Por motivos de política da língua portuguesa e
projeção da mesma no mundo, está em vigor, em Portugal e nalguns países
lusófonos, a nova ortografia resultante do acordo ortográfico de 1990, que
resulta dum texto gizado em 1986, largamente rejeitado pela comunidade
linguística.
O acordo de 1990 entrou em vigor nos países que
o ratificaram e que depositaram o respetivo instrumento de ratificação na CPLP mais
tarde que o previsto, graças à posteriormente conseguida independência de
Timor-Leste, o mais novo país lusófono, pelo que houve lugar a um acordo
adicional para o incluir na reforma ortográfica. E, como, em qualquer reforma
deste género, houve e há os opositores (incluindo
escritores) com base em alegados atropelos à história da língua e a supostos alegados
desvios evolutivos ou a goradas consequências políticas e económicas, bem como
a reflexos ditos perniciosos na didática e na aprendizagem do português.
Pessoalmente, não me senti motivado para a
necessidade da reforma ortográfica, como não me sinto motivado para a sua
contestação. Estranho que alguns países tenham roído a corda. Os argumentos
atinentes à etimologia e à história da língua servem para estar contra, mas não
impedem que se esteja a favor, dado que a escrita não é a língua, mas face
derivada da mesma. E, obviamente, se a língua evolui, também a sua escrita deve
evoluir. Quanto à história da língua e sua didática e aprendizagem, o que faz
falta é estudo, investigação e divulgação do conhecimento com vista a perceber
as raízes e entender a atual situação sincrónica da língua.
Fiquei agradavelmente surpreendido, a 20 de
setembro, com um artigo-entrevista da jornalista Christiana Martins no “Expresso”
online a dar voz a Mauro Villar, de 82 anos, o guardião do perseverante “Grande Dicionário Houaiss”, o único que
diariamente pesquisa novas palavras para atualizar a base de dados que suporta
a obra que orienta os brasileiros no uso da língua em que se exprimem. É mais que
evidente que os brasileiros estudam muito mais a língua e a literatura
lusófonas que os portugueses, enquanto estes ficam encastelados no seu reduto
como os defensores inócuos da vernaculidade. Sabe-se que o “Dicionário Houaiss” (DH) é uma das
duas grandes instituições da língua portuguesa no Brasil (a outra é o
“Aurélio”).
E o susodito guardião, que obviamente está pelo
acordo ortográfico, pergunta: “Seremos
incapazes de nos entender para estreitar a aproximação ortográfica?”. Obviamente,
não se trata de uniformidade total, antes se admitem variantes de país para
país, como se admitem formas de palavras alternativas. Aliás, se esta reforma
apresenta incoerências e dificuldades, a de 1945 não apresenta menos; e não sei
qual é o mel de 1945 que atrai a simpatia de tantos, uma reforma imposta, que o
Brasil não aceitou e que não foi suficientemente discutida. A reforma é
política, não linguística. E politicamente – parece – gostamos de produto
imposto de preferência a produto em cuja confeção nos foi dado participar.
Villar, que fala do futuro do português, dos riscos de dialetização e dos prazeres de
bem falar e escrever, é o único guardião duma obra que completa, em 2021, duas
décadas de publicação e que, em 2020, introduziu 3500 as novas palavras na base
de dados que sustenta o dicionário.
Mauro Villar licenciou-se em Direito, mas ainda muito jovem assumiu-se como
lexicógrafo ou dicionarista e filólogo (estudioso científico duma língua) como o tio e mentor. Explicou que, diariamente, antes de adormecer, lê jornais,
revistas, livros e vocabulários técnicos para encontrar novos vocábulos, cioso
da missão de continuar a atualizar o “Houaiss”.
Porém, o catalogador de neologismos, fruto da criatividade incessante dos
brasileiros, avisa que há palavras que ficam anos à espera de serem
transformadas em verbetes ou de merecerem novas definições, como é o caso de
“família”, que mereceu discussão até pelos deputados brasileiros, para ampliar
a abrangência do seu significado, refletindo as alterações sociais vividas no
país.
O dicionário, agora em versão digital, é composto por centenas de milhares
de verbetes, todo um mundo de significados, pronúncias e correlações
linguísticas, com a ambição de abarcar a língua na plenitude. No Brasil, os
dicionários são tidos como “os pais dos burros”, na abordagem equívoca da
sabedoria popular, que devia tê-los como “amigos dos atentos”.
Mauro Villar, diretor do Instituto António Houaiss de Lexicografia, colaborou
na redação do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) e trabalhou com Malaca Casteleiro, filólogo português
que morreu no ano passado e foi defensor do acordo ortográfico.
***
Na predita entrevista, o lexicógrafo-filólogo fala da sua missão de
perseverar no alargamento das fronteiras da Língua Portuguesa e de como esta é
vivida no Brasil.
Aos 23 anos, habilitou-se como redator da “Enciclopédia Barsa Brasileira” e
de outros trabalhos semelhantes que surgiram na sequência, percebendo que era
uma atividade que lhe dava prazer, pelo que estudou lexicografia como
autodidata. Do tio, o Professor António Houaiss,
referiu que era casado com a irmã da mãe e que, por ele trabalhar no
Ministério das Relações Exteriores, viviam fora do Brasil. Com a subida dos
militares ao poder no Brasil em 1964, retornou ao país.
