sábado, 11 de setembro de 2021

Uma evocação antoniana

 

 

No dia 10 de setembro, desloquei-me ao Hospital de Santo António, que integra, pelos vistos, o Centro Hospitalar Universitário do Porto, para um tratamento prescrito medicamente.

Como lá permaneci perto de 6 horas, vieram-me à memória várias referências. E uma delas é que fez, nesse dia, quarenta anos que fui incorporado na Academia Militar na 4.ª Companhia do Corpo de Alunos para o Curso de Capelães Militares (eu pesava 50 Kg – hoje peso bem mais). Fomos recebidos pelo capitão Vítor Manuel Vicentes Fernandes, comandante dessa 4.ª Companhia, como soldados rasos sem instrução e comportamento militar de 2.ª classe e passámos a frequentar o curso graduados em aspirantes e, no fim, fomos graduados em alferes, com exceção de dois, tendo um deles sido graduado em capitão, por ter idade superior a 40 anos, e outro em tenente, por ter idade superior a 35 anos. É claro, esses dois não foram selecionados para qualquer unidade militar, em virtude da idade e por terem direito a um vencimento maior.

Sucedeu que a direção do curso – tenente-coronel de Infantaria Cardoso Pimenta (2.º comandante do Corpo de Alunos; o comandante era o coronel de Infantaria Barroso de Moura), diretor, capitão-de-fragata capelão Delmar Gomes Barreiros, subdiretor, e major de Cavalaria Picão de Abreu, adjunto – escolheu para patrono Santo António de Lisboa.

E, na ocasião, foram prestadas várias informações sobre a ligação do percurso antoniano com o Exército Português, sendo que, após a sua morte, lhe foram atribuídos várias patentes militares e, por vezes, com direito a soldo, que revertia para conventos da sua denominação, o que também sucedeu em Espanha, Brasil e Timor-Leste.

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É de recordar a estreita ligação da Igreja Católica à fundação da nacionalidade portuguesa, ainda antes do nascimento do Santo que nasceu em Lisboa, em 1195, a todas as batalhas de conquista e manutenção do território português no continente europeu, o que se prolongou por séculos, e depois na expansão ultramarina. Um pouco por toda a Europa e também em Portugal, os exércitos e, dentro destes, as diferentes armas e serviços adotaram aliás variadíssimos santos como padroeiros ou patronos, tradição que se mantém hoje e não é uma bizarria castrense, mas realidade para muitas áreas de atividade profissional, localidades, associações, igrejas, etc.  

Depois da sua morte (13 de junho de 1231, Pádua, Itália) e da sua beatificação a 30 de Maio de 1232, Santo António é presença em muitas batalhas “…trazendo a devoção da sua aldeia ou região, no campo de batalha ouvia-se por vezes “Por Santo António!” – um grito de ânimo entre os soldados para alento e apoio…” –, seguindo-se um rol de exemplos da devoção militar ao Santo, mesmo como “…protetor do reino… …começa a evidenciar-se durante o período filipino…”.

Segundo a tradição popular foi alistado pela primeira vez, no século XVII, no reinado de D. Afonso VI (1643-1683), no terço da Câmara de Lisboa, antes da Batalha de Montes Claros (1665). E a sua “carreira militar” continua com interrupções, novos alistamentos, promoções até “capitão em 12 de Setembro de 1683.

Levou, assim, o apoio da monarquia e das instâncias militares a que Santo António fosse alistado no exército português, no seio do qual se distinguiu, nomeadamente nas lutas contra castelhanos e franceses. As prestigiantes patentes e insígnias militares que lhe foram sendo outorgadas traduzem o êxito das ações militares em que se viu envolvido, contribuindo determinantemente para a defesa da soberania nacional. A partir do século XVIII, são conhecidos vestígios da faceta militar de Santo António posta ao serviço da coroa espanhola, sobretudo nas lutas contra mouros e franceses, assumindo-se igualmente como figura de relevo no processo de garantia da soberania.

A ligação de Santo António a uma unidade militar começou no II Regimento de Lagos, durante as guerras da Restauração, sendo alistado, após o tratado de paz de 1668, como praça naquele Regimento por alvará de D. Pedro II, de 24 de Maio de 1668. A 12 de Setembro de 1683, D. Afonso VI promoveu-o a capitão. Só em 1777, o comandante do Regimento de Lagos fez a Dom Pedro III (Rei consorte) a proposta de promoção a major, através do curioso texto:

Certifico que não existe alguma nota relativa a Santo António, de mau comportamento ou irregularidade praticada por ele: nem de ter sido em tempo algum açoitado, preso, ou de qualquer modo punido durante o tempo que serviu como soldado raso no regimento: Que durante todo o tempo, em que tem sido capitão, vai quase para cem anos, constantemente cumpriu seu dever com o maior prazer à frente de sua companhia, em todas as ocasiões, em paz e em guerra, e tal que tem sido visto por seus soldados vezes sem número, como eles todos estão prontos para testemunhar: e em tudo o mais tem-se comportado sempre como fidalgo e oficial: e por todos estes motivos acima referidos considero-o muito digno e merecedor do posto de major agregado ao nosso regimento, e de quaisquer outras honras, graças ou favores que aprouver a S. M. conferir-lhe. Em testemunho do que assinei meu nome, hoje 25 de março do ano N. S. J. C. 1777. Magalhães Homem.”.  

