quinta-feira, 30 de setembro de 2021

“Já não há tempo para esperar, é preciso agir”

 

É uma lancinante asserção do Papa em mensagem datada de 23 de setembro e conhecida a 29, enviada aos participantes no evento de alto nível da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa em torno do tema “Meio Ambiente e Direitos Humanos: Direito à Segurança, Meio Saudável e Sustentável” a decorrer em Estrasburgo.

Na mensagem, referiu o convite do Presidente Rik Daems para falar do cuidado com o meio ambiente, nesta nossa casa comum, “presente que recebemos e que devemos cuidar, preservar e levar por adiante”. E reiterou que a Santa Sé, como país observador, acompanha com atenção e interesse todas as atividades do Conselho a este respeito, certa de que todas as iniciativas e decisões concretas desta Organização que melhorem a dramática situação da saúde do planeta devem ser apoiadas e valorizadas.

Recordou que, naquele hemiciclo, a 25 de novembro de 2014, sublinhara a estreita colaboração entre a Santa Sé e o Conselho da Europa e reiterou que “entre os temas que requerem reflexão e colaboração está a defesa do meio ambiente da terra que é o grande recurso que Deus nos deu e pôs à nossa disposição, não para ser desfigurada, explorada e degradada, mas para nela vivermos com dignidade, “desfrutando da sua imensa beleza”. Também frisou que, na encíclica Laudato si’, relevou a importância de “cuidar da casa comum, princípio universal que envolve não só os fiéis cristãos, mas toda a pessoa de boa vontade que se preocupa com a proteção do meio ambiente”. E mostrou-se convicto de que este evento – que ocorre em vésperas da próxima cimeira mundial da ONU sobre as alterações climáticas (COP26), em que Papa tenciona participar – oferecerá, por força do multilateralismo, cada vez mais valorizado, uma contribuição válida também para a próxima reunião das Nações Unidas. 

Por outro lado, a Santa Sé está convicta de que qualquer iniciativa do Conselho da Europa não se deve limitar ao espaço geográfico do continente, mas chegar a todo o mundo. 

Nesse sentido, vê-se com interesse a decisão de criar um novo instrumento jurídico que ligue o cuidado do meio ambiente com o respeito dos direitos humanos fundamentais. E, vincando que “não há mais tempo para esperar, devemos agir”, Francisco entende que “qualquer instrumento que respeite os direitos humanos e os princípios da democracia e do Estado de direito” será “útil para enfrentar este desafio global”. Efetivamente, como adverte o Pontífice, ninguém pode negar o direito fundamental de cada ser humano “a viver com dignidade e a desenvolver-se integralmente”; e se todos nós, seres humanos, nascemos com a mesma dignidade, temos obrigação, como comunidade, de garantir a cada pessoa que “viva com dignidade e tenha oportunidades adequadas para o seu desenvolvimento integral”. E, se o ser humano se julga senhor do universo e não seu administrador responsável, não reconhece a sua posição correta em relação ao mundo, justifica qualquer tipo de desperdício, tanto ambiental e humano, e trata as outras pessoas e a natureza como meros objetos.

Parafraseando o dizer dos antigos “Esse oportet ut vivas, non vive ut edas(é preciso comer para viver, não viver para comer), o Papa assenta em que “é preciso consumir para viver, não viver para consumir” e, sobretudo, nunca se deve consumir descontroladamente, devendo todos “usar a terra para seu sustento”. E, como tudo está interligado, a família das nações deve, segundo o Pontífice, a preocupação comum de “fazer com que o meio ambiente seja mais limpo, puro e conservado”, cuidando da natureza, “para que ela cuide de nós”. Porém, isto postula “uma verdadeira mudança de rumo, uma nova consciência da relação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a sociedade, com a criação e com Deus”.

Ora, sendo esta crise ecológica “uma crise socioambiental única e complexa”, ela impele-nos ao diálogo interdisciplinar e operacional a todos os níveis, do local ao internacional, do individual ao coletivo. Por conseguinte, devemos equacionar os deveres de cada ser humano de viver em ambiente saudável, saudável e sustentável; e, em vez de falarmos apenas de direitos que nos são devidos, devemos também pensar na responsabilidade que temos para com as gerações futuras e com o mundo que queremos deixar às crianças e jovens.

Por isso, Francisco espera desta assembleia a capacidade de identificar, promover e implementar, com determinação, todas as iniciativas necessárias para construir um mundo mais saudável, mais justo e mais sustentável, pois, uma vez que “recebemos das mãos de Deus um jardim, não podemos deixar um deserto aos nossos filhos”. 

E o repto final do Papa Francisco é que “ajamos com esperança, coragem e vontade, tomando decisões concretas”, pois, se o objetivo é proteger a casa comum e a dignidade de todo o ser humano, as decisões não podem ser deixadas para amanhã.

***

Por seu turno, o seminário de jovens que decorre em Milão sobre a promoção da educação sustentável do ‘Youth4Climate’ recebeu e apreciou uma videomensagem papal de apoio a esta iniciativa e a todas as iniciativas que as novas gerações empreendam na luta contra as alterações climáticas. Por outro lado, Francisco preocupações para a COP26, que se realiza em novembro na cidade de Glasgow (Escócia), e alerta para eminência da pobreza energética.

O Papa agradece os sonhos e projetos de bem que os jovens acalentam, bem como a importância que dão às relações humanas e ao cuidado com o meio ambiente – visão que “pode colocar o mundo adulto em crise”, pois o mundo juvenil está disponível para a ação e para “a escuta paciente, o diálogo construtivo e a compreensão mútua”.

Depois, encoraja os jovens a unirem forças numa ampla aliança educativa para “formar gerações de bons, maduros, capazes de superar as fragmentações e reconstruir o tecido das relações” de modo a chegarmos “a uma humanidade mais fraterna”. E considera que dizer que os jovens são o futuro é pouco: eles são o presente, pois estão “no presente a construir o futuro”.

Recorda que o Global Education Compact, lançado em 2019, indo nessa direção, “tenta dar respostas compartilhadas à mudança histórica que a humanidade está a experimentar e que a pandemia tornou ainda mais evidente”. E sustenta que “não bastam as soluções técnicas e políticas, se não estiverem ancoradas na responsabilidade de cada integrante e por um processo educativo que favoreça um modelo cultural de desenvolvimento e sustentabilidade voltado para a fraternidade e a aliança do ser humano com o meio ambiente”.  Com efeito, na ótica do Pontífice, tantas vezes expressa, “deve haver harmonia entre as pessoas, homens e mulheres e o meio ambiente”, pois não somos inimigos nem indiferentes”, antes “fazemos parte dessa harmonia cósmica”. Mais podem, com ideias e projetos comuns, encontrar-se “soluções que superem a pobreza energética e ponham o cuidado dos bens comuns no centro das políticas nacionais e internacionais, favorecendo a produção sustentável, a economia circular, a agregação de recursos energéticos, as tecnologias adequadas”. E adverte que “é tempo de tomar decisões acertadas para que saibam aproveitar as muitas experiências adquiridas nos últimos anos, para tornar possível uma cultura do cuidado, uma cultura da partilha responsável”. Por isso, o Santo Padre acompanha esta caminhada e encoraja os jovens “a desenvolverem o seu trabalho pelo bem da humanidade. 

