terça-feira, 29 de maio de 2018

“A presidenta” como sintagma nominal é mais antiga que “a presidente”


Desde os tempos da minha meninice, que também a tive, ouvia falar na presidenta da JACF e na presidenta, que era filha do presidente da junta, ou na presidenta, a mulher do mesmo. E confesso que nunca me incomodei muito com o assunto, dado que, regra geral estas palavras, nomes ou adjetivos terminados em “-nte” ou são dum só género gramatical, como dente (masculino), ente (masculino), mente (feminino), gente (feminino), consoante (feminino), vertente (feminino), lente (feminino), jusante (feminino), etc. ou comum de dois, como gerente (o/a), dirigente (o/a), lente (o/a), doente (o/a), paciente (o/a), comediante (o/a), componente (o/a), etc. ou ainda nomes diferentes do masculino e do feminino, como montante (com significados diferentes), etc.; e, se adjetivos, são uniformes. Temos ainda palavras invariáveis como mediante, consoante, rente, passante, somente, etc. e tantos advérbios terminados em “-mente”.
De modo semelhante ouvia falar nas “ajudantas” e nas “estudantas” em vez de “ajudantes” e “estudantes”, respetivamente, no feminino. Obviamente que estas flexões eram de uso popular.
Hoje, apesar de estar consagrada a forma feminina para palavras como poetisa, mestra, juíza, e ministra, as senhoras querem ser poetas, mestres, juízes e houve alguma relutância em fazer delas ministras. Lembro-me de que Vasco Gonçalves, falando de Maria de Lurdes Pintassilgo, dizia o nosso “Ministro dos Assuntos Sociais”. Mas havia nos conventos femininas a mestra de noviças e a ministra. Em latim há “magister” (mestre) e “magistra” (mestra) como “dominus” (dono, senhor) e “domina” (dona, senhora. Recorde-se que senhor era uniforme no galaico-português).
Também adjetivos terminados em “-ês” eram uniformes. Por isso é que nós dizemos, em vez de “portuguesamente”, dizemos “portuguesmente”. Por outro lado, palavras como “fim” (era feminina e passou a masculina: ainda se ouvem registos como “lá p’ra fim do mundo) mudaram de género    
***
Que têm em comum vocábulos como “caminhante”, “pedinte”, “agente", “fluente”, “gerente”, “dirigente” etc.? O ponto comum é a terminação “-nte”, de origem latina, que ocorria no particípio presente dos verbos latinos e funcionava como adjetivo praticamente uniforme (uniforme em relação ao masculino e ao feminino; e diferente no neutro, em que nominativo, vocativo e acusativo mantêm a forma igual) e que subsiste em palavras derivadas de verbos portugueses, italianos, espanhóis... (na classe de nome, adjetivo, advérbio e preposição). Assim, termos “presidente”, “dirigente”, “gerente” – entre muitos outros – iguais nestas três línguas, que nasceram do mesmo ventre. E a terminação “-nte” contém a noção de “agente”, pelo que gerente é quem gere, presidente é quem preside, dirigente é quem dirige e assim por diante.
Normalmente essas palavras têm forma fixa, isto é, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é o artigo, outro determinante ou um quantificador (o/a gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte), como já foi dito. Em alguns (raros) casos, o uso fixa como alternativas as formas exclusivamente femininas, em que “e” final dá lugar a “a”. Um exemplo é “parenta”, forma exclusivamente feminina e não obrigatória (pode-se dizer, por exemplo “minha parente” ou “minha parenta”). Outro é justamente “presidenta”: pode-se dizer “a presidente” ou “a presidenta”.
Por isso, se as senhoras que exercem cargos públicos, na administração de topo de empresas ou de órgãos sociais de instituições querem ser presidentas, que o sejam, pois têm toda a legitimidade gramatical, política e gestionária para tal. Não esqueçamos, entretanto, que o uso constitui a lei máxima da legitimidade a língua e este é obra da sociedade regida politicamente.
Aliás, acontece coisa parecida com o termo “infante”, da mesma família de “infância”. “Infante” é “aquele que não fala” (porque ainda não aprendeu a falar). Esta palavra é outra que é igual nos três idiomas neolatinos já mencionados (italiano, espanhol e português) e admite o feminino “infanta”, pelo menos para as filhas de reis e rainhas. E são infantes os militares que andam a pé e formam a infantaria. Ora, porque têm a função de avançar no terreno, têm que o fazer em silêncio para o inimigo não os topar enquanto avançam. E, se têm de combater, devem fazê-lo preferencialmente de baioneta calada.
Outro caso interessante: o da palavra “fluente”. Diz-se que alguém tem um inglês “fluente” porque “fluente” (que também termina em “-nte”) é “o que flui”, isto é, o que corre como o líquido. Ora, como os líquidos fluem, a língua flui da boca de quem se exprime com facilidade.
Ainda outro caso. Como se disse, “gerente” é aquele que gere. Ora, a forma verbal “gere” é a 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo de “gerir”, quase sinónimo de “administrar”. O presente do indicativo na voz ativa é: “eu giro, tu geres, ela/ele gere, nós gerimos, vós geris, elas/eles gerem”. E o presente do conjuntivo é “eu gira, tu giras, ela/ele gira, nós giramos, vós girais, elas/eles giram”. Não quer dizer que, necessariamente, ela seja gira ou elas sejam giras!