Em 1807, Santo António foi promovido a tenente-coronel por decisão de Junot, pouco antes de o seu Regimento deixar de existir, voltando a ser pago dos seus vencimentos, interrompidos em 1779, por decisão do Marquês de Pombal. A crença transitou então para o Regimento de Infantaria de Cascais, a propósito dum recontro com tropas francesas no lugar de Santo António do Cântaro, a 27 de Setembro de 1810, em que participaram tropas deste Regimento. A partir daqui, a imagem de Santo António, a mesma que estivera em Lagos, acompanhou as tropas do Regimento que participaram na Guerra Peninsular, mantendo-se depois no quartel de Cascais.

Durante as guerras napoleónicas, Santo António foi eleito padroeiro do exército e foi-lhe dado o posto de general e a sua imagem acompanhava as tropas portuguesas. Na Batalha do Buçaco, em 1810, o exército português derrotou o general Massena, em grande parte, graças ao general Santo António como testemunharam muitos militares. Há descrições de que o general participou noutras batalhas, incluindo em 1640 nas lutas pela restauração da independência de Portugal.

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D. João VI, depois de se ter refugiado no Brasil, ao saber dos grandes feitos de Santo António, condecorou-o como sargento-mor e, depois, promoveu-o a tenente-general.

Em São Paulo, Santo António recebeu a patente de coronel e, em 1799, começou a receber o salário de capitão pelo município de Ouro Negro até 1904. Em 1924, o Santo ainda integrava o exército brasileiro. Foi com um despacho do Presidente do Brasil, Artur Bernardes e do Ministro da Guerra, que Santo António, naquele ano, passou à reserva do Exército.

A este respeito, é curioso um parecer transcrito por Arnaldo Sampaio de Morais Godoy em seu artigo “O caso do soldo do Santo António que tinha patente militar”, de16 de julho de 2015, como segue.

Em 1923 o Ministro da Guerra consultou o Consultor-Geral da República, demandando se deveria atender a requerimento do guardião dum convento, que pretendia receber soldo devido a um santo, que detinha a patente militar de tenente-coronel do Exército brasileiro, por sucessivas promoções desde o reinado de Afonso VI. Teria auxiliado na vitória dos brasileiros várias vezes.

Uma ordem de 18 de outubro de 1810 (portanto, período joanino) dispunha sobre o pagamento de um soldo ao santo, sem descontos ou recolhimento de impostos ou quaisquer emolumentos. Mais de cem anos depois, o guardião do convento queria receber o soldo devido, em nome do santo pranteado.

O parecer é plasmado no texto seguinte:

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 3 de abril de 1923.

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Guerra – Consultou-me V. Exa. com o Aviso n.º 7, de 22 de fevereiro do corrente ano, sobre o requerimento do guardião do Convento de Santo António desta Cidade, pedindo pagamento do soldo que a imagem desse Santo, nesse Convento existente, percebia como Tenente-Coronel do Exército e desde algum tempo deixou de lhe ser pago.

Infelizmente o requerimento não foi informado pelas repartições competentes desse Ministério de modo a se apurar se de facto tal soldo era pago, em virtude de que ordens, até quando foi pago e em virtude de que ordens deixou de o ser. Apenas acompanha o requerimento cópia de uma informação prestada em tempo, sobre o caso por um funcionário que servia de Consultor-Jurídico do Gabinete do Ministro.

Procurei instruir-me sobre os antecedentes desta questão e encontrei em obras de MELLO MORAES, FURTADO DE MENDONÇA, CUNHA MATTOS e VIEIRA FAZENDA interessantes documentos e informações de onde se apura que tendo mandado sentar praça no Regimento de Lagos, do Exército Português, no reinado de Affonso VI, o venerado Santo de Lisboa era habitualmente invocado pelos capitães quando entravam em combate. Assim ocorreu em Pernambuco quando foi da batalha contra o reduto de Palmares. Atribuído ao Santo o sucesso das armas reais, foi ele então nomeado tenente. Posteriormente, por se atribuir ainda à sua milagrosa intervenção a vitória das forças portuguesas sobre a ocupação de Duclerc de parte do litoral da Cidade do Rio de Janeiro, foi o Santo, no mesmo dia da vitória, 18 de setembro de 1710, personificado na imagem existente no Convento desta Cidade e que fora colocado nos muros do Convento, olhando para o sítio do combate, promovido a capitão, concedendo-se lhe patente que foi confirmada em 1711, depois de audiência do Conselho Ultramarino e aprovação régia. A carta régia de confirmação de 21 de março de 1711 mandava que a importância dos soldos se aplicasse em sua festa e ornato de sua capela.