***

São, enfim, preocupações do líder máximo duma Igreja que se revela atenta aos dramas da humanidade nos tempos que correm e que está pronta a dar a mão, não para anatematizar, mas para abençoar, encorajar e entrar em cooperação, pois as grandes causas do ser humano são a prioridade, pois onde estão os dramas do homem está o coração de Deus em lancinante apelo.

2021.09.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A vida na fé

 

Este é, neste dia 29 de setembro, o título da catequese do Papa na sua habitual audiência geral de quarta-feira, em que aborda um dos temas centrais do ensinamento paulino: a justificação.

Preliminarmente a esta reflexão, é de recordar que o Pontífice começou, a 23 de junho, a refletir com os seus espectadores e ouvintes sobre a doutrina da Carta aos Gálatas, sendo que, à data, sublinhou o cuidado evangelizador do Apóstolo que, após fundar Igrejas, continuava a acompanhá-las e a alertá-las para os perigos dos detratores do Evangelho e a repor a verdade da sã doutrina e da índole sadia dos usos e costumes que ela inspira. É o caso deste povo a quem outros tentaram pregar mensagem evangélica diferente da de Paulo.

No dia 30 de junho, o Santo Padre referiu-se ao perfil apostólico de Paulo como “verdadeiro conhecedor do mistério de Cristo” e apóstolo autêntico segundo a escolha direta do Cristo ressuscitado, como faz questão de lembrar aos Gálatas para que não restem dúvidas.       

Retomadas as catequeses semanais em 4 de agosto, depois da justificada pausa no mês de julho, como é usual, e em que se sujeitou a uma intervenção cirúrgica, o Papa desenvolveu o tema tão caro a Paulo da unicidade do Evangelho de Cristo. Tanto assim é que o apóstolo disse aos Gálatas que, mesmo que um anjo anuncie outro Evangelho, não podem acreditar porque é falso. 

A 11 de agosto, Francisco abordou a questão do valor da Lei de Moisés. Relacionada com a Aliança entre Deus e o Povo de Israel, ela funciona como caminho para a Nova e Eterna Aliança firmada em Cristo. E os missionários que se infiltraram entre os Gálatas tiveram a oportunidade de afirmar que a adesão à Aliança implicava a observância da Lei mosaica, como era na altura. Porém, é sobre este ponto que se descobre a inteligência espiritual de Paulo e as grandes intuições que expressou, sustentado pela graça que recebeu para a sua missão evangelizadora.

O apóstolo ensina que a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente ligadas. Na verdade, a Aliança estabelecida por Deus com Abraão fundava-se na fé no cumprimento da promessa, não na observância da Lei, que ainda não existia. E a Lei, que chegou centenas de anos mais tarde, “não pode anular a promessa”. Se a herança se obtivesse pela Lei, não proviria da promessa. A palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus caminha pela vida olhando para uma promessa, a que nos atrai para o encontro com o Senhor. Contudo, embora a Lei não integre a promessa, Paulo defende a sua origem divina e afirma que desempenha um papel específico na história da salvação, pois, apesar de não poder oferecer o cumprimento da promessa, é um caminho ou o pedagogo que leva ao encontro com Cristo. E esta postura doutrinal do apóstolo frisa a novidade radical da vida cristã: quem tem fé em Cristo é chamado a viver no Espírito, que liberta da Lei, levando-a ao cumprimento segundo o preceito do amor.

Na catequese de 18 de agosto, o tema é “o valor propedêutico da Lei”. É ponto assente que somos filhos da promessa e chamados à liberdade. Por isso, há que entender qual é o papel específico da Lei. A Lei foi ato da magnanimidade de Deus para com o povo. Era restritiva, mas protegia, educava, disciplinava e apoiava o povo na sua fraqueza, sobretudo face ao paganismo. Por isso, o apóstolo aponta a fase da menoridade: “enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo pai; assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos elementos do mundo(Gl 4,1-3). Assim, a convicção do Apóstolo é que a Lei tem uma função positiva: como pedagogo, leva em frente, mas a sua duração não pode ser prolongada, pois está ligada ao amadurecimento das pessoas e à sua escolha da liberdade. Mais: tal filiação torna-nos iguais: já não há homem ou mulher, livre ou escravo, judeu ou gentio; todos somos irmãos em Cristo.  

A 25 de agosto, o Papa advertiu para os perigos da Lei. O cumprimento frio e estrito da Lei leva ao ritualismo formal, à hipocrisia, ao medo da verdade, à falta de transparência, ao rigorismo. Por isso, necessita-se da obtenção e fruição da liberdade do Espírito.

A insensatez dos Gálatas dominou a catequese de 1 de setembro. Viveram a liberdade do Espírito e perceberam que toda a boa iniciativa parte de Deus, mas deixaram-se enrolar por falsos pregadores. Com as suas exigências em nome da Lei, criam a dúvida e a confusão, o que pode ser fatal para a vida na fé. Por isso, o apóstolo reitera aos Gálatas que o Pai “doa o Espírito abundantemente” e realiza obras maravilhosas entre eles. 

Na catequese de 8 de setembro, é acentuada a nossa condição de filhos de Deus. Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos verdadeiramente filhos de Deus e seus herdeiros. Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de filhos de Deus. E é bom recordar com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para vivermos com maior consciência o grande dom recebido.

***

Desta feita (a 22 falou da viagem ao coração da Europa), o Santo Padre Francisco trata, como se disse, o difícil tema da justificação. Justificar (do latim “iustum + facere”) consiste em tornar justo quem não o era. É um processo de mudança: nós, que éramos pecadores, fomos tornados justos, ou seja, apesar de termos pecados pessoais a cujo perdão estamos vocacionados e que obteremos pelo arrependimento, se possível, por mediação eclesial, “na base somos justos”.

Na Carta aos Gálatas e na Carta aos Romanos, Paulo insiste em que a justificação vem da fé em Cristo, não das obras da Lei (de Moisés). É verdade que mostramos que somos justos cumprindo os mandamentos, mas não é neles que está a justificação. O cumprimento deles é sintoma de que estamos na rota que Deus nos traçou com eles para chegarmos a Jesus Cristo, o Justo. É d’Ele que nos vem a justificação. Com efeito, cumprir os mandamentos de modo puramente formal ou sem referência a Jesus Cristo, o objeto da nossa fé, é prática inútil. O justo vive da fé em Cristo.    

E o que, segundo a ótica paulina, está por detrás da “justificação”, tão decisiva para a fé, “é a “misericórdia de Deus que oferece o perdão” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1990). E diz o Papa:

Este é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus que perdoa desde o início a cada um, em Cristo. É a misericórdia de Deus que dá o perdão.”.

Depois, é de considerar que a misericórdia justificadora de Deus se manifesta de forma eminente na morte de Jesus na cruz. Portanto, devemos assumir que foi através da morte de Jesus que Deus destruiu o pecado e nos doou o perdão e a salvação de forma definitiva. Por isso, tornados justos, “os pecadores são acolhidos por Deus e reconciliados com Ele”. É o regresso à relação original entre Criador e criatura, que existia antes de emergir a desobediência do pecado. Assim, a justificação é a recuperação da inocência perdida.

