.
Segundo a nota a que o JN teve acesso, as medidas de coação a aplicar aos arguidos deverão ser conhecidas no prazo de 24 horas.
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Face às notícias vindas a público e à especulação da comunicação social – enquanto Acuña e Battaglia ponderam rescindir contrato, segundo informação avançada pela edição online da estação de televisão argentina TyC Sports, podendo podem seguir-se outros – a Sporting SAD informou que Jorge Jesus estará a orientar a equipa do SCP na Final da Taça de Portugal.
Por outro lado, Bruno de Carvalho, Presidente do Sporting, em declarações à Sporting TV, reagiu aos atos de vandalismo ocorridos e deixou a garantia de que os jogadores já não estão irredutíveis. Também disse que “temos de nos habituar que o crime faz parte do dia a dia", atirando culpas ao Governo, esquecendo as que ele e comparsas devem assumir.
Lamentando ter ouvido o secretário de Estado do Desporto a dizer “que era preciso ter tomado decisões corajosas, mas sem dizer quais são essas medidas”, explicitou:
O Sporting há muito tempo que fala na violência, nas claques, mas há um presidente do IPDJ que acha que a legalização não é importante. O que se passou foi um ato criminoso, em que a polícia esteve na Academia desde o primeiro momento. Vamos aguardar para ver quem são. […] Os jogadores num primeiro momento ficaram em estado de choque, como todos nós estaríamos, estão agora mais calmos, há muita especulação, mas vamos estar no Jamor. Muita gente não queria, mas vamos jogar. Os jogadores estão tristes com o que aconteceu mas querem jogar.”.
E prosseguiu:
Já ouvi uma série de teorias mirabolantes, que este é o meu modus operandi porque nas Assembleias não deixo falar quem quer falar mal, o que é falso. Estamos a quatro dias da final e depois há o fim da época, que interesse teria o Sporting numa situação destas? Vamos averiguar internamente o que aconteceu. Há dois ou três meses aconteceram em Guimarães atos reprováveis, mas no Sporting são mais agradáveis de bater. Há que condenar em todo o lado.”.
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Obviamente, o Presidente do Sporting, que já pediu um assembleia geral extraordinária, não é um exemplo da compostura pública. No entanto, a sua crítica ao Secretário de Estado não é totalmente descabida. Dá a impressão de que falou levado por um impulso que não o deixava ficar em silêncio.
Naturalmente, os adeptos reagiram condenando o incidente – e com razão. No entanto, muitos fazedores da opinião pública falam agora quando lhes têm passado praticamente despercebidos outros incidentes também graves. É difícil saber quais os casos mais graves, dado que a gravidade dum incidente é avaliada aqui e agora segundo os dados presentes e raramente o é tendo em conta os contextos e a sequência dos acontecimentos. Para isso, seria necessário muito sangue frio, o que não é apanágio da Casa Lusitana.
Porém, enquanto a Liga e a Federação fizeram desta feita o que têm feito noutras ocasiões – vir à liça e condenar os incidentes e pedir, por um lado, a serenidade aos operadores desportivos e, por outro, a investigação e a punição dos crimes –, alguns detentores de cargos cimeiros do poder político vieram a terreiro fazer de carpideiras nacionais no máximo de exagero.
Compreenderia que adeptos e responsáveis da SAD do Sporting e do Clube no furor da onda derrapassem nos comentários; percebo que os jogadores tenham estado tentados a não comparecer no final da Taça, como gosto de saber que subscreveram um comunicado em que se disponibilizam para jogar no domingo, dispondo-se a treinar a partir do dia 18; tolera-se que alguns empresários induzam jogadores a denunciar o contrato; aceito que o Governo venha publicamente garantir a segurança no Estádio Nacional, prometer alterações legislativas e criar uma Alta Autoridade; e julgo inaceitáveis as intervenções das duas figuras cimeiras do Estado.
