Desde
os tempos da minha meninice, que também a tive, ouvia falar na presidenta da
JACF e na presidenta, que era filha do presidente da junta, ou na presidenta, a
mulher do mesmo. E confesso que nunca me incomodei muito com o assunto, dado
que, regra geral estas palavras, nomes ou adjetivos terminados em “-nte” ou são dum só género gramatical,
como dente (masculino), ente
(masculino), mente (feminino), gente (feminino), consoante (feminino), vertente (feminino), lente (feminino), jusante (feminino), etc. ou comum de dois, como gerente (o/a), dirigente (o/a), lente (o/a),
doente (o/a), paciente (o/a), comediante (o/a),
componente (o/a),
etc. ou ainda nomes diferentes do masculino e do feminino, como montante (com significados diferentes),
etc.; e, se adjetivos, são uniformes. Temos ainda palavras invariáveis como
mediante, consoante, rente, passante, somente, etc. e tantos advérbios
terminados em “-mente”.
De
modo semelhante ouvia falar nas “ajudantas” e nas “estudantas” em vez de
“ajudantes” e “estudantes”, respetivamente, no feminino. Obviamente que estas
flexões eram de uso popular.
Hoje,
apesar de estar consagrada a forma feminina para palavras como poetisa, mestra,
juíza, e ministra, as senhoras querem ser poetas, mestres, juízes e houve
alguma relutância em fazer delas ministras.
Lembro-me de que Vasco Gonçalves, falando de Maria de Lurdes Pintassilgo, dizia
o nosso “Ministro dos Assuntos Sociais”. Mas havia nos conventos femininas a
mestra de noviças e a ministra. Em latim há “magister” (mestre) e “magistra” (mestra) como “dominus” (dono, senhor) e “domina” (dona, senhora. Recorde-se que senhor era uniforme no galaico-português).
Também
adjetivos terminados em “-ês” eram uniformes. Por isso é que nós dizemos, em
vez de “portuguesamente”, dizemos “portuguesmente”. Por outro lado, palavras
como “fim” (era feminina e passou
a masculina: ainda se ouvem registos como “lá p’ra fim do mundo)
mudaram de género
***
Que têm em comum vocábulos como
“caminhante”, “pedinte”, “agente", “fluente”, “gerente”, “dirigente” etc.?
O ponto comum é a terminação “-nte”, de origem latina, que ocorria no
particípio presente dos verbos latinos e funcionava como adjetivo praticamente
uniforme (uniforme em relação ao masculino e ao feminino; e
diferente no neutro, em que nominativo, vocativo e acusativo mantêm a forma
igual) e que
subsiste em palavras derivadas de verbos portugueses, italianos, espanhóis... (na
classe de nome, adjetivo, advérbio e preposição). Assim, termos “presidente”, “dirigente”,
“gerente” – entre muitos outros – iguais nestas três línguas, que nasceram do mesmo
ventre. E a terminação “-nte” contém a noção de “agente”, pelo que gerente é
quem gere, presidente é quem preside, dirigente é quem dirige e assim por
diante.
Normalmente essas palavras têm
forma fixa, isto é, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é
o artigo, outro determinante ou um quantificador (o/a
gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte), como já foi dito. Em alguns (raros) casos, o uso fixa como
alternativas as formas exclusivamente femininas, em que “e” final dá lugar a
“a”. Um exemplo é “parenta”, forma exclusivamente feminina e não obrigatória (pode-se
dizer, por exemplo “minha parente” ou “minha parenta”). Outro é justamente
“presidenta”: pode-se dizer “a presidente” ou “a presidenta”.
Por isso, se as senhoras que
exercem cargos públicos, na administração de topo de empresas ou de órgãos
sociais de instituições querem ser presidentas, que o sejam, pois têm toda a
legitimidade gramatical, política e gestionária para tal. Não esqueçamos,
entretanto, que o uso constitui a lei máxima da legitimidade a língua e este é
obra da sociedade regida politicamente.
