Já
tínhamos digerido as famigeradas escritas memorialísticas de Cavaco Silva como
Primeiro-Ministro e as suas, ainda não muito longínquas a nível temporal,
memórias presidenciais e fomos presenteados atualmente com autobiografia,
necessariamente incompleta, de Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Trata-se
de obras que poderiam servir de documentação, embora de cunho pessoal, para se
perceber a malha relacional, política, social e académica em que se envolveram as
personalidades que se memorializam ou se autobiografam e para se poder avaliar
o seu desempenho de um modo objetivo e obviamente condicionado pelas
circunstâncias do país.
Antes
de mais, é de ressalvar que um livro de memórias, tenha o título e o cariz que
tiver, é sempre parcelar e uma autobiografia é necessariamente incompleta, pois
os últimos momentos da personalidade em causa não podem ser relatados por si.
Porém,
as memórias em referência, como aliás outras menos apontadas e menos
conhecidas, estão longe de concretizar o escopo que daria utilidade à sua
publicação, ficando-se pela bazófia e pelas muitas alfinetadas a este/a e àquele/a.
E isto por várias razões.
Antes
de mais e acima de tudo, um texto memorial deveria relatar os acontecimentos em
que se envolveu o autor, obviamente segundo o seu ponto de vista, mas na procura
da fidelidade à história. Contudo, o que sucede é que o autor de memórias ou de
autobiografia pretende justificar-se, responder a críticas, enaltecer os
méritos próprios, rebaixar os outros e, muitas vezes, proceder ao ajuste de contas.
Aníbal
António Cavaco Silva apresentou em tempos os seus volumes em que desenvolvia o
seu desempenho como governante, sempre carregado de méritos. Ninguém acredita
que se tornasse líder do PSD por acaso e em resultado dum passeio à Figueira da
Foz, onde decorria o congresso do seu partido, para fazer a rodagem do seu novo
automóvel, seguindo-se a imediata denúncia do acordo de coligação governativa (Não
estaria em causa a caça aos fundos comunitários?). Ninguém acredita que as relações com o Presidente
Mário Soares fossem más apenas por culpa deste ou que as medidas tomadas pelo governo
liderado pelo Professor ou as definidas no Parlamento com a maioria que
suportava o seu governo fossem as melhores e não merecessem justo reparo presidencial.
E não é claro como o partido apoiou uma candidatura presidencial de Freitas do Amaral
e não se solidarizou com a satisfação das despesas eleitorais, confirmada que foi
a derrota – como não se compreende o apoio a uma recandidatura de Mário Soares
e a subsequente animosidade mútua ou as divergências com Fernando Amaral quando
Presidente da Assembleia da República. Só a lógica da supracometência e
supra-honestidade próprias em relação aos defeitos dos outros é que justifica
tais enunciados memorialistas.
As
memórias presidenciais, além de colocarem o protagonista na crista meritória de
todas as ondas subvalorizando todos os restantes agentes da coisa pública, não
passam de ajustes de contas em relação aos governos de Sócrates (tendo-o
secundado nas medidas dos primeiros tempos), com os pretensos desmandos e deslealdades deste (mas
sem que o Presidente alguma vez o tenha visto cometer qualquer ilegalidade), e ao pôr a mão por baixo do
governo de Passos, mas enaltecendo o papel do protagonista presidente no
esforço de moderação das crises políticas. Mas vai mais longe: põe em causa a lealdade
dum colaborador no palácio presidencial. Tanto assim foi que Fernando Lima respondeu,
não com o livro que desejava escrever, mas com o que teve de escrever e em que denuncia
comportamentos estranhos do então Presidente. Sendo assim, só foi pena o livro
vir tarde, não enquanto Aníbal era o inquilino de Belém! Chorar calado e refilar
depois?!
***
Desta
feita, Balsemão conta a sua vida pessoal, familiar, académica e social em cerca
de centena e meia de páginas, no horizonte das mil que enchem o livro,
dedicando as restantes à sua ação na política e na comunicação social. E, tanto
numa atividade como na outra, dispara em vários sentidos, ora com razão, ora
sem ela.
Por
exemplo, é capaz de ter razão em criticar Marcelo Rebelo de Sousa por ser instável
na prestação jornalística. Mas então seria de questionar por que motivo o
manteve no Expresso (antes
de 1974, seguramente pelo ascendente que Marcelo tinha sobre os censores, a quem
pagava almoços com a cumplicidade do patrão) e o convidou para o Governo. Para o ter na mão? É falível.
E, conhecendo-o, como é que o acusa de aproveitar os intervalos do Conselho de Ministros
para cometer fugas de informação para o exterior? Normalmente convida-se alguém
para a nossa equipa por motivos de confiança e de competência, não para o
segurar ou para o tentar…
Dizer
que a relação com Eanes ou com Soares foi ora cooperante, ora problemática, é
mais que normal e pergunta-se de quem terá sido a culpa dos atritos. Mais, como
é possível apresentar a revisão constitucional de 1982 – supostamente obra de Soares
e Balsemão – para retirar poderes a Eanes, quando o que se passou foi a
retirada do Conselho de Revolução e a distribuição dos poderes daquele órgão pelo
Conselho de Estado então recriado (aconselhamento), Parlamento e Governo (a
nível legislativo e executivo)
e pelo Tribunal Constitucional então criado (para a fiscalização da
constitucionalidade dos diplomas legais),
tendo ficado os poderes presidenciais praticamente incólumes? De resto, para
dizer que não é livre de demitir o Governo, ficou uma cláusula constitucional
tão vaga quanto ilegível: só “quando tal se torne necessário para assegurar o
regular funcionamento das instituições democráticas”.
