É uma das
curiosas e tranquilizadoras asserções do Papa em recente entrevista a Carlos
Herrera, da Rádio COPE, em que fala, pela primeira vez, da cirurgia de julho e de
temas como o Afeganistão, China, eutanásia, reforma da Cúria e outros mais.
Sob o olhar
da imagem tão cara ao Pontífice de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, do hall da
Casa Santa Marta, Francisco abordou temas da atualidade e não se esquivou a perguntas
de índole mais pessoal.
À pergunta
sobre o seu estado de saúde no contexto da recuperação pós-operatória, respondeu
sorridente que “ainda estou vivo”, contando que a sua vida foi salva por um
enfermeiro do serviço de saúde da Santa Sé, “um homem com mais de 30 anos de
experiência”, que insistiu na cirurgia. Com efeito, apesar do parecer contrário
de alguns que sugeriram um tratamento “com antibióticos”, a insistência do
enfermeiro mostrou-se providencial, dado que a cirurgia revelou um quadro
necrótico, tendo o Papa ficado agora, após a operação, com 33 centímetros a
menos de intestino, o que não o impede de levar uma vida “totalmente normal”,
inclusive poder comer de tudo”, e, tomando a medicação adequada, manter a
agenda lotada, como, por exemplo, a que inclui a viagem à Eslováquia e Hungria
de 12 a 15 de setembro, a 34.ª do pontificado.
Ainda falando
da própria saúde, o Santo Padre desmente as especulações de alguns jornais
italianos e argentinos sobre uma possível renúncia ao pontificado, dizendo não
saber de onde tiraram a ideia. E, como só lê um jornal de manhã, o jornal de
Roma, porque gosta da forma como é apresentado um título, não se deixa envolver
no jogo; e, como, apesar de não assistir à televisão, recebe um relato das
notícias do dia, descobriu muito mais tarde, alguns dias depois, que havia algo
sobre a sua renúncia. E concluiu: “Sempre
que um Papa está doente, há sempre uma brisa ou um furacão de Conclave”.
Uma significativa
fração da entrevista foi dedicada à crise no Afeganistão, ferido pelos recentes
ataques kamikaze e pela sangria de cidadãos após a tomada do poder pelos Talibãs
– situação que tem como “difícil”, embora não entre em detalhes sobre os
esforços que a Santa Sé vem realizando no plano diplomático para evitar
represálias contra a população, mas elogiando o trabalho da Secretaria de
Estado. A este respeito, diz estar certo de que está a ajudar ou, pelo menos, a
oferecer ajuda”. E define o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, como
“o melhor diplomata” que já conheceu: “um diplomata que acrescenta, não um
daqueles que subtrai, quem está sempre procurando, um homem de acordo”.
Depois,
citou a chanceler alemã Angela Merkel, “uma das grandes figuras da política
mundial”, no pronunciamento de 20 de agosto em Moscovo: “É necessário colocar um fim na política irresponsável de intervir do
exterior e construir a democracia em outros países, ignorando as tradições do
povo” – palavras com um grande sentido de sabedoria. E, questionado a este
respeito, define a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão como “lícita”,
após vinte anos de ocupação, mesmo se “o eco que existe em mim seja outra coisa”,
nomeadamente o facto de “deixar o povo afegão ao seu destino”. Para o Papa, o
problema é outro: “Como desistir, como
negociar uma saída”. E aí admite que nem todas as eventualidades foram
levadas em consideração, tendo havido, quiçá, engano ou ingenuidade da parte
dos responsáveis.
Do
Afeganistão, o olhar pontifical permanece na Ásia, mas desloca-se para a China
e para o acordo sobre nomeação dos bispos renovado por mais dois anos.
Reconhecendo
que “a China não é fácil”, mostra-se convencido de que “não devemos renunciar
ao diálogo”. Pode haver enganos e erros no diálogo, “mas é o caminho a seguir”.
E o que foi alcançado até agora na China foi pelo menos o diálogo, podendo ser
discutidos os passos e os resultados “de uma parte ou de outra”.
Para
Francisco, o ponto de referência e inspiração é o cardeal Agostino Casaroli,
durante muito tempo secretário de Estado no pontificado de João Paulo II e, já
com João XXIII, “o homem encarregado de construir pontes com a Europa Central”.
E o Papa citou o livro “O martírio da paciência”, em que o purpurado narra as suas experiências nos países
comunistas, e disse:
“Foi um pequeno passo atrás do outro, para
construir pontes... Lentamente, lentamente, lentamente, foi conseguindo
reservas de relações diplomáticas que, no final, significavam nomear novos
bispos e cuidar do povo fiel de Deus. Hoje, de alguma forma, devemos seguir
passo a passo os caminhos do diálogo nas situações mais conflituosas.”.