***
Quando Dilma Roussef foi eleita para a chefatura do Estado Brasileiro, fez saber publicamente que pretendia ser designada como “Presidenta”, o que trouxe alguns engulhos a políticos e linguistas. Semelhante atitude quis assumir Assunção Esteves, em Portugal, quando os deputados, depois de rejeitarem Fernando Nobre, a escolheram para presidir à Assembleia da República. Todavia, entre nós o caso foi mais ridicularizado porque a titular deste cargo, que a tornou a segunda figura na hierarquia do Estado tinha outras pedras linguísticas (como “completude” e “conseguimento”) que eram selecionadas para crítica, sobretudo graças à utilização de palavras, ainda que bem constituídas, não estavam consagradas pelo uso. 
Ora, a palavra “presidenta” é um feminino tão correto para “presidente” como a palavra “presidente”, pelo que tanto se pode considerar “presidente” um nome comum de dois, distinguindo-se o género pelo contexto e pelo determinante ou pelo quantificador, como ter o seu feminino em “presidenta”. Tal utilização é aceite pelas gramáticas da língua portuguesa no Brasil, está presente em muitos dicionários portugueses há séculos e consta em quase todos os dicionários brasileiros e portugueses atuais. E, para lá da correta expressão “a presidenta”, a par da expressão “a presidente”, a expressão “a presidenta” é, segundo alguns, mais antiga e tradicional na língua portuguesa do que “a presidente”.
José Sarney, ex-presidente, que antes quer ser recordado como escritor e membro da Academia Brasileira de Letras do que como senador, governador ou Presidente da República, escreveu alguns meses após a eleição de Dilma Roussef em 2010:
Presidenta, segundo o ‘Aurélio’, é ‘mulher que preside ou mulher de um presidente’, distinta de presidente, que é ‘pessoa que preside’ ou ‘o Presidente da República’. O ‘Houaiss’ fala em ‘mulher que preside (a algo)’ ou ‘mulher que se elege para a presidência de um país’ para definir presidenta e, para presidente, em ‘título oficial do chefe do governo no regime presidencialista’ – substantivo de dois géneros. A forma tradicional, comum de dois géneros, não tem nenhum sentido discriminatório. Mas presidenta tem mais um peso político que linguístico.”.
J. Mattoso Câmara Jr. (vd “O nome e suas flexões”. In: Estrutura da língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1984, p.77) refere sobre a derivação flexional que consiste em substituir o morfema -e pelo morfema -a:
Já os nomes, que são essencialmente substantivos, podem às vezes possuir um feminino em -a mesmo quando são de tema em -e (ex: mestre, mestra)”.
E, no tocante à tradição gramatical, Evanildo Bechara (vd Moderna Gramática Portuguesa, ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 135) afirma, em relação à formação dos substantivos femininos a partir de um substantivo masculino terminado em e: “Os terminados em -e, uns há que ficam invariáveis, outros acrescentam –a depois de suprimir a vogal temática”. O autor traz como exemplos: “alfaiate – alfaiata, infante – infanta, governante – governanta, presidente – presidenta, parente – parenta e monge – monja”.
Celso Cunha e Luís Lindley Cintra (vd Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 194), ao referirem-se aos nomes terminados em -e, afirmam que alguns na formação do masculino para o feminino à semelhança da troca do -o por -a, ocorre à troca do -e por -a. Como exemplos apresentam: elefante/elefanta, governante/governanta (sobretudo quando significa a que governa casa ou instituição), infante/infanta, mestre/mestra, monge/monja, parente/parenta. Os referidos autores trazem ainda a seguinte observação: “Os femininos giganta (de gigante), hóspeda (de hóspede) e presidenta (de presidente) têm ainda curso restrito no idioma”.
***
Assim, como assegura o professor Pasquale, porque a palavra presidenta está hoje em quase “todas as gramáticas e dicionários portugueses e brasileiros”, os gramáticos contemporâneos, concordam: “pode-se dizer a presidente ou a presidenta”.
As gramáticas portuguesas e brasileiras tradicionais – como a Nova Gramática do Português Contemporâneo, do brasileiro Celso Cunha e do português Lindley Cintra, ou a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara – também concordam: 
Quanto aos substantivos terminados em -e, uns há que ficam invariáveis (amante, cliente, doente, inocente), outros formam o feminino com a terminação em “-a”: alfaiata, infanta, giganta, governanta, parenta, presidenta, mestra, monja. Observação: ‘governante’, ‘parente’ e ‘presidente’ também podem ser usados invariáveis no feminino.”.