Depois, é oportuno e salutar ver o modo como ocorre a justificação. E nisso descobrimos uma reconfortante novidade: “fomos justificados por pura graça”. Se, em termos humanos, é admissível que se pague para se ter justiça, na economia da salvação, a justiça – a que nos torna justos – é fruto exclusivo da gratuitidade de Deus. Pagou alguém por todos nós: Cristo.

De Jesus Cristo que morreu por nós vem a graça que o Pai concede a todos: a justificação vem pela graça. Não se compra, não se paga; não é nosso merecimento, mas de Cristo.

O Sumo Pontífice não se esquece de vincar que Paulo tem sempre na mente a experiência que lhe mudou a vida: o encontro luminoso com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo era homem orgulhoso, religioso e zeloso, convicto de que a justiça consistia na escrupulosa observância dos preceitos. Porém, uma vez conquistado por Cristo, a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, dando-lhe a descobrir a verdade escondida: “não somos nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços”, mas é “Cristo com a sua graça que nos torna justos”. E, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, Paulo está disposto a renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf Fl 3,7), pois descobriu que só a graça de Deus o salvou. Fomos justificados ou salvos só pela graça, o que nos dá imensa confiança. Somos pecadores, mas seguimos o caminho da vida com a graça de Deus que nos justifica sempre que pedimos perdão.

Para o Apóstolo, a fé tem um valor total: toca toda a vida do crente, isto é, “desde o batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e ressurreição de Jesus, que concede a salvação”. E “a justificação pela fé enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no seu Filho sem distinção alguma”.

Todavia, não podemos concluir que a Lei mosaica não tenha valor; antes, continua a ser um dom irrevogável de Deus. Paulo até a chama de “santa” (Rm 7,12). De facto, é essencial observar os mandamentos, mas não podemos confiar na nossa força, pois é a graça do amor gratuito de Deus que recebemos em Cristo que é fundamental e nos leva a “amar de modo concreto”.

E Francisco, a complementar a doutrina paulina, evoca o discurso da Carta de Tiago no atinente ao binómio fé-obras. Com efeito, uma vez que a convicção de que é a fé em Cristo que justifica o homem pode levar – e levou muitos – à desvalorização da prática dos mandamentos e à desatenção aos deveres para com os outros, tem de se apelar à importância das obras que nos compete realizar em nome da fé. Não são as obras que nos justificam, mas o sangue de Cristo derramado amorosamente por nós como se se tratasse dum piedoso pelicano, o que nos convoca para a fé em Cristo, a exprimir nas obras, sem as quais é morta. Por isso, é bem-vinda a elocução jacobeia de que “o homem é justificado pelas obras e não somente segundo a fé”, pois, “tal como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta(Tg 2, 24.26). Por conseguinte, para Paulo e para Tiago, “a resposta da fé exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo”, já que o amor nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente.

A justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de Deus face às nossas quedas e insuficiências, que não se resignou, mas quis tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, na sua morte e ressurreição, bem ao estilo de Deus, que “é proximidade, compaixão e ternura”. E, segundo o Papa, a justificação é a maior proximidade de Deus a nós, a maior compaixão de Deus por nós, a maior ternura do Pai. A justificação é o dom de Cristo na morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. Pecámos, mas na base somos justos e santos. Temos é que deixar que Jesus implemente em nós a justificação. “Somos santos na base e, pelas nossas ações, tornamo-nos pecadores. Então “deixemos que a graça de Cristo se eleve e a justiça nos dê força para ir em frente. E a luz da fé leva-nos reconhecer quão infinita é a misericórdia de Deus e a responsabilidade de colaborar com Deus praticando a misericórdia.

2021.09.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Começa a entediar a acusação aos portugueses de défice interpretativo

 

Precisamente no dia em que o Governo tomou e anunciou as medidas para a última fase de desconfinamento que vão entrar em vigor a 1 de outubro, Eurico Brilhante Dias, Secretário de Estado da Internacionalização, considerou que Portugal ficou a “ganhar” com a covid-19.

Não se pode pensar que tenha sido um lapsus linguae da parte do governante, que bem sabia que estava a dizer algo chocante, uma vez que advertiu: “vou dizer uma coisa que pode ser politicamente incorreta”.

Depois, a explicar o que não tem explicação, explanou a razão por que julga que nós ganhámos com a covid-19: “Portugal foi um país que, tendo as suas dificuldades, enfrentou a covid com bastante êxito”.

Ora, ainda que tivesse sido verdade, que o não foi totalmente… Uma pandemia que originou uma crise económica e social de todo o tamanho e provocou um terrível desconforto humano, por mais lucros que possa trazer, tem sempre perdas enormes em termos contabilísticos e perdas incalculáveis porque atinentes à vida humana, que não tem preço, a não ser o do sangue de Cristo na ótica dos crentes. 

Admite o Secretário de Estado que “evidentemente faleceram muitas pessoas” e que “passaram muito mal”. Porém, esqueceu que os serviços de saúde iam colapsando; as restantes doenças ficaram para trás durante muitos meses; o país quase parou economicamente; houve cercas sanitárias, confinamento, calamidade e emergência, funerais quase clandestinos, lutos por fazer, sequelas na saúde deixadas pela covid, a nível físico e a nível mental, relações familiares saturantes, eclipse dos eventos e mostras culturais e desportivas, quebras irreversíveis nas diversas valências do turismo, alteração drástica nos contactos sociais, incertezas a todos os níveis, multiplicação de gastos a nível da imunização e desinfeção e a nível dos equipamentos de proteção individual, que teimavam a não aparecer no mercado; faltava material de apoio à recuperação da suade, nomeadamente ventiladores; há conteúdos escolares e académicos não aprendidos cuja recuperação é muito difícil para muitos estudantes; cresceram as desigualdades.

E, sobretudo, as pessoas deixaram de se olhar cara a cara e criaram-se desconfianças mútuas!          

O governante apontou Portugal como “um país organizado que enfrentou uma realidade disruptiva com sucesso”. Que organização? Impôs-se a utilização das máscaras sem que se soubesse quem as forneceria, quando no ano anterior ao conhecimento da covid os chineses aqui residentes compravam as existentes e as usavam ou remetiam para o seu país de origem.

Figuras públicas certificaram-nos em março de 2020 de que a epidemia não aterraria em Portugal ou que os casos seriam residuais. Andámos atrás e à frente. Os materiais faltavam ou eram exorbitantemente caros ou vinham com manuais vertidos em língua não utilizada em Portugal pela maioria dos profissionais. E alguns enriqueceram à custa deste negócio.

É certo que tudo acabou por aparecer e encontrámos o rumo, mas custou e levou tempo. E isto, sem fazer contas às moratórias, aos equipamentos de proteção coletiva em estabelecimentos abertos ao público e aos gastos que o Estado despende em apoios diversos a empresas e trabalhadores e em vacinas…  

Como é que o Secretário de Estado da Internacionalização pôde afirmar que “rapidamente em 2020 fomos das primeiras economias a reabrir e a mostrar que a economia estava aberta e isso teve um efeito positivo sobre a marca Portugal”, quando os efeitos do confinamentos ainda estão por calcular? Até o Primeiro-Ministro, questionado sobre esta polémica, rejeitou comentar e disse: “Concentremo-nos no essencial”.