Em 14 de julho de 1810, o Príncipe Regente, já do Brasil, o promoveu a sargento-mor. O decreto real é do teor seguinte: “Sendo-me presente a viva devoção do povo do Rio de Janeiro para o glorioso Santo António, que moveu um dos meus augustos predecessores a dar ao mesmo Santo, em 1711, o posto de capitão, tendo antes praça de soldado, depois do feliz assalto em que os habitantes da Cidade resistiram ao ataque dos franceses e tendo o céu abençoado os meus esforços para salvar a monarquia da grande e difícil crise a que se tem achado exposta, esperando ainda maior auxílio para sua final e inteira restauração, para que muito há de concorrer, como devo piamente esperar, a intercessão do mesmo glorioso Santo a quem tenho particular devoção: Hei por bem que se eleve-o ao posto de sargento-mor de infantaria desta Capitania e que pela Tesouraria se lhe fique pagando o competente soldo. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1810. (Com a rubrica do Príncipe Regente). Cumpra-se e registe-se (Com 5 rubricas do Conselho de Guerra).”.

Em vista deste ato, o Conde Linhares Ministro de Estado mandou, por Aviso de 18 de outubro de 1810, pagar à referida imagem o soldo sem dedução de emolumento algum. E ainda de major foi o Santo promovido a tenente-coronel pelo mesmo príncipe já então Dom João VI, por decreto de 26 de julho de 1814, mencionando a respetiva patente que tem a data de 31 de agosto do mesmo ano, que o Rei houvera por bem que se elevasse o Santo ao posto de tenente-coronel de Infantaria e com ele houvesse o respectivo soldo, que lhe seria pago na forma das suas reais ordens. 

E aí acabou a carreira militar do Santo.

O requerimento do Guardião do Convento, que provocou a consulta a que tenho a honra de responder, se diz, e essa declaração não foi contestada, que o soldo de tenente-coronel foi pago até abril de 1911. Não consta, porém, do processo por ordem de quem e por que fundamento se não continuou a pagar esse soldo.

Cabendo-me dizer sobre esse pedido de pagamento e havendo ponderado maduramente sobre o caso, parece-me, Sr. Ministro, que o requerimento não é de ser deferido.

Não encontrei em coleções oficiais nos documentos do Arquivo Público e do Instituto Histórico os originais dos documentos referidos pelos mencionados historiógrafos e cronistas. Sua autenticidade não pode, entretanto, ser contestada, desde que é notório que tais atos produziram efeito e foram respeitados e cumpridos até bem pouco tempo.

É evidente, porém, que o pagamento em questão, sendo, como é, expresso no documento acima referido, para ser aplicado na festa do Santo e ornato de sua capela, infringe o preceito do § 7.º do art.º 72.º da Constituição Federal, por força do qual nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial.

O pagamento pelo Estado de um soldo à imagem de um santo, e, declaradamente, para ser aplicado à sua festa e ornato de sua capela, não pode deixar de ser considerado subvenção oficial ao culto desse santo.

O que se poderia objetar a essa conclusão é que os atos transcritos e o cumprimento deles por longo tempo teriam criado um direito adquirido de ordem patrimonial, contra o qual não valeriam leis e atos oficiais posteriores.

Ocorre, porém, que para o reconhecimento de um direito adquirido é mister a existência de um titular desse direito, que não pode deixar de ser uma pessoa, física ou jurídica. O direito adquirido se incorpora no património e para aquisição de património é indispensável capacidade jurídica, que só nas pessoas se reconhece. Ora, essa capacidade jurídica, essa qualidade de pessoa, não pode ser encontrada quer no Santo, impessoalmente, quer na sua imagem existente no Convento desta Cidade.

Nesta conformidade, os atos referidos, de manifesta inspiração religiosa, eram benefícios que, não constituindo direito, e tendo sido outorgado dentro do espírito da legislação do tempo, podem ser afetados por atos posteriores, mormente tendo-se manifestado tão profunda modificação no espírito da legislação a respeito das relações da Igreja com o Estado.

Por estes fundamentos, que sujeito à apreciação de V. Exa. é meu parecer que o requerimento não merece favorável despacho desde que se apure que as ordens anteriores foram competentemente revogadas.

Devolvo os papéis e tenho a honra de reiterar a V. Exa. os meus protestos de elevada estima e mui distinta consideração.

Rodrigo Octávio”.

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Em Timor-Leste não passou de coronel. Numa colina em Manatuto, cidade onde nasceu Xanana Gusmão, há uma grande imagem dedicada ao “coronel Santo António”, padroeiro daquela cidade. A 10 de outubro de 2014, ao passar nesta localidade, o Padre Martinho de Manatuto esclareceu o porquê de chamarem de coronel a Santo António: quando trouxeram a imagem do Santo para Manatuto, o liurai, chefe máximo tradicional, tinha o posto de brigadeiro e ordenou que o santo deveria ter um estatuto inferior, pois, segundo uma lenda antiga, os liurais são descendentes do Deus Sol, motivo por que ninguém pode estar acima do liurai.

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Assim, entre lenda e história, devoção e capricho, se desenvolveu o percurso militar de Santo António post mortem, o santo que foi tão avesso a honrarias, mas bem empenhado no poder da Palavra de Deus e na dilatação do Reino.

2021.09.11 – Louro de Carvalho

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