E enfatizou
que a experiência com o Islão, com o Grande Imame Al-Tayyeb, foi muito positiva
em muitos aspetos: “o diálogo, sempre o diálogo ou disponibilidade para o
diálogo”.
Na verdade, o
diálogo é uma das pedras angulares desses oito anos de pontificado, como o Papa
Francisco recorda na entrevista. A começar pela eleição de 13 de março de 2013,
totalmente inesperada, passando pelos vários desafios sempre enfrentados com o
objetivo de concretizar o que foi acordado pelos cardeais nas reuniões
pré-Conclave e vem resumido na Evangelii Gaudium. A este respeito, vincou:
“Penso que ainda existem diversas coisas a
serem feitas, mas nada foi inventado por mim. Estou a obedecer ao que foi
estabelecido no tempo devido.”.
A reforma da
Cúria Romana, os avanços na transparência das finanças vaticanas e a prevenção
de casos de abusos na Igreja são as três questões em que o Papa está a
trabalhar intensamente.
Sobre a reforma
da Cúria, assegurou que “está andando passo a passo e bem” e revelou que, neste
verão, estava prestes a terminar de ler e assinar a nova constituição
apostólica “Praedicare Evangelium,
cuja publicação foi atrasada por causa da doença do Pontífice.
O documento,
por sua vez, explica o Papa, “não conterá nada de novo em relação ao que vemos
agora”, apenas algumas fusões de Dicastérios, como a Educação Católica com o
Pontifício Conselho para a Cultura e o Dicastério da Nova Evangelização que se
unirá à Propaganda Fide. “Pequenos ajustes”, disse o Papa.
Também continua
a ser uma luta importante a luta contra a corrupção nas finanças vaticanas. “Foram feitos progressos na consolidação da
justiça no Estado do Vaticano”, disse o Pontífice, o que levou a “que a
justiça fosse mais independente, com meios técnicos, também com testemunhos registados,
coisas técnicas atuais, a nomeação de novos juízes, novos promotores...”. E,
falou, em concreto, do maxijulgamento que começou em 27 de julho passado no
Vaticano pelos atos ilícitos realizados com os fundos da Secretaria de Estado,
que vê entre os dez arguidos o cardeal Angelo Becciu, ex-substituto da
Secretaria de Estado.
Francisco,
lembrando que tudo começou com as queixas de duas pessoas que trabalhavam no
Vaticano e que viram irregularidades no seu trabalho, reiterou que não tem “medo
da transparência ou da verdade”. É certo que, “às vezes dói muito, mas a
verdade é o que nos liberta”. E, quanto a Becciu, cujas prerrogativas e
direitos como cardeal revogou, explica que o cardeal havia sido julgado porque a
lei do Vaticano assim o prevê. Porém, exprimiu um desejo:
“Quero que ele seja inocente de todo o meu
coração. Ele foi um colaborador meu e ajudou-me muito. É alguém por quem eu tenho
uma certa estima como pessoa. Então o meu desejo é que ele se saia bem. Mas é
uma forma afetiva da presunção de inocência... Além da presunção de inocência,
eu quero que ele se saia bem. Agora cabe aos tribunais decidir.”.
No quadro da
luta contra a pedofilia e do consequente apelo aos governos contra a
pornografia infantil, o Papa não tem receio de colocar os pontos nos ii.
Quando
interpelado sobre isto, começou por elogiar o cardeal Sean O'Malley, presidente
da Comissão para a Proteção de Menores, pela sua “coragem” e por todo o
trabalho feito contra este crime desde quando era arcebispo de Boston; depois,
lançou forte apelo internacional aos governos para agirem e reagirem contra a
pornografia infantil, “problema global e grave”. E diz:
“Às vezes, pergunto-me como alguns governos
permitem a produção de pornografia infantil. Que não digam que não sabem. Hoje,
com os serviços secretos, sabemos tudo. Um governo sabe que no seu país se
produz pornografia pedófila. Para mim, esta é uma das coisas mais monstruosas
que eu já vi.”.
Com igual
vigor, o Papa aborda a questão da eutanásia, à luz das recentes leis aprovadas
na Espanha. E aponta que a legalização desta prática é um sinal da “cultura do
descartável” que agora permeia as sociedades modernas: “o que é inútil é descartado”. Assim, os idosos são descartáveis,
pois “são um incómodo”, bem como os doentes terminais e mesmo as crianças
indesejadas, que “são enviadas ao
remetente antes de nascerem”. É a “cultura do descarte”, que o Pontífice
denuncia desde o início do pontificado, que tem grande impacto no “inverno
demográfico” do Ocidente e que afeta particularmente países como a Itália, onde
a idade média é de 47 anos. Na verdade, a cultura demográfica está com prejuízo
porque se olha para o lucro e para o outro, por vezes, até usando a compaixão.