Segundo dados mais recentes da DGS, a pandemia já provocou 17.938 mortes em Portugal e o número de pessoas infetadas pelo coronavírus é superior a 1 064 876. É um ganho grande, não?!

É certo que se inventaram muitas atividades, muitas empresas se reconverteram, muitos modos de comunicação e de presença se descobriram e intensificaram e o país se relevantará, mas o tempo perdido não se recupera. O governante podia ter visto na crise uma oportunidade, mas nunca um ganho. 

Instado a um pedido de desculpas às famílias das vítimas diretas e indiretas da pandemia – letais ou não –, a desculpa, que não o é, recaiu sobre o entendimento incorreto das palavras do Secretário de Estado.

***

Fazendo apelo à memória, torna-se-me claro que é recorrente a colocação do ónus da culpa dos disparates de governantes e outras figuras públicas na interpretação errada que fazemos das suas declarações.

A este respeito – e para não estar a “pelourinhar” apenas um governante atual e só dum determinado partido – recordo que o então Ministro da Defesa Nacional, Fernando Nogueira, questionado por que motivo se reparou, nas OGMA, motor de avião da indonésia (que ocupava Timor-Leste), respondeu que não se sabia que o motor era da Indonésia, porque o motor foi entregue por uma firma francesa e “os motores não têm número nem marca de origem”. Disse-o perante a Assembleia da República e pela Televisão. Que diabo! Fazer de todos nós parvos…

E, se falarmos em comentadores, principalmente comentadores políticos, e até apresentadores de televisão, confrange a pretensa preocupação assaz expressa por que os portugueses em casa percebam ou a asserção que o povo não entende, as pessoas não percebem.

Recordo que Vítor Gaspar falava muito devagar para que deputados, jornalistas e portugueses em geral tomassem nota e percebessem. E a deputados e jornalistas até advertia: “vejam na página x ao fundo” ou “virem a página”.

E aqueles manuais do aplicador para as provas finais d 2.º e 3.º ciclos, fornecido pelo GAVE, ora IAVE-IP, tratavam o professor como um mentecapto escrevendo tudo o que este devia dizer aos alunos, incluindo coisas como: “minhas meninas e meus meninos”; “vira a página”; “para aí”; “revê o que fizeste e corrige”; “não assines”…

Farta tratarem-mos como incompetentes em hermenêutica elementar. É certo que há roídos de comunicação, mas a média dos portugueses está alfabetizada e, sobretudo, não quer receber lições dos políticos. Antes quer que eles sejam verdadeiros “poli-iatras”, ou cuidadores dos supremos interesses da pólis e do bem-estar dos cidadãos.

De resto, apesar do ambiente de medo promovido nalguns universos eleitorais e do regime de dependências criado por alguns caciques nacionais, regionais e locais, muitos cidadãos sabem muito bem distinguir em quem votar, o que se vê por algumas discrepâncias entre o voto de alguns eleitores para câmara municipal, assembleia municipal e assembleia de freguesia. E, se muitos alinham no status quo, fazem-no ao serviço dos seus interesses, na convicção de que quem está com o poder instituído tem benefícios e quem não está terá restos.

Se querem que nós os entendamos no melhor sentido, não falem ao virar da esquina. Pensem primeiro e falem a seguir.

Lembro que alguns políticos com responsabilidades governativas ou oposicionistas gostam de tratar os portugueses como crianças ou adolescentes explicando que algumas medidas branqueiam o problema sem o erradicarem, funcionando como a aspirina que não cura a doença, só ataca os sintomas. E, na sua iliteracia sanitária, um até quis combater o “vírus” (o SARS-CoV-2) com antibiótico. Só há um político – altamente colocado – que sabe mais que os especialistas das áreas da saúde. Só não refiro o seu nome para não beliscar a sua soberba modéstia. 

A palavra é como a pedra que nos sai da mão ao atirá-la: nunca sabemos aonde vai cair e quem vai atingir. Só a dominamos enquanto está do nosso lado. Por isso, temos de cuidar da sua emissão e receção em boas condições.

Ainda no domingo, a par dos discursos inflamados, admirei a inusual paciência do Primeiro-Ministro a responder aos jornalistas e a serenidade constrangida dum candidato derrotado a declarar que não iria analisar naquele momento os resultados eleitorais, mas que o povo votou e, como democrata, aceita os resultados.

A pari, vi o líder renovado da socialdemocracia satisfeito com os resultados do seu partido apesar de algumas baixas expectativas alimentadas por jornalistas e comentadores. Só notei uma duplicidade de critérios sobre sondagens. Gostou das que lhe davam o empate com vantagem em Coimbra e não das que davam a derrota em Lisboa. Por isso, propor que as sondagens ou não se façam ou se façam em condições é supor que as sondagens devem ser um instrumento infalível ou que são um fator perverso.

Ora, como toda a gente sabe, pode haver sondagens pagas para um determinado sentido e isso não é sério. Porém, as sondagens são um instrumento previsional e só valem como tal. De resto, podem falhar por várias razões: o retrato que as sondagens produzem das intenções de voto num determinado momento pode não ter sido representativo da realidade de então; pode o perfil do eleitor inquirido ser mais próximo de um ou de outro dos candidatos; pode haver alterações na intenção de voto entre o momento da sondagem e o da eleição; a amostra pode não ser suficientemente diversificada; os inquiridos podem ter mudado de intenção de voto ou não ter sido sinceros aquando do inquérito; pode haver um crescimento ou uma inversão da tendência sobre a perceção das qualidades ou dos deméritos dos candidatos; podem surgir danos ou benefícios colaterais, como pode surgir um determinado perfil de elemento saliente duma das candidaturas; e pode a publicação de sondagens gerar um efeito no eleitorado, mobilizador, ao verem o seu candidato em risco, ou desmobilizador, ao verem o seu candidato de pedra e cal.

Ora, como estamos num campo e atividade volúvel e perante dados de ciências sociais e humanas, estas coisas devem ser tratadas tendo em conta as diversas variáveis e jogar sempre e em tudo pelo seguro, não fazendo carregar os outros com o ónus das nossas culpas, sobretudo se exibicionistas, e não os tratar como ineptos de entendimento!

2021.09.28 – Louro de Carvalho

Em 2021, a noite da reformulação da governança autárquica

 

Com resultados previsíveis ou surpreendentes, o ato eleitoral de 2021 ditou, por vontade do povo, a mudança de presidências de municípios e de freguesias sob um teto abstencionista de 46,32%, menor que em 2013 (47,4%). Porém, usualmente os resultados aferem-se pelas presidências de câmaras obtidas, perdidas ou mantidas.