Escusávamos
de recordar o que já sabíamos: que o CDS de Freitas do Amaral entendia que era
este quem devia dar continuidade à governação de Sá Carneiro e não Balsemão,
como não sabíamos, se é que é verdade, que Balsemão se demitiu por desacordo
com Freitas do Amaral.
Ao
nível da comunicação social, se Marcelo disse que Balsemão era Lelé da Cuca ou
se dava notas aos políticos e se criava factos políticos, chamá-lo de escorpião
é excessivo. Julgar traidores ou gente que queria matar o pai a todos aqueles
que deixaram o Expresso para fundarem
outros periódicos é injusto e denota que quem não quis continuar a trabalhar
com o “pai” é contra ele. E, se foram tantos, as razões não estariam totalmente
do lado do abandonado. Aliás, como é que o detentor dum tão grande empório que
faz uma TV com tantos canais não avançou para um jornal diário, é tão cioso do
seu empório comunicacional e tem inveja do surgimento duma TVI – e se
incompatibiliza com Cavaco Silva por alegadamente querer entregar à Igreja uma estação
de TV sem concurso, para vir, mais tarde vender a esmo a Visão e a Exame?
É
curioso anotar que a publicação do livro do patrão da SIC originou um chorrilho
de reações, em que as respostas dos visados só pecaram por suaves e muito pouco
interpelantes, vindo até um pedido de desculpas da antiga diretora do Jornal Novo… por excesso ao tempo, pois
era do líder do seu partido que se tratava e do Primeiro-Ministro!
Assim,
não é fácil perceber quais as reais intenções do livro: ajustar contas,
enaltecer o próprio mérito, rebaixar os outros? Só o entendo como um desabafo
ou uma iniciativa pírrica.
***
Por
fim, breve referência ao livro “Homo líder
– história de homens comuns”, de Luís Filipe Menezes. Admite que até abril
de 1974, do muito que leu, pouco o condicionou política e ideologicamente e o consciencializou
da realidade da governação; e confessa que, só após ter mergulhado na política a
partir da década de 90, teve “a oportunidade de ir compreendendo o óbvio”.
Descobriu que “em democracia, e ainda mais em ditadura, o poder é
exercido por homens e mulheres completamente comuns; com qualidades e
defeitos, com crises afetivas, euforias e depressões, com problemas
familiares, com aflições financeiras e até descontrolados por vícios e
perversões”. E entende como desejável que “os regimes
sejam fábricas de promoção de talento e mérito e não de mediocridade
bajuladora, mas infere que surge sempre “o faraó com gente de carne e osso,
sujeita a todas as vicissitudes inerentes à Natureza Humana”.
Sobre
o livro, diz que mostra a forma como conviveu “com homens e mulheres normais,
que com mais ou menos merecimento chegaram ao topo” e que, “se ele servir
para que cada vez mais cidadãos aceitem esta verdade como sendo inevitável
e até desejável, estaremos sempre mais defendidos das
tentações providenciais que procuram reeditar cenários passados,
indesejáveis e inconsequentes”.
Boas
verificações e bons propósitos! Todavia, não me parece lícito que o autor,
tendo estado tão calado até há pouco, tenha aproveitado o livro para
descarregar sobre a personalidade e a atuação política de Cavaco Silva, que
sempre suportou; endeuse Sá carneiro como o grande líder e o grande estadista;
e exalte Fernando Nogueira como o excelente líder partidário que as mais altas
instâncias do governo não apoiaram.
Cavaco
Silva não precisa de que digam bem ou mal dele. A personalidade e a sua obra
falam por si, bem como as suas memórias. Nem é preciso dizer como disse dele Miguel
Cadilhe que era como o eucalipto, que seca tudo o que está à sua volta.
Sá
Carneiro era efetivamente um líder, pois tinha ideias claras, dialogava com os
colaboradores, estava como quem não tem pressa, não se limitando a estar apenas
nos momentos cruciais, mas tinha as suas birras e foi líder do seu partido por três
vezes: deixou para Emídio Guerreiro; retomou e deixou para Sousa Franco, a que sucedeu
Menéres Pimentel; e retomou até à morte. Quanto a estadista, não se sabe aferir
da sua real capacidade, pois um ano não dá para nada.
De
Fernando Nogueira, eleito presidente do PSD num congresso renhido em 1995, no
Coliseu dos Recreios, em que Menezes ia deitando tudo a perder com o seu
discurso impensado e demagógico, confessou, perante Cavaco Silva, não saber se
conseguiria ter capacidade para suceder ao Professor na liderança do PSD. Parece
ter querido ascender a Vice-Primeiro-Ministro, mas que Mário Soares terá vetado
a ideia para não promover benefícios eleitorais; e o Governo (ou
os barões) não lhe
deu condições para brilhar, pelo que preferiu sair.
E,
se bem me lembro, em vez de dar ânimo ao partido, virou-se para o Parlamento
onde quis apertar o regime de incompatibilidades em período pré-eleitoral.
Enfim,
mais um livro de “verdades” que, a sê-lo, deveriam ter sido divulgadas antes,
até para alguns dos visados poderem pronunciar-se.
***
Estamos,
a meu ver, em frente de obras com um quê de errático e até doentio, mas pouco útil.
2021.09.16 – Louro de Carvalho
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