quinta-feira, 10 de maio de 2018

(Des)lealdde Parlamentar – estranha expressão


No debate parlamentar quinzenal de hoje, dia 9 de maio, com o Governo, surgiu uma expressão não frequente na utilização do léxico parlamentar. O Primeiro-Ministro, ao ser interpelado sobre o caso de José Sócrates em curso na Justiça, acusou de deslealdade parlamentar o interpelante, o deputado Fernando Negrão, líder da bancada do PSD.
Pessoalmente não gosto da designação, porque dá a entender que os deputados ou os membros do Governo devem uma lealdade política, neste caso parlamentar, alheia da lealdade enquanto virtude constitutiva do bom caráter. Por outro lado, se há uma infração material ou formal a uma lei, regulamento ou regimento – e, no caso, parece que há –, seria mais positivo, claro e curial que isso fosse dito. De resto, sobrepor-se-á à liberdade dos deputados e dos seus grupos parlamentares um pretenso alinhamento acrítico pelas posições das maiorias ou pelos caprichos das minorias mais aguerridas?
À partida, eu pensava que a razão da deslealdade parlamentar do líder do grupo parlamentar do PSD tinha a ver com a inoportunidade de discutir casos de Justiça na Assembleia da República. Porém, vistas as coisas como foram ditas, tal atropelo resultou da falta de aviso prévio sobre a inclusão da matéria no debate com o Governo. E isso configura uma infração ao Regimento da Assembleia da República. Com efeito, o n.º 10 do seu art.º 224.º estabelece:
O Governo, no formato referido na alínea a) do n.º 2, e os grupos parlamentares, no formato referido na alínea b) do n.º 2, comunicam à Assembleia da República e ao Governo, respetivamente, com a antecedência de vinte e quatro horas, os temas das suas intervenções.
E o n.º 2 do mesmo art.º estabelece:
A sessão de perguntas desenvolve-se em dois formatos alternados:
a) No primeiro, o debate é aberto por uma intervenção inicial do Primeiro-Ministro, por um período não superior a dez minutos, a que se segue a fase de perguntas dos Deputados desenvolvida numa única volta;
b) No segundo, o debate inicia-se com a fase de perguntas dos Deputados desenvolvida numa única volta.”.
Como a sessão de perguntas deste debate se desenvolveu no segundo formato, o deputado do PSD, a ser verdade que não fez tal aviso, infringiu o Regimento. Porém, não deveria ter sido advertido pelo Primeiro-Ministro, mas pelo Presidente da Assembleia da República nos termos do n.º 2 do art.º 79.º e porque lhe pertence a condução dos trabalhos.
Mas o mais importante a ter em conta é a substância da matéria.
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O líder da bancada do PSD levou Sócrates ao plenário com um “conjunto de perguntas muito claras e objetivas” para o Primeiro-Ministro que, segundo diz, “estão na cabeça e pensamento” dos portugueses. E, por isso, interpelou o Chefe do Governo perguntando “por que razão o PS demorou mais de três anos a demarcar-se de José Sócrates e do seu comportamento,” e se, “para o PS e para o Senhor [Chefe do Governo] em concreto o que é mais importante” são “os votos e as eleições ou os princípios e as convicções”, bem como pedindo a António Costa que se deixe de “respostas evasivas e pretextos formais” e dê uma “explicação sobre o que se passa”.
Entretanto, da bancada do PS ouviam-se vozes a pedir: “Não respondas, não respondas” – às questões do PSD sobre caso José Sócrates.
Porém, o Primeiro-Ministro intentou a resposta. Respondeu à primeira questão começando por acusar o interpelante de “deslealdade parlamentar”. E, sobre o caso em concreto disse não ter mudado em nada a sua posição” sobre a matéria. Mas, tal como na semana passada, quando falou sobre o assunto, também desta vez afirmou que não escondeu “que, se aqueles factos vierem a ser provados, isso é uma desonra para a democracia”.
Declarando que não se refugia no formalismo de aduzir que, tratando-se de um debate com o Primeiro-Ministro, a questão deveria ser feita ao Secretário-Geral do PS, que não está aqui para responder, desnudado dos cargos, respondeu como cidadão. E aqui ancorou-se na interpretação do princípio de separação dos poderes, sustentando que “temos um sistema de Justiça único no mundo que tem uma enorme vantagem: assegura a todos os cidadãos que nenhum de nós está acima da lei”. E evocou o princípio da presunção da inocência para defender que “nunca devemos trazer para o debate público aquilo que é discutido nos tribunais”, garantindo que a sua posição “é do início” e que não mudou “em nada”.
Negrão contra-atacou sobre a questão da deslealdade atirando-a contra o Primeiro-Ministro, que nunca explicara ao partido socialista e ao país o motivo por que nunca se demarcou dos governos de Sócrates. E disparou com outra questão:
Afinal, a bancarrota foi culpa da crise ou foi resultado de nefastas decisões tomadas pelo Governo” de que António Costa fez parte?”.
Tentou colar a crise económica e financeira às decisões dos executivos de José Sócrates.
Costa, por sua vez, convidou o PSD a revisitar o que dissera na semana passada:
Eu não disse em circunstância alguma que este ou aquele caso ou pessoa me envergonhava e desonrava, disse o que qualquer um pode dizer: se os factos vierem a ser provados pelo sistema de Justiça, isso consistira numa desonra para democracia, como acrescentei que o sistema de Justiça assenta na independência da investigação e na presunção de inocência e que, se não vierem a ser provadas, demonstram competência da Justiça”.
E o Primeiro-Ministro foi tão inconveniente como Negrão ao tocar-lhe na ferida da autoridade moral para fazer acusações políticas. Com efeito, o deputado esteve envolvido num caso judicial por suspeitas de violação do segredo de justiça, quando era diretor nacional da PJ, cargo de que foi demitido. Nesse sentido, Costa aduziu que, “por ter sido ilustre magistrado e por ter sido parte em processo-crime em outras situações” sabe que “ninguém tem direito a julgar ninguém, a não ser um magistrado de acordo com o processo penal.
Fernando Negrão ripostou que “não foi o PSD que trouxe para a ribalta pública o caso José Sócrates”, mas sim os dirigentes socialistas; e “não é a primeira vez que o PS traz isto para a cena pública” (Aqui o PS é preso por ter cão e por não o ter). Depois, atirou ao Primeiro-Ministro e líder do PS que, em 2014, António José Seguro o acusou “de ser apoiado por um partido invisível que mistura negócios e política”, referindo-se a uma declaração do ex-líder socialista com quem Costa disputou a liderança. Será apenas o PS. Se for, é fácil salvar o país!
Ora, em termos da substância, penso que o caso de Sócrates não se pode circunscrever à área da Justiça ou à da Comunicação Social ou mesmo à discussão intra e interpartidária. Dado tratar-se de um antigo Primeiro-Ministro e a investigação envolver provavelmente ações praticadas também enquanto governante, bem como pelos reflexos que os putativos crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal têm sobre a política e a ação governativa e sobre o erário público, é pertinente o seu debate no Parlamento. Por isso, não creio que António Costa não estivesse preparado para responder, como dizia à tarde Paula Santos, do Expresso. O que tentou fazer foi, por um lado, censurar o deputado do PSD por não ter cumprido a formalidade regimental de proceder ao aviso prévio e dar uma resposta que não comprometesse em demasia o PS atual e este Governo.
Ademais, reitero o que disse noutra ocasião. Não percebo a distinção de Costa: se a Justiça vier a comprovar os factos da acusação, será uma desonra para a democracia; se não os comprovar, é sinal de que a Justiça funciona. Ora, a meu ver, a Justiça funciona ou não funciona numa situação e na outra. E a desonra é para a democracia, em geral, e para o PS, em especial. Só não o seria para o partido, se este se tivesse demarcado politicamente com clareza a tempo e horas.
***
Porém, não foi só o PSD que mexeu na corrupção. Também o CDS, pela voz de Cristas questionou Costa quanto a informações que envolvem um ex-Ministro da Economia suspeito de receber verbas de instituições privadas (Manuel Pinho e o Grupo Espírito Santo). Nesse sentido, perguntou “se isso foi assim, o que é que o senhor Primeiro-Ministro está a fazer no seu Governo” para aumentar o “escrutínio interno de fiscalização ou prevenção para que aquilo que se passou com o seu governo não aconteça agora também”.
Ao que António Costa retorquiu:
Desconheço que em relação a qualquer membro do atual Governo exista qualquer situação igual a outra situação que alegadamente aconteceu com outro Governo de que também fiz parte”.
E Assunção Cristas voltou à carga:
Considera necessário e acha importante levar a cabo um maior escrutínio da ação do Governo para prevenir que situações que passaram despercebidas a esse Governo não voltem a acontecer?”.
António Costa concedeu que, se Cristas tiver alguma sugestão concreta, ele estará disponível para ouvir, dizendo que o caso Manuel Pinho “deixou toda a gente surpreendida, como deixariam notícias que envolvessem qualquer membro do seu Governo”.
A líder do CDS esperava, pelo menos, o anúncio de uma “sindicância, uma auditoria” ao Ministério da Economia, mas o Chefe de Governo sustentou que não vai ter “desconfiança geral sobre todos os seres humanos”, admitindo, no entanto, que, “se algo de muito grave tivesse acontecido” naquele Ministério, “quem, entretanto, foi ministro não deixaria de alertar as autoridades” para essas suspeitas.
A mensagem apanha António Pires de Lima, ex-Ministro da Economia e militante centrista, quando parece que Assunção queria atingir Caldeira Cabral, hoje Ministro da Economia e antigo assessor e Manuel Pinho.
E Costa, até insinuando o caso da investigação judicial que está a decorrer sobre o antigo Secretário de Estado da área da Economia neste Governo, como em qualquer outra circunstância, professou a sua crença no Ministério Público e desafiou Cristas a fazê-lo também.
E Catarina Martins, no âmbito do combate à corrupção, quer ver reduzido o sigilo bancário, no sentido de os bancos deverem comunicar ao fisco os casos de contas bancárias portuguesas e em Portugal superiores a 50 mil euros, como fazem para estrangeiros que tenham contas em Portugal ou para portugueses que tenham contas no estrangeiro, nos termos dos acordos internacionais.
Porém, Costa respondeu com alterações já feitas “nesta legislatura”, ainda que o tema possa ser retomado.
A líder do BE teve em conta que o Governo elaborou um decreto-lei sobre a matéria, que Marcelo vetou, mas, considerando que o tema é central em matéria de “combate à corrupção e crime económica”, questionou:
O Governo vai permanecer calado sobre o sigilo bancário em nome do Presidente, mesmo quando o Presidente está a pedir mais combate à corrupção?”
Costa disse que as propostas que apresentou como governante nesta legislatura e quando foi Ministro foram aprovadas e que “talvez as propostas do Bloco tenham tido menos sorte” nesse debate. E, sobre o Presidente da República, recusa comentar conversas que mantém com Marcelo Rebelo de Sousa e diz apenas que, “quando entender que há condições políticas para retomar, o Governo retoma, porque não mudámos de opinião”. E, em reação ao anúncio pelo Bloco do debate no Parlamento dedicado ao assunto, a 17 de maio, Costa pediu que o partido se juntasse ao “amplo consenso” necessário em matéria de combate à corrupção e ajudasse o Governo a convencer o Presidente da República da importância do decreto vetado.
A este propósito, registe-se que Marcelo se apressou a responder de imediato em nota publicada na página web da Presidência:
Esclarecendo dúvidas suscitadas na Assembleia da República um ano e meio depois dos factos, o Presidente da República relembra que vetou, em 30 de setembro de 2016, um diploma do Governo permitindo a troca automática de informação financeira sobre depósitos bancários superiores a 50.000 euros, invocando como principal razão a situação particularmente grave vivida então pela banca portuguesa”.
É caso para perguntar se a banca portuguesa tem a situação consolidada quando já está a disparar numa certa anarquia crediária, a ponto de o regulador se preparar para impor restrições, se mantém em operações de reestruturação e ainda não dispensou os contribuintes do desassossego de entrarem com a massa para salvar o setor financeiro, apesar de Carlos Costa ter afastado a ideia de o Novo Banco voltar a precisar de dinheiro público (ideia que Centeno não afasta!).
E é não despiciendo o teor do discurso do Bloco de Esquerda ao reclamar a publicação dos grandes devedores não só da CGD, mas de todos os bancos em que foi enterrado dinheiro público – bancos existentes ou bancos já desaparecidos. Em alternativa, deverá ser lançada, do meu ponto de vista, uma inquirição rigorosa até às últimas consequências sobre “todos” os grandes responsáveis pelos avultados empréstimos bancários negociados sem garantias sólidas.    
Também o líder comunista abordou o tema da corrupção, ”um problema que continua a surgir ciclicamente”, atirando sobretudo aos processos de privatização, concessão ou PPP. E exemplificou com o “caso das rendas de energia que envolve Manuel Pinho” e que “é o mais recente a acrescentar a um longo rol”. E disse serem “exemplos de privatizações, concessões e PPP que se enquadram em processos de favorecimento de grandes grupos económicos”.
Aduzindo que há gente séria em todos os partidos, mas que esta promiscuidade está na raiz do problema em termos de corrupção, questionou o Primeiro-Ministro sobre “a disponibilidade do Governo para que se avance nesta matéria”. Ao que o Primeiro-Ministro respondeu que é “total” a “disponibilidade do Governo para reforçar os meios de combate à corrupção”.
Os Verdes também quiseram deixar uma nota sobre corrupção, pois ela “mina a confiança dos cidadãos e prejudica os cidadãos, prejudica-nos como sociedade a promiscuidade entre empresas e governantes, quer no ato de governação quer no ato pós-governação.” Os membros do partido, diz Heloísa Apolónia, “estão absolutamente disponíveis” para reforçar a legislação.
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Se uma Alta Autoridade Contra a Corrupção – Já existiu. Quem e porquê acabou com ela? – pegasse no teor deste debate parlamentar e tirasse as necessárias ilações, convenhamos que o debate de hoje teria sido bem produtivo. E deixemo-nos das acusações de deslealdade.
2018.05.09 – Louro de Carvalho

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