O Presidente da República fez bem em condenar os incidentes e em frisar que “não podemos normalizar ou banalizar, sob pena de permitirmos escaladas que são más para o desporto português e para a sociedade portuguesa como um todo”. Porém, exagera quando diz que se sentiu vexado. Acha que a invasão da academia é crime de lesa-presidente? E, se vai a toda a parte e é imenso, não vai ao final da Taça para não se misturar com o outro Portugal, o que alegadamente não é democrático? Valeria mais ter insistido na segurança…  
E ainda veio comparar, pela negativa, os incidentes com o caso dos irmãos Sobral. Disse, há dias, que estes eram mais embaixadores da imagem de Portugal que muitos dos embaixadores profissionais – o que, por inconveniente, desgostou os diplomatas. Bem podia Marcelo reparar como é descabido o discurso de estado de alma: Salvador Sobral, que se fartou de, por antecipação, dizer mal da canção de Israel e da intérprete, teve de fazer o frete de lhe entregar o troféu do eurofestival…
Por sua vez, o Presidente da Assembleia da República também veio condenar os incidentes. Fez bem quando classifica a situação de gravíssima por ofender “os portugueses, o desporto português e o país, pelas repercussões internacionais que já teve”. Todavia, não tem razão ao afirmar que os episódios correspondem a “uma perversidade autoritária e totalitária de dirigentes, em mistura com uma comunicação social fanática, que gosta de explorar até ao pus tudo o que acontece sábado e domingo nos campos de futebol, e também com aquilo que são as claques ou membros de claques, organizados como grupos terroristas”. E, se precisou que falava como Presidente da Assembleia da República e não como sportinguista, não podia ter dito:
É bom que as autoridades judiciais, sempre prontas para investigar e bem os políticos, investiguem bem os dirigentes desportivos e aqueles que fazem do futebol português esta desgraça, sobretudo os que fazem do Sporting Clube de Portugal esta miséria que estamos a viver”.
Não é decente que as duas figuras cimeiras da Pátria se espalhem em declarações que são fruto mais de estados de alma que da racionalidade. Deus nos livrou de que estes dois homens tivessem vindo algum dia a ter responsabilidades de comando operacional em contexto militar, policial ou de socorro. Um político é um ordenador da razão em prol do bem comum e não um gestor de afetos, como fazem crer, às vezes, que o povo gosta. Dessa gestão de afetos têm resultado as ditaduras, não?!
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O Governo rapidamente percebeu a urgência de mexer no quadro legal sobre violência no desporto. Apanhado pelos factos em Sofia, o Primeiro-Ministro condenou severamente a “selvajaria” contra os jogadores e treinadores do Sporting e anunciou mexidas no quadro legal bem como a criação de uma Alta Autoridade para a Violência no Desporto.
Costa disse que o Governo está “a trabalhar com a Federação Portuguesa de Futebol” e a “avaliar que outras medidas” se deverão tomar para garantir que o final da Taça decorra com segurança, frisando que “não cedemos a ameaças e temos que garantir que a época termina com normalidade”. E sublinhou o facto de dois Ministérios, o do Desporto e o da Administração Interna, terem de imediato colocado os atos de violência em Alcochete no topo da agenda. E divergiu de Rui Rio quando este acusou a excessiva proximidade entre políticos e futebol de ter contribuído para alimentar fenómenos de descontrolo.
Convindo não misturar as coisas, Costa disse que “não foi seguramente por o Dr. Rui Rio ter fechado as portas da Câmara do Porto ao FCP e por agora essas portas se terem voltado a abrir que estas situações ocorreram” e declarou que “o desporto é uma forma de transmitir valores e não selvajaria”.
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Vamos ver se o Governo consegue fazer, pela via legislativa, regulamentar e fiscalizadora, que o desporto seja uma forma de transmissão de valores; se as lideranças desportivas, em vez de fazem dos cargos uma forma de captação de benefícios pessoais ou um mecanismo de corrupção e de trafico de influências, lutam pela ética desportiva e pela sanidade física e mental de técnicos, adeptos e frequentadores do espetáculo desportivo; e se o poder judiciário consegue, sem desautorizar a polícia, cumprir a sua missão de administrar a justiça enquanto ato de nobre política no que ela tem de mais consentâneo com o Estado de direito. Que todos abracem a grande missão de tutela da causa pública. Mas temos de começar pela família, que o Estado deve apoiar, e pela escola, em que o Estado tem responsabilidades pelo facilitismo e pelo permissivismo reinantes.
2018.05.16 – Louro de Carvalho
     

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