Apesar das perdas – as mais relevantes das quais Lisboa e Coimbra – o PS continua a ser o partido com mais presidências de câmaras, tendo passado de 160 para 149 (sendo uma em coligação com o Livre): são menos 11, pelo que perde, por si, a maioria absoluta na ANMP (Associação Nacional dos Municípios Portugueses), sendo que, para a manter, terá de negociar.

O PSD aumenta as presidências. Passa de 98 (19 das quais em coligação) para 114 (42 em coligação), superando o resultado de 2013 (106 presidências), um dos objetivos para Rio se manter na liderança. A CDU volta a perder presidências, como já tinha perdido há 4 anos. Agora fica com 19, sendo que em 2017 tinha tido 24 e, em 2013, 34. O CDS-PP, que tinha seis, continua com 6. O JPP tem uma. Já as listas independentes crescem ligeiramente, de 17 para 19 presidências. Uma das novas é a de Pedro Santana Lopes, de regresso à Figueira da Foz.

***

Analisando por distritos e regiões autónomas,

Das 19 câmaras do distrito de Aveiro, 6 mudam: Águeda (de independentes para o PSD), Castelo de Paiva (de PS para PSD), Espinho (de PSD para PS), Ílhavo (de PSD para independentes), Mealhada (de PS para independentes) e Sever do Vouga (de PS para PSD). Assim, o PSD passa de 8 para 9 presidências; o PS encolhe de 6 para 4; as câmaras independentes são 3 (Anadia, Ílhavo e Mealhada), quando em 2013 eram duas (Anadia e Águeda). O CDS-PP mantém as suas 3 câmaras: Albergaria-a-Velha, Oliveira do Bairro e Vale de Cambra.

Em Beja, PS e CDU mantêm o mesmo número de câmaras, respetivamente 10 e 4. As duas mudanças dão-se em Barrancos (a CDU reconquistou a câmara ao PS) e em Alvito (a CDU perde para o PS).

Nos 14 concelhos do distrito de Braga, o PSD mantém o mesmo número de presidências (9). Conquistou Barcelos ao PS – vitória importante – mas perde para o PS Póvoa de Lanhoso. Este passa de 4 para 5 presidências, conquistando Vizela, que era a única independente do distrito.

Em Bragança, as presidências repartem-se entre o PS e o PSD, invertendo-se agora a maioria conquistando-a os socialdemocratas aos socialistas. O PS detinha 7 presidências e passa a ter 5, enquanto o PSD sobe de 5 para 7. Os socialistas perdem Miranda do Douro, Mogadouro e Vila Flor (para o PSD), conquistando apenas Freixo de Espada à Cinta. O resto fica igual: Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros, Mirandela e Vinhais continuam PS; Bragança, Carrazeda de Ansiães, Torres de Moncorvo e Vimioso continuam PSD.

No distrito de Castelo Branco, só a câmara Sertã passa do PSD para o PS. De resto, tudo fica na mesma: PS com 8 câmaras (Belmonte, Castelo Branco, Covilhã, Idanha-a-Nova, Penamacor, Proença-a-Nova Sertã e Vila Velha de Ródão); E PSD agora com 3 (tinha 4): Fundão, Oleiros e Vila de Rei.

Nas 17 câmaras de Coimbra, registam-se 5 mudanças, sendo o PS que regista mais perdas. Perde 4 câmaras: 3 para o PSD (Coimbra, Penacova e Góis) e uma, Figueira da Foz, para o independente Pedro Santana Lopes. Detinha 12 presidências e passa para 9 (Condeixa, Lousã, Miranda do Corvo, Montemor-o-Velho, Oliveira do Hospital, Soure, Tábua e Vila Nova de Poiares e Penela. Esta conquistada ao PSD). E o PSD passa de 5 para 7: mantém Arganil, Cantanhede, Mira e a Pampilhosa; ao PS conquistou Coimbra, a capital do distrito – uma das principais vitórias do partido – e Góis e Penacova.

Em Évora, um resultadão do PSD, que passa a segunda força com mais câmaras, ultrapassando a CDU. Em 14 concelhos, 8 mudam de cor. O PS mantém 6 presidências: 3 que já tinha (Alandroal, Portel e Vendas Novas), uma conquistada a independentes (Estremoz) e duas à CDU (Montemor-o-Novo e Mora). Perde Viana do Alentejo para a CDU e, para o PSD, Reguengos de Monsaraz e Mourão. Os socialdemocratas passam de zero presidências para 4: do PS retiram Mourão e Reguengos; de independentes, Redondo; e, da CDU, Vila Viçosa. Para a CDU, a noite foi terrível: de 5 câmaras passam a 3. Os comunistas mantêm Évora e Arraiolos: e conquistaram Viana do Alentejo ao PS. As presidências independentes passam de 3 para uma (Borba que já era independente).

Em 16 concelhos do distrito de Faro, dois mudam de cor. O PS reforça o número de presidências, passando de 10 para 12. Às câmaras de Alcoutim, Aljezur, Lagoa, Lagos, Loulé, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Tavira e Vila do Bispo junta Monchique e Vila Real de Santo António, tiradas ao PSD. Os socialdemocratas aguentam 3: Albufeira, Castro Marim e Faro. Silves mantém-se na CDU.

Em 14 concelhos do distrito da Guarda, 5 mudam de cor. Um deles é a capital do distrito, que passa do PSD para independentes (dissidentes do PSD). Os socialdemocratas mantêm, no total do distrito, o peso que detinham em presidências: 8. Mantêm Almeida, Celorico da Beira, Gouveia, Pinhel, Sabugal e Vila Nova de Foz Côa; e tiram Figueira de Castelo Rodrigo e Meda ao PS. Já o PS passa de 6 para 3, detendo agora Fornos de Algodres, Seia e Trancoso (que já tinha). Já as listas independentes passam de uma para 3: à que controla Aguiar da Beira acrescentam Guarda (conquistada ao PSD) e Manteigas (era PS).

Nos 16 concelhos do distrito de Leiria, 5 mudam de cor. Os independentes são a força em progressão. Tinham só uma câmara (Peniche, que mantêm) e passam para 4 (conquistaram Batalha e Caldas da Rainha ao PSD e Marinha Grande ao PS). No total das presidências, PSD e PS estão empatados: 6 municípios para o PSD (Alcobaça, Alvaiázere, Óbidos, Pedrógão, Pombal e Porto de Mós) e 6 para o PS (Ansião, Bombarral, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Leiria e Nazaré).

No distrito de Lisboa, não obstante a inesperada transferência da câmara da capital do PS para o PSD, os resultados revelam-se estáveis. O PS compensa a perda de Lisboa com a conquista de Loures à CDU, mantendo 10 câmaras que já detinha e que, além de Loures, são Alenquer, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Lourinhã, Sintra, Amadora, Odivelas, Vila Franca de Xira e Torres Vedras. O PSD sobe de 3 para 4. A Lisboa somam as que mantém (Cascais, Mafra e Cadaval). A CDU detém Sobral de Monte Agraço. E Isaltino Morais mantém-se inamovível em Oeiras.