Aliás, acontece coisa parecida
com o termo “infante”, da mesma família de “infância”. “Infante” é “aquele que
não fala” (porque ainda não aprendeu a falar). Esta palavra é outra que é igual
nos três idiomas neolatinos já mencionados (italiano, espanhol e
português) e admite
o feminino “infanta”, pelo menos para as filhas de reis e rainhas. E são
infantes os militares que andam a pé e formam a infantaria. Ora, porque têm a
função de avançar no terreno, têm que o fazer em silêncio para o inimigo não os
topar enquanto avançam. E, se têm de combater, devem fazê-lo preferencialmente
de baioneta calada.
Outro caso interessante: o da
palavra “fluente”. Diz-se que alguém tem um inglês “fluente” porque “fluente” (que
também termina em “-nte”)
é “o que flui”, isto é, o que corre como o líquido. Ora, como os líquidos
fluem, a língua flui da boca de quem se exprime com facilidade.
Ainda outro caso. Como se disse,
“gerente” é aquele que gere. Ora, a forma verbal “gere” é a 3.ª pessoa do
singular do presente do indicativo de “gerir”, quase sinónimo de “administrar”.
O presente do indicativo na voz ativa é: “eu giro, tu geres, ela/ele gere, nós
gerimos, vós geris, elas/eles gerem”. E o presente do conjuntivo é “eu gira, tu
giras, ela/ele gira, nós giramos, vós girais, elas/eles giram”. Não quer dizer
que, necessariamente, ela seja gira
ou elas sejam giras!
***
Quando Dilma Roussef foi eleita para a chefatura do Estado
Brasileiro, fez saber publicamente que pretendia ser designada como
“Presidenta”, o que trouxe alguns engulhos a políticos e linguistas. Semelhante
atitude quis assumir Assunção Esteves, em Portugal, quando os deputados, depois
de rejeitarem Fernando Nobre, a escolheram para presidir à Assembleia da
República. Todavia, entre nós o caso foi mais ridicularizado porque a titular
deste cargo, que a tornou a segunda figura na hierarquia do Estado tinha outras
pedras linguísticas (como
“completude” e “conseguimento”) que eram selecionadas para crítica, sobretudo graças à utilização de
palavras, ainda que bem constituídas, não estavam consagradas pelo uso.
Ora, a palavra “presidenta” é um feminino tão correto para “presidente” como a palavra “presidente”, pelo
que tanto se pode considerar “presidente” um nome comum de dois,
distinguindo-se o género pelo contexto e pelo determinante ou pelo
quantificador, como ter o seu feminino em “presidenta”. Tal utilização é aceite
pelas gramáticas da língua portuguesa no Brasil, está presente em muitos dicionários portugueses há séculos e consta em quase todos os
dicionários brasileiros e portugueses atuais. E, para lá da correta
expressão “a
presidenta”, a
par da expressão
“a presidente”,
a expressão “a presidenta” é, segundo alguns, mais antiga e
tradicional na língua portuguesa do que “a presidente”.
José Sarney,
ex-presidente, que antes quer ser recordado como escritor e membro da Academia
Brasileira de Letras do que como senador, governador ou Presidente da República,
escreveu alguns meses após a eleição de Dilma Roussef em 2010:
“Presidenta,
segundo o ‘Aurélio’, é ‘mulher que preside ou mulher de um presidente’,
distinta de presidente, que é ‘pessoa que preside’ ou ‘o Presidente da
República’. O ‘Houaiss’ fala em ‘mulher que preside (a algo)’ ou ‘mulher que se
elege para a presidência de um país’ para definir presidenta e, para
presidente, em ‘título oficial do chefe do governo no regime presidencialista’ –
substantivo de dois géneros. A forma tradicional, comum de dois géneros, não
tem nenhum sentido discriminatório. Mas presidenta tem mais um peso político
que linguístico.”.