Presidenta” vem com entrada no Dicionário Aurélio desde a sua primeira edição, em 1975; consta no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras desde a 1.ª edição, em 1932; vem com entrada no Dicionário da Academia Brasileira de Letras; e estava já no 1.º Vocabulário Ortográfico sancionado pela Academia das Ciências de Lisboa, Portugal, em 1912. Hoje, “presidenta” está em quase todos os dicionários brasileiros e portugueses – como o Aurélio, o Houaiss e o Michaëlis, com o significado de “mulher que é a chefe de governo de um país de regime presidencialista”. Figura no Dicionário Ilustrado, coeditado pela Porto Editora e pelo Público em 2004 (em que também figuram “consulesa” e “parenta”) e no Dicionário Completo da Língua Portuguesa, da Texto Editores (em que também figura “parenta”) – com o significado de “mulher que reside”; e figura no Novo Aurélio da Língua Portuguesa, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, no Dicionário da Língua Portuguesa, de Francisco Torrinha (em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) – com o significado de “mulher que reside” e “mulher de presidente”. O Novo Dicionário Integral da Língua Portuguesa, da Texto Editores (que tem “parenta” e “consulesa”), não regista “presidenta”. Já o Dicionário da Porto Editora, de 1998 e de 2011, regista “presidenta” como do âmbito popular no sentido de “mulher que preside” e popular em sentido depreciativo enquanto “esposa do presidente”. E o Dicionário Essencial da Língua Portuguesa (Porto Editora Seleções do Reader’s Digest, de 2002, em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) regista, como neologismo, “presidenta” com o significado de “mulher que reside” e “mulher de presidente”. Há registo um pouco para todos os gostos! 
Presidenta já aparecia também em textos de bons escritores há dois séculos: Machado de Assis, por exemplo, usa “presidenta” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua obra-prima, publicada em 1881. Em 1878, o português “O Universo Ilustrado narrava o enterro fictício de uma “presidenta”; em 1851, a “Revista Popular de Lisboa” referia-se à “presidenta de uma reunião. Ainda em Portugal, podemos encontrar “presidenta” no primeiro vocabulário oficial da língua portuguesa, elaborado por Gonçalves Viana em 1912.
“Presidenta” está também no vocabulário do português Rebelo Gonçalves (1966), e, de quase um século antes, no Dicionário de Português-Alemão de Michaëlis (1876), no de Cândido de Figueiredo (1899), no Dicionário Universal, da Texto Editores (1995), na 1.ª edição do Dicionário Lello (1952) e na 1.ª edição do Dicionário da Língua Portuguesa (também de 1952).
Na verdade, ainda antes disso – no ano de 1812 (antes ainda da independência do Brasil), a palavra “presidenta” já aparece dicionarizada: está no Dicionário de Português-Francês de Domingos Borges de Barros, que viria a ser diplomata e senador. (vd versão digitalizada do dicionário, de 1812).
Também no galego e no espanhol, presidenta é considerado o feminino mais gramaticalmente correto de “presidente“.
Como se pode ver em dicionários e vocabulários oficiais anteriores a 1940 até metade do século XX a palavra “presidente” era nome exclusivamente masculino e “presidenta” era o único feminino aceite para “presidente”. Por outras palavras: apenas a partir de 1940 a forma “a presidente” passou a ser aceita por gramáticos e dicionaristas portugueses e brasileiros. Ou seja: a palavra “presidenta”, dicionarizada desde 1812, é mais antiga e tradicional em português que a forma neutra “a presidente”, apenas dicionarizada a partir de 1940.
A passagem, no século XX, de presidente” como forma exclusivamente masculina para forma neutra baseou-se no processo de “neutralização de género” por que passaram e vêm até hoje passando vários outros nomes portugueses – como “a parente”, que antes antes só se dizia “parenta” –, sobretudo profissões – como “a oficial” (que antes só se dizia “oficiala”), “a cônsul” (que antes só se dizia “consulesa”) ou “a poeta” (que antes só se dizia “poetisa”).
A Revista “Veja deixou de usar o termo “presidenta” quando Dilma Rousseff, chegada ao poder, disse gostar de ser chamada assim. Até aí, usava “presidenta” por exemplo em edições da década de 1970 (ao referir-se à então presidenta deposta da Argentina), de 1980, 1990 e mesmo 2000. Do mesmo modo, anos antes de o PT chegar ao poder, os demais órgãos de imprensa usavam “presidenta”: a Folha de S. Paulo por exemplo, em 1996 (“Secretária de Turismo de Alagoas e presidenta da Fundação), 1997 (“Segundo a presidenta da CPI, deputada Ideli Salvatti”), 2003 (“A presidenta da CDU e líder da bancada parlamentar, Angela Merkel, já deixou claro que seu partido não se dispõe a salvar a situação para o governo de Berlim”), etc.; “O Estadão”, em 2004 (“Empresária de Shakira era presidenta da  companhia); em 2008 (disse a presidenta da Plataforma, Maribel Palácios”, etc.), etc.
Em suma: Ambas as formas “a presidenta” ou “a presidente” são gramaticalmente corretas e equivalentes, pelo que é indiferente o seu uso E, ao invés do que supõem muitos, “a presidenta” não é informal ou invenção recente nem coisa de feministas, esquerdistas ou pedantes. Ao invés, como nome e a formar sintagma nominal é a forma mais antiga e tradicional em português.
2018.05.28 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário