Era expectável uma decisão destas por parte do
Tribunal da Relação de Lisboa. Não está em causa na substância a
responsabilidade criminal do arguido nem o juízo de que eventualmente possa
merecer a condenação ou o benefício da absolvição. O que estava em questão era
o acordo de extradição firmado entre os países da CPLP e a errática convicção
do nosso Ministério Público (MP) abertamente manifestada de
que não confiava na Justiça angolana.
E mesmo a Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a admitir a reabertura dos processos contra o ex-Vice-Presidente
angolano Manuel Vicente que o Procurador Orlando Figueira – atualmente em
julgamento – mandou arquivar em 2011, condicionando a decisão ao desfecho do julgamento
da Operação Fizz, em curso.
***
Orlando
Figueira – à data dos factos (2011), procurador
do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) – é acusado de corrupção passiva, branqueamento de
capitais (coautoria com os outros três arguidos), violação de segredo de justiça e falsificação de
documento (coautoria com os restantes arguidos). Em concreto, é acusado de receber 763 mil euros para
arquivar os inquéritos por corrupção que corriam contra Manuel Vicente. Em 2011, a atual PGR ainda
não estava à frente dos destinos do MP. Pinto Monteiro era o PGR e Cândida
Almeida a diretora do DCIAP, onde estava colocado desde 2008 o arguido e
ex-procurador.
Vicente, à data dos factos, presidente da Sonangol, é acusado de corrupção
ativa (coautoria
com Paulo Blanco e Armindo Pires), branqueamento
de capitais (coautoria com os restantes arguidos) e
falsificação de documento (coautoria com os restantes arguidos). E estão ainda acusados o advogado Paulo Blanco, a responder por corrupção ativa (coautoria
com Manuel Vicente e Armindo Pires), branqueamento
de capitais (coautoria com os restantes arguidos), violação
de segredo de justiça e falsificação de documento (coautoria
com os restantes arguidos), e Armindo
Perpétuo Pires, representante em Portugal de Vicente, a responder por corrupção ativa (coautoria
com Paulo Blanco e Manuel Vicente),
branqueamento de capitais (coautoria com os restantes arguidos) e falsificação de documento (coautoria
com os restantes arguidos).
O primeiro dos três processos que a PGR admitia
reabrir é o inquérito
n.º 246/11.6, aberto em junho de 2011. Trata-se
de investigação que nasce depois de a CMVM denunciar suspeitas relativamente ao
Fund Box – que detinha o empreendimento Estoril Sol Residence – e ao Banco
Invest, onde o dinheiro era depositado, sobre apartamentos que terão sido
vendidos a Manuel Vicente e Álvaro Sobrinho, então presidente do BESA. Alguns
pagamentos eram feitos por empresas que não teriam ligação com os
beneficiários. E é aqui que entra a Portmill, empresa ligada a Vicente. Eram
crimes de associação criminosa e de branqueamento de capitais.
Desse nasce o processo n.º 5/12.9. No decorrer da investigação, Orlando Figueira pediu
que Vicente fosse investigado em processo à parte, com o que a procuradora
adjunta não concordou, mas Figueira conseguiu o objetivo e o nome de Vicente
foi apagado do processo. No dia em que foi expedida a notificação de
arquivamento do processo 246/11.6 a Paulo Blanco, foram depositados 210 mil
dólares na conta de Figueira no BPAE – pagamento feito pela empresa Primagest,
sediada em Angola. Sete dias depois de ter sido reaberto, o processo foi
arquivado.
E resta falar do processo n.º 149/11.4, aberto em
março de 2011 por
denúncias à CMVM, feitas pelos ativistas angolanos Rafael Marques e Alfredo
Parreira, que acusavam Vicente e outros dirigentes angolanos de usarem empresas
para adquirirem participações sociais na Movicel (telecomunicações
angolana) e no BESA. Em causa estavam os
crimes de branqueamento de capitais e corrupção. Figueira declarou o segredo de
justiça em despacho que evidenciava suspeitas dos crimes de corrupção, tráfico
de influência, branqueamento de capitais e, eventualmente, associação
criminosa.
Sobre a possibilidade de reabertura dos processos, pois, segundo o Código
de Processo Penal, um inquérito arquivado só pode ser reaberto se forem
detetadas novas provas, o advogado da PLMJ João Medeiros,
experiente em casos de crime económico, sustenta que, “se ainda existirem
condições para prosseguimento do procedimento criminal, ou seja, se não tiver
havido, entretanto, prescrição, o superior hierárquico do MP pode avocar o
processo e proceder à sua reabertura”. E as provas previstas na lei tanto podem
ser positivas (por exemplo, aparecer um documento ou uma testemunha com novas pistas
quanto ao autor), como
negativas, ou seja, que alguém recebeu dinheiro para arquivar um processo”,
como parece ser o caso.
Henrique Salinas, professor da Faculdade de Direito da
Universidade Católica e sócio da CCA Ontier, explica que “o CPP só permite a reabertura do processo de inquérito que
tenha sido arquivado caso surjam novas provas que invalidem os fundamentos
invocados pelo MP no arquivamento”. Porém, tratando-se de sentença, mesmo
absolutória, pode ser revogada mediante recurso extraordinário se for proferida
sentença, noutro processo, que julgue provado crime cometido por juiz ou jurado
e relacionado com a função exercida no processo. Este regime é também aplicável
a outros despachos que ponham termo ao processo, defendendo-se que entre eles
se encontra o despacho de arquivamento. Por esta via, os
arquivamentos proferidos pelo MP podem ser objeto de recursos de revisão, desde
que em sentença se julgue provado crime cometido pelo magistrado do MP que
esteja relacionado com as funções que exerceu no primeiro processo.
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público,
António Ventinhas, não comentou por se tratar de um caso concreto e
mediático.
O advogado Manuel Magalhães e Silva admite que os processos podem ser reabertos se
houver novas provas ou se houver decisão com trânsito em julgado que torne
certo que Figueira foi corrompido para arquivar o processo.
Do lado da defesa de Manuel, o advogado
Rui Patrício, considerava que a reabertura dos processos que envolviam o seu
cliente, arquivados por Figueira, não é solução juridicamente viável. E estranhava “muito a oportunidade da declaração pública
desta possibilidade de reabertura, quando este processo agora em julgamento já dura desde 2014
e quando a acusação é de fevereiro de 2017” – posição que Patrício dizia ser “imprescindível para esclarecimento público e
defesa dos interesses do meu constituinte”. Recordou
que um dos dois processos fora reaberto e novamente arquivado, por outro
procurador. E acrescentou:
“Não
menos importante, parece que não foi ainda dada a devida atenção ao depoimento
integral e essencial da senhora Dra. Cândida Almeida, que ontem
terminou [14 de fevereiro], quer sobre os despachos finais de arquivamento por
si dados nos dois processos em causa, quer sobre outras questões que relatou,
as quais estou em crer, e espero, virão certamente a merecer a devida atenção
de quem de direito, incluindo da PGR”.
Na 1.ª sessão de julgamento da Operação Fizz, o coletivo de juízes
decidiu separar o processo relativo ao ex-vice-presidente angolano do processo
principal, depois de as autoridades angolanas terem respondido à carta
rogatória do MP português. O MP angolano recusou notificar Vicente da
constituição de arguido e do despacho de acusação. Devido ao facto de, segundo
as autoridades angolanas, Manuel Vicente gozar de imunidade.
Este processo causou enorme incómodo diplomático, sobretudo depois de, a 8
de janeiro, o Presidente angolano ter dito, em conferência de imprensa, que era
“ofensa” a decisão de Portugal não transferir o processo de Vicente para Angola.
Deste então têm ocorrido contactos nos bastidores e, no final de janeiro, o
Primeiro-Ministro português encontrou-se com João Lourenço em Davos (Suíça) na tentativa de desdramatizar o quadro das relações diplomáticas.
Então, António Costa disse não haver “nenhum problema entre Portugal e
Angola dos pontos de vista económico e político, mas uma questão que transcende
o poder político”, não dizendo respeito ao Presidente da República, ao Governo
ou à Assembleia da República. Era tema “da exclusiva
responsabilidade das autoridades judiciárias”. Mas, caso o julgamento a
decorrer em Portugal, que envolve Orlando Figueira, termine em condenação e
caso a PGR decidisse reabrir os processos mais antigos contra Vicente, teríamos
mais um elemento de fricção nas relações diplomáticas entre Portugal e Angola.
(vd ECO, de
15 de fevereiro).
***
Hoje, dia 10 de maio, foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o processo autónomo da Operação Fizz relativo ao ex-Vice-Presidente
de Angola vai ser remetido para as autoridades judiciais angolanas.
Segundo o que fonte da PGR, não haverá recurso da decisão. Ou seja, na prática,
Joana Marques Vidal não impedirá que o processo siga para Angola.
Segundo o Público, os juízes desembargadores da Relação de Lisboa admitem que “a
vigência duma lei de amnistia não é, só por si, motivo de risco de boa
administração da justiça”, vindo, assim, a contrariar o entendimento
do MP bem como o dos juízes de primeira instância. Com efeito, segundo o acórdão
hoje divulgado, “a amnistia é uma figura jurídica que faz parte do sistema
penal angolano, como do sistema penal português e dos sistemas de justiça modernos”.
Por isso, “temos de aceitar que as leis de amnistia são mecanismos normais nos
sistemas jurídicos como o português e o angolano, nos sistemas de direito
continentais e na generalidade dos sistemas jurídicos modernos e [que] a sua
aplicação faz parte do funcionamento normal desses sistemas”. Para os
magistrados da Relação, a boa administração da justiça não se identifica sempre
e necessariamente com a condenação e o cumprimento da pena.
Os advogados de Manuel Vicente tinham recorrido para o Tribunal da Relação
invocando o regime de imunidade do ex-Vice-Presidente angolano. E agora a defesa refere:
“Deseja apenas manifestar publicamente, para
já, a sua satisfação com a decisão, não só por reconhecer razão ao nosso
recurso e ao que sempre defendemos, como podendo ser uma solução juridicamente
adequada, mas também porque esta decisão pode contribuir para
afastar qualquer possível clima ou ideia de desconfiança ou desconsideração
entre sistemas jurídicos de Estados soberanos e cooperantes”.
Em nota de Rui Patrício e João Lima Cluny, pode ler-se:
“Queremos também neste momento reiterar que
as questões relacionadas com os mecanismos de cooperação entre Estados e com as
imunidades não constituem prerrogativas ou privilégios pessoais, são sim
questões de Direito e de Estado, às quais um ex-Vice-Chefe de Estado e atual
deputado está naturalmente vinculado, sendo certo que continuamos
convictos e empenhados na continuação da demonstração, no momento e pelos meios
e no lugar próprios, de que o Sr. Eng. Manuel Vicente nada tem que ver com os
alegados factos que quiseram imputar-lhe”.
Já em fevereiro, a defesa de Vicente – protagonizada pelos advogados acima
mencionados – defendeu que o seu constituinte devia ser julgado em
Angola e não pela Justiça portuguesa.
O julgamento começou em janeiro, mas sem contar com a presença de Vicente, já que a parte relativa ao ex-presidente da Sonangol foi separada
do processo principal.
Os advogados da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva
& Associados destacavam várias razões para este processo
relativo a Vicente ser, duma vez por todas, transferido para Angola, para
evitar um caso de “denegação de justiça”, ou seja, situação que se verifica
quando não são cumpridas as normas processuais em proveito de alguma das
partes. Um dos argumentos passa pela possibilidade – prevista na Lei de
Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – de as autoridades
judiciárias portuguesas recuperarem “o direito de proceder criminalmente”
contra Manuel Vicente, caso Angola não dê andamento ao processo.
***
O Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva já reagiu ao envio do processo
de Vicente para a Justiça de Angola, dizendo tomar “muito boa nota” e que a relação
bilateral já pode voltar “ao nível mais alto”. E, questionado se esta
decisão permitirá agora que o Primeiro-Ministro visite Angola – algo que esteve
previsto, mas não se concretizou –, Santos Silva respondeu que “esse é um
trabalho muito prioritário para a diplomacia portuguesa”.
Por seu turno, o Presidente da
República assumiu que a transferência de Manuel Vicente para Angola retiraria a
tensão entre os dois países, que estão “vocacionados a encontrarem-se”.
Marcelo
Rebelo de Sousa disse ter sido surpreendido com a informação de que o caso de
Manuel Vicente seria transferido para Angola e disse aos jornalistas:
“Se
for assim, se quem tem poder de decidir decide isso, isso significa que há uma
transferência, e havendo, desaparece o irritante”.
A
expressão “irritante” foi adotada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que
qualificou assim, citando o Primeiro-Ministro, o fator de tensão entre Angola e
Portugal.
Santos
Silva esclarecera à Lusa que a expressão lhe parecera feliz: “Não
ignoro que há aqui – como o
Primeiro-Ministro disse, numa expressão que me pareceu feliz – um irritante. Há
uma agravante que é: a solução desse irritante não está nas mãos, nem do
presidente da República, nem da Assembleia da República, nem do Governo. Não
está nas mãos do poder político, mas com paciência, com sentido de Estado, com
a responsabilidade de todos, superaremos esse irritante e convém não
exagerá-lo”.
Para o
Presidente da República, em declarações à RTP, a transferência faz desaparecer
“o pequeno ponto, menor, que existia a ser invocado periodicamente entre
Portugal e Angola”. Interpelado sobre se as relações entre os dois países
poderiam melhorar, Marcelo respondeu:
“Já
na próxima semana há uma cimeira militar entre os dois países, portanto eu
sempre achei que os países estavam vocacionados a encontrarem-se”.
Marcelo Rebelo
de Sousa referiu-se ao caso de Manuel Vicente como “o irritante”, utilizando
uma expressão que já foi usada por António Costa e por Augusto Santos Silva.
Na
próxima semana, o Ministro da Defesa, Azeredo Lopes, vai visitar Angola no âmbito
da cooperação técnico-militar entre Portugal e os países da CPLP podendo
mesmo encontrar-se com o seu homólogo no país.
***
O irritante foi ultrapassado e já não era sem
tempo. É tempo de se estreitarem as relações diplomáticas, se intensificar a
cooperação e se trabalhar pelo progresso dos dois países e pela dignidade dos
cidadãos. Que a Justiça funcione, mas sem atrapalhar a diplomacia e o direito.
2018.05.10 – Louro de Carvalho
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