J. Mattoso Câmara Jr. (vd “O nome e suas flexões”. In: Estrutura da língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1984, p.77) refere sobre a derivação flexional
que consiste em substituir o morfema -e pelo morfema -a:
“Já os nomes, que são essencialmente
substantivos, podem às vezes possuir um feminino em -a mesmo quando são de tema
em -e (ex: mestre, mestra)”.
E, no
tocante à tradição gramatical, Evanildo Bechara (vd Moderna
Gramática Portuguesa, ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 135) afirma, em relação à formação dos
substantivos femininos a partir de um substantivo masculino terminado em e: “Os
terminados em -e, uns há que ficam invariáveis, outros acrescentam –a depois de
suprimir a vogal temática”. O autor traz como exemplos: “alfaiate – alfaiata,
infante – infanta, governante – governanta, presidente – presidenta, parente –
parenta e monge – monja”.
Celso Cunha e Luís Lindley Cintra (vd Nova Gramática do Português
Contemporâneo, 3.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 194), ao referirem-se aos nomes
terminados em -e, afirmam que alguns na formação do masculino para o feminino à
semelhança da troca do -o por -a, ocorre à troca do -e por -a. Como exemplos apresentam:
elefante/elefanta, governante/governanta (sobretudo quando significa a que governa casa ou instituição), infante/infanta, mestre/mestra,
monge/monja, parente/parenta. Os referidos autores trazem ainda a seguinte
observação: “Os femininos giganta (de gigante), hóspeda (de hóspede) e presidenta (de presidente) têm ainda curso restrito no idioma”.
***
Assim, como assegura o professor Pasquale, porque a
palavra presidenta está hoje em quase “todas as
gramáticas e dicionários portugueses e brasileiros”, os gramáticos
contemporâneos, concordam: “pode-se dizer a presidente ou a presidenta”.
As gramáticas portuguesas e brasileiras tradicionais – como
a Nova Gramática do Português Contemporâneo, do
brasileiro Celso Cunha e do português Lindley Cintra, ou a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara –
também concordam:
“Quanto aos substantivos terminados em -e,
uns há que ficam invariáveis (amante, cliente, doente, inocente), outros formam
o feminino com a terminação em “-a”: alfaiata, infanta, giganta, governanta,
parenta, presidenta, mestra, monja. Observação: ‘governante’, ‘parente’ e
‘presidente’ também podem ser usados invariáveis no feminino.”.
“Presidenta” vem com entrada no Dicionário
Aurélio desde
a sua primeira edição, em 1975; consta no Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP),
da Academia
Brasileira de Letras desde a 1.ª edição, em 1932; vem com entrada no Dicionário
da Academia Brasileira de Letras; e estava já no 1.º Vocabulário Ortográfico sancionado pela
Academia das Ciências de Lisboa, Portugal, em 1912. Hoje, “presidenta” está em quase todos os dicionários brasileiros e
portugueses – como o Aurélio, o Houaiss e o Michaëlis, com o significado
de “mulher que é a chefe de governo de um país de regime presidencialista”.
Figura no Dicionário Ilustrado,
coeditado pela Porto Editora e pelo Público
em 2004 (em que também
figuram “consulesa” e “parenta”) e no Dicionário Completo da Língua Portuguesa, da Texto Editores (em que também figura “parenta”) – com o significado de “mulher que reside”; e figura
no Novo Aurélio da Língua Portuguesa, no Grande
Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais
Silva, no Dicionário da Língua Portuguesa, de Francisco Torrinha (em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) – com o significado de “mulher que
reside” e “mulher de presidente”. O Novo
Dicionário Integral da Língua
Portuguesa, da Texto Editores (que tem “parenta” e “consulesa”), não regista “presidenta”. Já o Dicionário da Porto Editora, de 1998 e de 2011, regista
“presidenta” como do âmbito popular no sentido de “mulher que preside” e popular
em sentido depreciativo enquanto “esposa do presidente”. E o Dicionário Essencial da Língua Portuguesa (Porto Editora e Seleções do Reader’s Digest, de 2002, em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) regista, como neologismo,
“presidenta” com o significado de “mulher que reside” e “mulher de presidente”.