Das 15 câmaras do distrito de Portalegre, 3 mudam de cor: Portalegre, de independente passa a PSD. Os socialdemocratas conquistaram Alter do Chão ao PS e passam de 4 para 6 municípios: aos dois referidos somam os 4 onde se mantêm no poder: Arronches, Castelo de Vide, Fronteira e Marvão. O PS passa de 8 para 6 presidências. À perda de Alter acrescenta-se Elvas, que passa para um independente (Rondão de Almeida, dissidente do PS). Os socialistas mantêm Campo Maior, Crato, Gavião, Nisa, Ponte de Sor e Sousel. E a CDU aguenta Avis e Monforte.

No Porto (um dos distritos mais estáveis), em 18 concelhos, só muda Vila de Conde (de independente para o PS). O PS (tem 12) continua com Baião, Gondomar, Lousada, Marco de Canavezes, Matosinhos, Paços de Ferreira, Paredes, Santo Tirso, Valongo e Vila Nova de Gaia. O PSD mantém as 5 autarquias que detinha: Amarante, Maia, Penafiel, Póvoa de Varzim e Trofa. A coligação com o PS liderada pelo Livre mantém Felgueiras. E Rui Moreira vê renovada a confiança no Porto.

Dos 21 concelhos de Santarém 5 mudam de cor: dois do PS para o PSD (Alcanena e Cartaxo), um da CDU para o PS (Alpiarça), e um do PS para independentes (Golegã). O PS (com 12) mantém Abrantes, Almeirim, Chamusca, Constância, Coruche, Entroncamento, Salvaterra de Magos, Tomar, Torres Novas e Vila Nova da Barquinha. O PSD (com 7) mantém Mação, Ourém, Santarém e Sardoal. A CDU perde Alpiarça, mas aguenta Benavente.

A CDU mantém-se em Setúbal como a principal força no distrito onde é mais forte, mas perdeu Moita (um município de sempre) para o PS. A CDU passa de 8 para 7 câmaras (Alcácer do Sal, Grândola, Palmela, Santiago do Cacém, Seixal, Sesimbra e Setúbal). O PS sobe de 5 para 6: Moita soma-se aos outros 5 municípios que já controlava: Alcochete, Almada, Barreiro, Montijo e Sines.

Em Viana do Castelo, há poucas mudanças. Só dois concelhos em 10 mudam de cor, ambos conquistados pelo PS (Valença, que era do PSD, e Vila Nova de Cerveira, independente). O CDS-PP aguenta Ponte de Lima; o PSD tem 3: Arcos de Valdevez, Ponte da Barca e Monção; e o PS (com 6) mantém Caminha, Melgaço, Paredes de Coura e a capital do distrito.

No distrito de Vila Real, os 14 concelhos registam uma única mudança: Mondim de Basto passa do PS para o PSD. O PS, ora com 7 concelhos, mantém Chaves, Mesão Frio, Montalegre, Ribeira de Pena, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião e a capital do distrito. O PSD cresce de 6 para 7; e à conquista de Mondim soma a outra meia dúzia de municípios que já controlava: Alijó, Boticas, Murça, Peso da Régua, Valpaços e Vila Pouca de Aguiar. O presidente da câmara de Vila Real é um dos favoritos do PS para suceder a Manuel Machado na presidência da ANMP.

Nos 24 concelhos do distrito de Viseu (o mais fragmentado do país) são 4 as mudanças, com reforço do peso do PSD nas presidências de câmara (passou de 11 para 13, enquanto o PS diminuiu de 11 para 10). O PSD conquistou 3 câmaras: duas ao PS (Lamego e Nelas) e uma a independentes (Oliveira de Frades). Já no PS, a conquista de Mortágua ao PSD não compensou as perdas. Assim, além das autarquias citadas, o PSD mantém Armamar, Castro Daire, Penedono, Satão, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca, Tondela, Viseu e Vouzela; e O PS mantém Carregal do Sal, Cinfães, Mangualde, Moimenta da Beira, Penalva do Castelo, Resende, Santa Comba Dão, São Pedro do Sul e Vila Nova de Paiva. São João da Pesqueira continua independente.

O PSD da Madeira volta a ser o partido com mais câmaras no arquipélago (são 5) que, a nível do governo regional, sempre foi laranja. Detinha 3 presidências (Calheta, Câmara de Lobos e Porto Santo) e a estas soma Funchal (conquistado à coligação liderada pelo PS) e São Vicente (que era de independentes). Com a perda do Funchal (uma das mais importantes para o PS no contexto do país), os socialistas passam de 4 para 3 câmaras (Machico, Ponta do Sol e Porto Moniz). O CDS-PP mantém Santana e o JPP (partido que só existe regionalmente) aguenta Santa Cruz. Os independentes passam a ter apenas a câmara de Ribeira Brava.

Nos Açores, o PS continua como a força com mais câmaras, mas em perda. Passam 4 do PS para o PSD: Vila Praia da Vitória, Santa Cruz da Graciosa, São Roque do Pico e Horta (cidade sede do Parlamento regional). Boa para os socialistas é a conquista de Vila do Porto ao PSD. Assim, o PS tinha 12 câmaras e agora tem 9. Além de Vila do Porto, Lagoa, Povoação, Vila Franca do Campo, Angra do Heroísmo, Lajes do Pico, Lajes das Flores, Santa Cruz das Flores e Corvo. E o PSD cresceu de 5 para 8. Além das câmaras conquistadas ao PS, soma as que detinha: Nordeste, Ponta Delgada, Ribeira Grande e Madalena. O CDS-PP mantém Velas. E Calheta continua independente.

***

O panorama dos resultados eleitorais mostra a surpresa da passagem da câmara de Lisboa do PS para o PSD, mais por demérito do incumbente que pela candidatura ganhadora, o que faz esfriar a polémica pela sucessão de Rio e baralha as contas da futura sucessão de António Costa. Por outro lado, a conquista de Coimbra por José Manuel da Silva, que também contribui para a estabilidade do líder do PSD, foi menos surpreendente. Registo que, em ambos os casos, as candidaturas ganhadoras tiveram a habilidade negocial de porem em marcha uma série bandeiras partidárias no apoio à propalada independência das respetivas candidaturas, embora os chefes de fila sejam socialdemocratas, o que ao nível da transparência não terá sido muito bonito. Veremos se, tendo de governar em minoria, serão hábeis na negociação diária para encontrarem boas soluções para as respetivas autarquias, já que, em regra, precisam de cooperações antagónicas.      

Seja como for, no cômputo geral, o PS, que ganhou, sai algo enfraquecido, enquanto o PSD – sozinho ou coligado mostra-se em ascensão a nível local, sem que se possa daí inferir uma boa saúde a nível nacional. A CDU sai deveras enfraquecida e o BE não pode ainda dizer que tem razoável implantação autárquica. O CDS-PP consegue vincar que não está morto politicamente e aguarda o advento de nova primavera. Ganham terreno os grupos de independentes, embora a maioria seja de dissidentes ou de professos encapotados. Contudo, muitos dos novos partidos conseguem estar representados nas assembleias municipais e nas assembleias de freguesia.

E a estrela nacional é o Presidente da Câmara de Sernancelhe que, tendo conseguido 81,89% dos votos entrados nas urnas, venceu todas as candidaturas concorrentes, ainda que minúsculas, incluindo a abstenção. Deste ninguém pode dizer que derrotaram o presidente da CIM Douro.

E, a propósito, pareceu-me de total inconveniência o brado dos ganhadores de Coimbra de que derrotaram o presidente da ANMP (Só o é por o PS ter ganho as eleições de 2017). Não havia necessidade. Estas eleições foram para os órgãos do poder autárquico e não para outras estruturas. E, como os órgãos dessas estruturas serão eleitos pelos autarcas que resultaram destas eleições, logo se verá. Mais contidos foram os ganhadores de Lisboa: podiam ter gritado que derrotaram o presidente da AML. E o PS de Gaia podia clamar que não derrotaram o presidente da AMP. No entanto, nada disto se disse.   

Compreende-se a euforia de quem ganhou, bem como o desconforto de quem perdeu ou não ganhou tanto como esperava. E, se o debate pré-eleitoral foi um tanto vazio, entediante e bastante truculento, espera-se que, uma vez assente a poeira da campanha, eleitos e opositores façam valer os princípios por que dizem lutar, resolvam os problemas das populações, promovam um bom ordenamento do território e, sobretudo, parem os caciquismos e acabem com o ambiente de dependências e de favor aos “nossos” e rejeição ou desprezo dos “outros”.

Espero que não tenha mais razão o Arcebispo de Braga que, ao ser questionado sobre o que esperava destas eleições, referia não ter ilusões: pouco iria mudar, dado o esquema de dependências e o ambiente de medo visíveis em muitos lugares. Ora, em vez do zelo pelos próprios interesses, os autarcas devem governar as autarquias com a mira no bem-estar das populações, no correto ordenamento do território, na fluida mobilidade, nas boas condições da habitação, comércio, indústria e serviços, na edificação e bom uso dos equipamentos de utilização coletiva. Os autarcas devem assumir-se como servidores, os melhores servidores, porque próximos; e, em vez do medo, inspirar confiança e promover a autonomia das pessoas.

2021.09.27 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Contra a inveja, o exclusivismo, o fechamento

 

A tentação da inveja mina as relações familiares, sociais, políticas e eclesiais. Nada tão mau como levar a mal que os outros tenham tanto êxito como nós ou tenham aquele êxito que nós não conseguimos ter. A incapacidade de nos alegrarmos com a felicidade dos outros é a inveja no seu grau mais caprichoso, só comparável à alegria sentida quando vemos os outros na lama.

Paralelamente, está o exclusivismo que nos formata para o facto de sermos nós os únicos a ter a capacidade de levar por diante grandes empreendimentos: os outros ou não são capazes ou, se tentam, são intrusos e podem tirar-nos poder, riqueza, “sabedoria” e prestígio.

E outrossim, o fechamento no grupo, o zelo apenas por quem alinha connosco, porque pertence ao clã, ao partido, ao clube, à comunidade religiosa, excluindo quaisquer outras iniciativas e contributos por não serem nossos ou dos nossos é cancro que mina toda a comunidade, todo o empreendimento, toda a boa obra.      

O testemunho desta inveja, emulação, exclusivismo ou fechamento emerge neste fabuloso texto veterotestamentário do Livro dos Números (Nm 11,25-29) tomado como 1.ª leitura do XXVI domingo do Tempo Comum no Ano B e que também foi lido a 29 de setembro de 1979, na Sé de Lamego, na Missa de ordenação presbiteral do Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida e minha.

O texto em referência faz remontar a Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos (em hebraico: “tzequenîm”), que recebem, na ótica do catequista bíblico, o Espírito de Deus para colaborarem na governação do Povo de Deus.

Os anciãos, uma instituição no universo político-social e religioso de Israel, são os “cabeças de família” que formavam, em cada cidade, um “conselho” que presidia à comunidade.

É curioso o modo de referir o dom do Espírito: Deus tira “uma parte” do Espírito que estava em Moisés e derrama-o sobre os 70 anciãos. De facto, Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi condividida com os setenta anciãos, o Espírito que repousava sobre Moisés foi repartido por todos. Esta bizarra referência dá a ideia correta da unidade do Espírito e da partilha do mesmo e único Espírito (cf Ef 4,3.4) por todos aqueles que Deus chama à missão.

Mais a presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar. Porém, é de ter em conta que este profetismo não tem nada a ver com o profetismo dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde; designa, antes um estado de entusiasmo, êxtase ou delírio coletivo, com vista à criação dum clima de fervor e exaltação religiosa, vistos então como sinais da presença do Espírito de Deus.

Entretanto, Eldad e Medad, dois anciãos que estariam na lista dos 70 escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da receção do Espírito, começaram a profetizar, o que Josué vê como abuso intolerável, que põe em causa as competências da hierarquia, pelo que propõe a Moisés que lhe ponha cobro. A surpreendente resposta de Moisés é a resposta do homem livre, magnânimo, aberto, nada preocupado com o controlo dos mecanismos de poder, mas com a vida e a felicidade do Povo: “Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!(Nm 11,29). É o protoanúncio do Pentecostes, em que o Espírito se derrama sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf At 2,16-21). É a lição do Espírito que sopra onde e donde quer, não se deixando aprisionar (cf Jo 3,8).

***

Às 12 horas deste dia 26, Francisco apareceu na janela do estúdio do Palácio Apostólico do Vaticano para recitar o Angelus com os fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro. E, ao introduzir a oração mariana, comentou a passagem evangélica deste XXVI domingo do Tempo Comum (Mc 9,38-43.45-47-48), que nos apresenta um breve diálogo entre Jesus e o apóstolo João, falando este em nome de todo o grupo de discípulos. Viram um homem a expulsar demónios em nome do Senhor, mas impediram-no de o fazer, porque ele não fazia parte do grupo. 

Porém, Jesus insta com os discípulos a que não atrapalhem os que trabalham para o bem, pois contribuem para a realização do desígnio de Deus (cf Mc 9,38-41), na perspetiva de que quem não é contra nós é por nós. Isto, sem anular o aforismo de contraponto “quem está comigo está contra mim” (Mt 12,30), que significa “quem se recusa a estar com Jesus obviamente está contra Ele, mas quem faz o que Ele quer não pode dizer mal d’Ele.

Depois, Jesus avisa: em vez de dividir as pessoas em boas e más, somos chamados a zelar pelo nosso coração, para não sucumbir ao mal e escandalizar os outros (cf Mc 42-45.47-48). Na verdade, se o nosso olhar for puro, o coração estiver sem preconceitos e a cabeça sem teias de aranha, nós abrir-nos-emos à moção do Espírito e aceitaremos todo o bem, venha donde vier. 

E o Santo Padre vê nas palavras de Jesus “uma tentação” e “uma exortação”. A tentação leva ao “fechamento”, exclusão e à inveja, a ver, nos outros, os rivais, os adversários, os inimigos, os excomungados, os malfeitores. 

Assinala o Pontífice que “os discípulos queriam impedir um bom trabalho apenas porque aquele que o fez não pertencia ao seu grupo”. Pensavam ter “direitos exclusivos sobre Jesus” e ser os únicos autorizados a trabalhar pelo Reino de Deus, sentindo-se os únicos amados. Daí, terem os outros como estranhos, a ponto de se tornarem hostis para com eles.

É, como refere Frei Bento Domingues na sua crónica dominical no “Público”, é o que “sempre acontece quando o discípulo quer ser mais rigoroso e exigente do que o mestre, para manter a coesão do grupo dos escolhidos e as condições para o exercício correto das suas competências”, pelo que “nunca faltam os zeladores rigoristas, de espírito inquisitorial, para denunciar ao chefe a desordem que está a minar a sua autoridade”. Mais: isto significa a tentativa de impor ao Espírito a observância de regras estabelecidas por nós, como se “o Espírito Santo, o Espírito de profecia, de clarividência na orientação do grupo religioso”, não pudesse fazer o que lhe apraz. 

E o Papa adverte:

Todo o fechamento, de facto, afasta quem não pensa como nós e isso – sabemo-lo – está na raiz de muitos males da história: do absolutismo, que tantas vezes gerou ditaduras, e de tanta violência contra quem é diferente”.

Mas porfia em que “é preciso zelar contra o fechamento da Igreja”, já que o diabo (diabo que dizer: o que divide) “insinua suspeita para dividir e excluir as pessoas”, mesmo que estas  expulsem o próprio diabo. Em vez de querermos dar a impressão de que somos “os primeiros da classe” e manter os outros à distância – fazendo questão de dizer que somos crentes e católicos ou que pertencemos a este ou àquele grupo de fiéis –, devemos ser “comunidades humildes e abertas” e “tentar caminhar com todos”. E, em vez de nos pormos a julgar os outros, acusando-os do pior, havemos de pedir ao Senhor a graça de ‘vencermos a tentação de julgar e catalogar’ e de nos livrarmos “da mentalidade do ‘ninho’, a de zelosamente nos circunscrevermos ao pequeno grupo dos que se consideram bons: “sacerdote com os fiéis, agentes da pastoral fechados entre si, para que ninguém se infiltre, os movimentos e as associações com os seus carismas particulares. Tudo isso, segundo o Papa, corre o risco de tornar as comunidades cristãs lugares de separação e não de comunhão. Ora, ao invés dos fechamentos, o Espírito Santo quer abertura, “comunidades acolhedoras onde haja espaço para todos”. 

Depois, o Evangelho contém uma exortação de Jesus no sentido de, em vez de julgarmos tudo e todos, cuidarmos de nós próprios. De facto, “o risco é ser inflexível com os outros e indulgentes connosco”. Por isso, diz o Pontífice, Jesus exorta a “não nos conformarmos com o mal” com imagens impressionantes ao estilo hiperbólico oriental: “Se algo em ti (pé, mão, olho…) causa um escândalo, corta-o!" (cf Mc 9,43-48)

Obviamente, como advertia o Padre passionista na missa das 12 horas, em Santa Maria da Feira,

Jesus não quer que nos mutilemos, mas que nos decidamos pelo bem removendo tudo o que, na nossa vida, nos sirva de escândalo ou pedra de tropeço. E dizia o sacerdote que a palavra “decisão” contém a noção de “corte”. Na verdade, o verbo latino “decidere” significa cortar de cima para baixo, tal como temos “excisão”, corte de dentro para fora, ou “incisão”, corte de fora para dentro e “precisão”, corte pela frente. Assim, decidir implica rutura com o que estorva.

A este respeito, o Papa observou que o Evangelho não diz: “Se algo causa escândalo, para, pensa, melhora um pouco...”. Antes diz: “Corta! Imediatamente!”. E considerou:

Jesus é radical nisso, exigente, mas para o nosso bem, como um bom médico. Cada corte, cada poda, é para crescer melhor e dar frutos no amor. Perguntemo-nos então: o que há em mim que contrasta com o Evangelho? O que, concretamente, Jesus quer que eu corte em minha vida?”.

***

Dom António Couto frisa que o Evangelho mostra “um Jesus feliz por ver que o bem saltou as raias do grupo que o seguia ao ser praticado por pessoas de fora. Por sua vez, João encarna a figura do Josué do aludido texto do Livro dos Números querendo o bem todo para o mestre e o seu grupo e vendo com maus olhos que também outros o possam fazer, até porque os discípulos tinham fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.

O motivo aduzido por João para obstar à continuidade da ação em nome de Jesus por parte do estranho era “porque não nos seguia(“hóti ouk êkoloúthei hêmîn”: Mc 9,38). Ora, como anota o prelado académico, no Evangelho, fala-se sempre em “seguir Jesus”, e não “a nós”. O mesmo sucede no único lugar paralelo desta passagem em Lucas (Lc 9,49): “porque não segue connosco(“hóti ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Dá para ver que os discípulos ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço, querendo eles próprios estar no centro, “usurpando o primeiro lugar”.

E o texto “mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos”, julgando-se donos exclusivos dalgumas funções e zelando esse status.

Nem sempre é bom querer o bem. Com efeito, querer o bem só para nós, de forma invejosa e exclusiva, é mau, porque nos leva “a retirar o bem do alcance dos outros e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros”. Por isso, em consonância com o Papa, o Bispo de Lamego assenta em que “o bem que divide e exclui nunca é bem”, pois o bem mostra-se como tal só “quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos”.

Depois, a lição de Jesus valoriza o bem por mais pequeno que ele pareça, desde que posto ao serviço das pessoas e, em especial, alo serviço do acolhimento dos enviados de Deus. Na verdade, segundo a palavra de Jesus, como assegura o Bispo de Lamego, “um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade”.

E o prelado lamecense especifica os motivos da atenção a dar “às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração”:

A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja.”.

Enfim, é preciso cortar pela raiz o vírus mortal que nos leve a quer o bem só para nós e a desejar o mal aos outros. Só assim teremos abertura e seremos espaço humano de acolhimento.

***

Também a lição de Tiago (Tg 5,1-6), que proclamamos em 2.ª leitura, evidencia que o rico é aquele que quer o bem só para si, roubando-o aos outros. Ao mesmo tempo, “autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna”. Como resultado, depara-se com “a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão”. O texto da Carta de Tiago, mormente no uso dos seus veementes imperativos, constitui um valioso e permanente complexo de chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo e a maioria não tem quase nada.

Em linguagem muito dura, o texto de Tiago aproxima-se do retratado na geena de que fala o Evangelho (Mc 9,43.45.47), “um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os próprios filhos” – culto extinto pelo rei Josias no quadro da reforma religiosa, que destinou este lugar ao ato de queima das entranhas dos animais. Daqui vem, segundo Dom António Couto, todo o “espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo (Jr 7,31-34; 19,1-13; 32,35), ‘vermes que não morrem, fogo que não se apaga’ (Mc 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno”.

***

E é o espírito de abertura, tolerância e acolhimento – longe da inveja e exclusivismo – que nos leva a aceitar o bem de todos e a querer o bem para todos. E isso, tornado estilo de vida, faz dos cristãos a comunidade e um conjunto de comunidades em que todos têm um só coração e uma só alma, provendo às necessidades de todos (cf At 2,42-47; 4,32-37).

2021.09.26 – Louro de Carvalho