quinta-feira, 16 de setembro de 2021

A coqueluche das memórias ou autobiografias incompletas

 

Já tínhamos digerido as famigeradas escritas memorialísticas de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro e as suas, ainda não muito longínquas a nível temporal, memórias presidenciais e fomos presenteados atualmente com autobiografia, necessariamente incompleta, de Francisco José Pereira Pinto Balsemão.

Trata-se de obras que poderiam servir de documentação, embora de cunho pessoal, para se perceber a malha relacional, política, social e académica em que se envolveram as personalidades que se memorializam ou se autobiografam e para se poder avaliar o seu desempenho de um modo objetivo e obviamente condicionado pelas circunstâncias do país.

Antes de mais, é de ressalvar que um livro de memórias, tenha o título e o cariz que tiver, é sempre parcelar e uma autobiografia é necessariamente incompleta, pois os últimos momentos da personalidade em causa não podem ser relatados por si.

Porém, as memórias em referência, como aliás outras menos apontadas e menos conhecidas, estão longe de concretizar o escopo que daria utilidade à sua publicação, ficando-se pela bazófia e pelas muitas alfinetadas a este/a e àquele/a. E isto por várias razões.

Antes de mais e acima de tudo, um texto memorial deveria relatar os acontecimentos em que se envolveu o autor, obviamente segundo o seu ponto de vista, mas na procura da fidelidade à história. Contudo, o que sucede é que o autor de memórias ou de autobiografia pretende justificar-se, responder a críticas, enaltecer os méritos próprios, rebaixar os outros e, muitas vezes, proceder ao ajuste de contas.

Aníbal António Cavaco Silva apresentou em tempos os seus volumes em que desenvolvia o seu desempenho como governante, sempre carregado de méritos. Ninguém acredita que se tornasse líder do PSD por acaso e em resultado dum passeio à Figueira da Foz, onde decorria o congresso do seu partido, para fazer a rodagem do seu novo automóvel, seguindo-se a imediata denúncia do acordo de coligação governativa (Não estaria em causa a caça aos fundos comunitários?). Ninguém acredita que as relações com o Presidente Mário Soares fossem más apenas por culpa deste ou que as medidas tomadas pelo governo liderado pelo Professor ou as definidas no Parlamento com a maioria que suportava o seu governo fossem as melhores e não merecessem justo reparo presidencial. E não é claro como o partido apoiou uma candidatura presidencial de Freitas do Amaral e não se solidarizou com a satisfação das despesas eleitorais, confirmada que foi a derrota – como não se compreende o apoio a uma recandidatura de Mário Soares e a subsequente animosidade mútua ou as divergências com Fernando Amaral quando Presidente da Assembleia da República. Só a lógica da supracometência e supra-honestidade próprias em relação aos defeitos dos outros é que justifica tais enunciados memorialistas.

As memórias presidenciais, além de colocarem o protagonista na crista meritória de todas as ondas subvalorizando todos os restantes agentes da coisa pública, não passam de ajustes de contas em relação aos governos de Sócrates (tendo-o secundado nas medidas dos primeiros tempos), com os pretensos desmandos e deslealdades deste (mas sem que o Presidente alguma vez o tenha visto cometer qualquer ilegalidade), e ao pôr a mão por baixo do governo de Passos, mas enaltecendo o papel do protagonista presidente no esforço de moderação das crises políticas. Mas vai mais longe: põe em causa a lealdade dum colaborador no palácio presidencial. Tanto assim foi que Fernando Lima respondeu, não com o livro que desejava escrever, mas com o que teve de escrever e em que denuncia comportamentos estranhos do então Presidente. Sendo assim, só foi pena o livro vir tarde, não enquanto Aníbal era o inquilino de Belém! Chorar calado e refilar depois?!

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Desta feita, Balsemão conta a sua vida pessoal, familiar, académica e social em cerca de centena e meia de páginas, no horizonte das mil que enchem o livro, dedicando as restantes à sua ação na política e na comunicação social. E, tanto numa atividade como na outra, dispara em vários sentidos, ora com razão, ora sem ela.

Por exemplo, é capaz de ter razão em criticar Marcelo Rebelo de Sousa por ser instável na prestação jornalística. Mas então seria de questionar por que motivo o manteve no Expresso (antes de 1974, seguramente pelo ascendente que Marcelo tinha sobre os censores, a quem pagava almoços com a cumplicidade do patrão) e o convidou para o Governo. Para o ter na mão? É falível. E, conhecendo-o, como é que o acusa de aproveitar os intervalos do Conselho de Ministros para cometer fugas de informação para o exterior? Normalmente convida-se alguém para a nossa equipa por motivos de confiança e de competência, não para o segurar ou para o tentar…

Dizer que a relação com Eanes ou com Soares foi ora cooperante, ora problemática, é mais que normal e pergunta-se de quem terá sido a culpa dos atritos. Mais, como é possível apresentar a revisão constitucional de 1982 – supostamente obra de Soares e Balsemão – para retirar poderes a Eanes, quando o que se passou foi a retirada do Conselho de Revolução e a distribuição dos poderes daquele órgão pelo Conselho de Estado então recriado (aconselhamento), Parlamento e Governo (a nível legislativo e executivo) e pelo Tribunal Constitucional então criado (para a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas legais), tendo ficado os poderes presidenciais praticamente incólumes? De resto, para dizer que não é livre de demitir o Governo, ficou uma cláusula constitucional tão vaga quanto ilegível: só “quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”.

Escusávamos de recordar o que já sabíamos: que o CDS de Freitas do Amaral entendia que era este quem devia dar continuidade à governação de Sá Carneiro e não Balsemão, como não sabíamos, se é que é verdade, que Balsemão se demitiu por desacordo com Freitas do Amaral.

Ao nível da comunicação social, se Marcelo disse que Balsemão era Lelé da Cuca ou se dava notas aos políticos e se criava factos políticos, chamá-lo de escorpião é excessivo. Julgar traidores ou gente que queria matar o pai a todos aqueles que deixaram o Expresso para fundarem outros periódicos é injusto e denota que quem não quis continuar a trabalhar com o “pai” é contra ele. E, se foram tantos, as razões não estariam totalmente do lado do abandonado. Aliás, como é que o detentor dum tão grande empório que faz uma TV com tantos canais não avançou para um jornal diário, é tão cioso do seu empório comunicacional e tem inveja do surgimento duma TVI – e se incompatibiliza com Cavaco Silva por alegadamente querer entregar à Igreja uma estação de TV sem concurso, para vir, mais tarde vender a esmo a Visão e a Exame?  

É curioso anotar que a publicação do livro do patrão da SIC originou um chorrilho de reações, em que as respostas dos visados só pecaram por suaves e muito pouco interpelantes, vindo até um pedido de desculpas da antiga diretora do Jornal Novo… por excesso ao tempo, pois era do líder do seu partido que se tratava e do Primeiro-Ministro!

Assim, não é fácil perceber quais as reais intenções do livro: ajustar contas, enaltecer o próprio mérito, rebaixar os outros? Só o entendo como um desabafo ou uma iniciativa pírrica.   

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Por fim, breve referência ao livro “Homo líder – história de homens comuns”, de Luís Filipe Menezes. Admite que até abril de 1974, do muito que leu, pouco o condicionou política e ideologicamente e o consciencializou da realidade da governação; e confessa que, só após ter mergulhado na política a partir da década de 90, teve “a oportunidade de ir compreendendo o óbvio”. Descobriu que “em democracia, e ainda mais em ditadura, o poder é exercido por homens e mulheres completamente comuns; com qualidades e defeitos, com crises afetivas, euforias e depressões, com problemas familiares, com aflições financeiras e até descontrolados por vícios e perversões”. E entende como desejável que “os regimes sejam fábricas de promoção de talento e mérito e não de mediocridade bajuladora, mas infere que surge sempre “o faraó com gente de carne e osso, sujeita a todas as vicissitudes inerentes à Natureza Humana”.

Sobre o livro, diz que mostra a forma como conviveu “com homens e mulheres normais, que com mais ou menos merecimento chegaram ao topo” e que, “se ele servir para que cada vez mais cidadãos aceitem esta verdade como sendo inevitável e até desejável, estaremos sempre mais defendidos das tentações providenciais que procuram reeditar cenários passados, indesejáveis e inconsequentes”.

Boas verificações e bons propósitos! Todavia, não me parece lícito que o autor, tendo estado tão calado até há pouco, tenha aproveitado o livro para descarregar sobre a personalidade e a atuação política de Cavaco Silva, que sempre suportou; endeuse Sá carneiro como o grande líder e o grande estadista; e exalte Fernando Nogueira como o excelente líder partidário que as mais altas instâncias do governo não apoiaram.

Cavaco Silva não precisa de que digam bem ou mal dele. A personalidade e a sua obra falam por si, bem como as suas memórias. Nem é preciso dizer como disse dele Miguel Cadilhe que era como o eucalipto, que seca tudo o que está à sua volta.

Sá Carneiro era efetivamente um líder, pois tinha ideias claras, dialogava com os colaboradores, estava como quem não tem pressa, não se limitando a estar apenas nos momentos cruciais, mas tinha as suas birras e foi líder do seu partido por três vezes: deixou para Emídio Guerreiro; retomou e deixou para Sousa Franco, a que sucedeu Menéres Pimentel; e retomou até à morte. Quanto a estadista, não se sabe aferir da sua real capacidade, pois um ano não dá para nada.

De Fernando Nogueira, eleito presidente do PSD num congresso renhido em 1995, no Coliseu dos Recreios, em que Menezes ia deitando tudo a perder com o seu discurso impensado e demagógico, confessou, perante Cavaco Silva, não saber se conseguiria ter capacidade para suceder ao Professor na liderança do PSD. Parece ter querido ascender a Vice-Primeiro-Ministro, mas que Mário Soares terá vetado a ideia para não promover benefícios eleitorais; e o Governo (ou os barões) não lhe deu condições para brilhar, pelo que preferiu sair.

E, se bem me lembro, em vez de dar ânimo ao partido, virou-se para o Parlamento onde quis apertar o regime de incompatibilidades em período pré-eleitoral.

Enfim, mais um livro de “verdades” que, a sê-lo, deveriam ter sido divulgadas antes, até para alguns dos visados poderem pronunciar-se.

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Estamos, a meu ver, em frente de obras com um quê de errático e até doentio, mas pouco útil.   

2021.09.16 – Louro de Carvalho

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