Há registo um pouco para todos os gostos!
Presidenta já aparecia também em textos de bons escritores há
dois séculos: Machado de Assis, por exemplo, usa “presidenta”
em Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua obra-prima,
publicada em 1881. Em 1878, o português “O Universo Ilustrado” narrava o enterro fictício de uma “presidenta”; em 1851, a “Revista
Popular de Lisboa” referia-se à “presidenta” de uma reunião. Ainda em Portugal, podemos encontrar “presidenta” no primeiro vocabulário oficial da língua portuguesa, elaborado por Gonçalves Viana em
1912.
“Presidenta” está também no vocabulário do
português Rebelo Gonçalves
(1966), e, de quase um século antes, no Dicionário de
Português-Alemão de Michaëlis (1876), no de
Cândido de Figueiredo (1899), no Dicionário Universal, da Texto Editores (1995), na 1.ª edição do Dicionário Lello (1952) e na 1.ª
edição do Dicionário da Língua
Portuguesa (também de
1952).
Na verdade, ainda antes disso – no ano de 1812 (antes
ainda da independência do Brasil), a palavra “presidenta” já aparece dicionarizada: está no Dicionário de
Português-Francês de Domingos Borges de
Barros, que viria a ser diplomata e senador. (vd versão digitalizada
do dicionário, de 1812).
Também no galego e no espanhol, presidenta é considerado o feminino
mais gramaticalmente correto de “presidente“.
Como se pode ver em dicionários e
vocabulários oficiais anteriores a 1940 até metade do século XX a palavra
“presidente” era nome exclusivamente masculino
e “presidenta” era o único feminino aceite para “presidente”. Por outras
palavras: apenas a partir de 1940 a forma “a presidente” passou a ser aceita por gramáticos e dicionaristas
portugueses e brasileiros. Ou seja: a palavra “presidenta”, dicionarizada desde 1812, é mais antiga e tradicional
em português que a forma neutra “a presidente”, apenas
dicionarizada a partir de 1940.
A passagem, no século XX, de “presidente” como forma exclusivamente masculina para forma
neutra baseou-se no processo de “neutralização de género” por que passaram e
vêm até hoje passando vários outros nomes portugueses – como “a parente”,
que antes antes só se dizia “parenta” –, sobretudo profissões – como “a
oficial” (que antes só se
dizia “oficiala”), “a
cônsul” (que antes só se
dizia “consulesa”) ou “a
poeta” (que antes só se
dizia “poetisa”).
A Revista “Veja” deixou de usar o termo “presidenta” quando Dilma Rousseff,
chegada ao poder, disse gostar de ser chamada assim. Até aí, usava “presidenta”
por exemplo em edições da década de 1970 (ao referir-se à então presidenta deposta da Argentina), de 1980, 1990 e
mesmo 2000. Do mesmo modo, anos antes de o PT chegar ao poder, os demais órgãos
de imprensa usavam “presidenta”: a “Folha de S. Paulo” – por exemplo, em 1996 (“Secretária de Turismo de
Alagoas e presidenta da Fundação”), 1997
(“Segundo a presidenta da CPI, deputada Ideli Salvatti”), 2003 (“A presidenta da CDU e líder da
bancada parlamentar, Angela Merkel, já deixou claro que seu partido não se
dispõe a salvar a situação para o governo de Berlim”), etc.; “O
Estadão”,
em 2004 (“Empresária de Shakira era
presidenta da companhia”); em 2008 (“disse a presidenta da
Plataforma, Maribel Palácios”, etc.), etc.
Em suma: Ambas as formas – “a presidenta”
ou “a presidente” – são gramaticalmente corretas e equivalentes,
pelo que é indiferente o seu uso E, ao invés do que supõem muitos, “a presidenta”
não é informal ou invenção recente
nem coisa de feministas, esquerdistas ou pedantes. Ao
invés, como
nome e a formar sintagma
nominal é a
forma mais antiga e tradicional em português.
2018.05.28
– Louro de Carvalho
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