Ora, o que a Igreja pede é que se ajude as pessoas a morrer com dignidade. E
Francisco não deixa de estigmatizar o aborto mais uma vez:
“Diante de uma vida humana, eu faço a mim
próprio duas perguntas: é lícito eliminar uma vida humana para resolver um
problema? É correto contratar um assassino para resolver um problema?”.
No âmbito
dos abusos com relação à criação, uma das suas mais profundas preocupações,
amadurecida nestes anos de pontificado, Francisco espera participar na
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) a realizar de 1 a 12 de novembro em Glasgow:
“Em linha de princípio, o programa é que eu
vá. Tudo depende de como eu me sinta naquele momento. Mas, na verdade, o meu
discurso já está a ser preparado e o programa é de estar presente lá.”.
Outro assunto
da entrevista foi o motu proprio Traditionis Custodes, que regula as
missas em latim segundo o missal de São Pio V e reformado por São João XXIII, que,
neste verão, despertou alguma controvérsia nos setores eclesiásticos mais
conservadores. O Papa, elencando a cronologia que levou à assinatura do
documento, explicou:
“A história do Traditionis Custodes é longa. Quando Bento XVI tornou possível
celebrar com o missal de João XXIII (anterior ao de Paulo VI, que é
pós-conciliar) para aqueles que não se sentiam à vontade com a liturgia atual,
que tinham uma certa nostalgia... pareceu-me uma das mais belas e humanas ações
pastorais de Bento XVI, que é um homem de uma extraordinária humanidade. E
assim começou. Esta foi a razão.”.
E, tal como escrevera
no texto que acompanha o motu proprio,
Francisco referiu desta vez:
“A preocupação que mais aparecia era
que algo feito para ajudar pastoralmente aqueles que tinham vivido uma
experiência anterior se transformasse numa ideologia. Por outras palavras, uma coisa
pastoral transformada numa ideologia. Por isso, tivemos que reagir com regras claras...
Se se ler bem a carta e o decreto, ver-se-á que esta é simplesmente uma
reorganização construtiva, com cuidado pastoral e evitando excessos.”.
Na
entrevista, também é mencionada a visita do passado dia 24 de maio ao
Dicastério para a Comunicação do Vaticano e as palavras de encorajamento, mas
também de chamada de atenção dirigidas aos funcionários dos media do Vaticano.
Não se tratou
duma reprimenda, como insinuara o jornalista. Primeiro, fez uma pergunta
legítima sobre quantas pessoas leem o L’Osservatore
Romano (não se leem muito ou pouco). Depois,
tendo visto todo o novo trabalho de união, o novo organograma, a
funcionalização, falou da doença dos organogramas, que dão a uma realidade um valor
mais funcional do que real, advertindo que não se deve cair no funcionalismo. E,
com respeito ao funcionalismo, disse que “é o culto dos organogramas sem levar
em conta a realidade”.
Admite que
alguém não terá entendido as duas coisas que Ele disse ou que alguém não tenha
gostado, tendo interpretado as suas palavras como uma reprovação. Mas acha
normal fazer uma pergunta e deixar um aviso. Por outro lado, considera este
Dicastério muito promissor, que é o que tem o maior orçamento da Cúria no
momento, que é liderado por um leigo (espera que em breve haja outros liderados por um leigo ou uma leiga) e que está descolando com novas reformas. Do L’Osservatore Romano, que chama ‘o
jornal do partido’, diz que fez grandes progressos e o esforço cultural que
está a fazer é maravilhoso”.
Por fim, o
Sumo Pontífice abordou outras questões eclesiais, como, por exemplo, o caminho
sinodal na Alemanha, para o qual recordou a sua carta de junho de 2019, bem
como questões internacionais como a independência da Catalunha e as políticas
migratórias, para as quais o reiterou a fórmula dos quatro verbos: “acolher, proteger, promover, integrar”.
E não se
esquivou a responder a perguntas mais pessoais sobre temas como a sua relação
com sua família, em particular com sua avó Rosa, o seu apoio ao time de futebol
San Lorenzo, o seu sentimento de ser “um pecador que tenta fazer o bem”. Revela
que não é um homem de lágrimas fáceis, embora algumas situações lhe causem
tristeza, e confessa que aquilo de que mais sente falta dos tempos de Buenos
Aires é “andar de uma paróquia a outra” ou os densos dias nebulosos do outono
argentino enquanto escuta a música do compositor argentino Astor Piazzolla. E disse
que “gostaria de andar pela rua”, mas tem de se conter, “porque não poderia
andar dez metros”.
Em suma, temos
um homem de Deus e profundamente humano; de discurso simples, mas sustentado;
sério, mas com sentido de humor.
2021.09.02 – Louro de Carvalho
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