Em 1976, Mauro veio viver para Lisboa e, em 1985, António, que conseguira
patrocínio para a criação de um dicionário, perguntou-lhe se não voltaria para
trabalhar com ele na obra.
Sobre a sua atividade
hodierna, diz que obtém
informações através de programas de computação que investigam, em textos de
diversas espécies, novas palavras e recentes termos científicos e tecnológicos,
bem como nas leituras pessoais. Mantém controlo sobre o que o DH ainda não registou e que seria de interesse fazê-lo. E, enfatizando
que mais de 200 pessoas construíram em
conjunto o DH durante 15 anos, frisa
que, 20 anos depois, trabalha quase sozinho, isto é, com alguns colaboradores
especializados que ajudam o Instituto. Só reúne grupos de
lexicógrafos contratados quando se trata das novas obras que desenvolvem. A sua
carga de trabalho no dicionário maior é de 6 a 8 horas diárias, o que inclui
atividades de lexicografia paralelas, como atender a consultas do estrangeiro
ou redigir textos.
Sustenta que o Instituto funciona como fábrica de projetos e
desenvolvimento de obras de referência, com iniciativas próprias e trabalhos comissionados.
Não vendem os seus dicionários, mas recebem copyright pela
venda feita por outras editoras. Na impossibilidade de imprimir grandes léxicos
em papel, como ocorre com a maioria dos dicionários sobreviventes pelo mundo, a
base de dados que atualizam diariamente, está na internet para uso de
subscritores do “Houaiss Corporativo”
e para assinantes do portal da UOL no Brasil, que os remuneram com uma taxa
pela utilização. Isto gera uma renda, que progressivamente tem vindo a minguar,
o que torna incerto o futuro do Instituto a médio prazo. Outra fonte de rendimento
é a família de dicionários mais pequenos que desenvolvem e que se vendem
através duma editora de São Paulo, a Moderna. Em Portugal, têm uma versão do
dicionário para o Círculo de Leitores e outra edição com a Porto Editora. Neste
momento, não têm contactos de trabalho, mas só de amizade com as pessoas dessas
duas casas.
Em relação à atual situação
da língua portuguesa, sobretudo considerando a articulação entre os países da CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), diz que a sente “pujante com os seus milhões de falantes”, em pleno
desenvolvimento das suas variantes e realizações linguísticas próprias dos
sítios em que se fala, constituindo um corpo único por enquanto e por largo
tempo.
Relativamente ao acordo
ortográfico, observa que há “muito
poucas reações contrárias” no Brasil. De facto, escolas e meios de comunicação “prontamente
adotaram as novas regras e o que se lê na imprensa é grafado sob as normas
ortográficas sugeridas pelo novo acordo”. Há problemas, mas “deu-se um passo à
frente”. Recorda que Lindley Cintra dizia que “tentar melhorar, naquele
momento, seria criar novos problemas”. E refere que “óbices com formas
variantes e padrões ortográficos diversos” não existem só no português”, como
exemplifica:
O árabe, a língua oficial de 22 países, é a 5.ª mais falada no mundo. São cerca
de 274 milhões de pessoas, que não se expressam no mesmo árabe, pois a língua
compõe-se de inúmeros dialetos diferentes, agrupados em três grandes áreas: a
oriental, a ocidental e a central. Embora um falante dum desses dialetos não
perceba o que o falante de outra área diz, todos os islamitas, do Marrocos ao Iraque,
grafam a língua sob as mesmas regras, que é a norma do árabe moderno unificado (E a escrita
árabe serve também o urdu e o persa; o turco e o malaio usaram-na por longo
período; e até o espanhol, no passado, foi transcrito em carateres arábicos).
O chinês compõe-se de inúmeros dialetos e, para alguns, de línguas
diferentes. O mandarim, a mais falada, é idioma de mais de 1,120 mil milhões de
pessoas. E, apesar de tal complexidade, todos os falantes da sinofonia grafam
as suas variantes sob as regras de unificação da grafia que resultou no moderno
padrão chinês, dito kuo yü, ‘língua nacional’, ou p’u-t’ong-hua, ‘língua
comum’. Não falam o mesmo chinês, mas usam as mesmas regras para grafar o que
escrevem.
O francês é língua de cerca de 267 milhões de pessoas na Europa, África,
América Central e Oceânia. É língua oficial de 26 países. A sua ortografia é
arcaísta, refletindo preocupações etimologizantes baseadas na grafia legal do
francês medieval, codificado no século XVII pela Academia Francesa. É extensa a
lista das suas variedades dialetais, mas só há uma forma de escrever o francês
padrão em todo o mundo. Ora, o português de Portugal e o do Brasil são
variedades muito próximas, sendo nas áreas da linguagem informal (calão,
gíria, tabuísmos) e dos
tecnónimos que ocorrem as maiores diferenças, mas quase sempre de ordem
lexical. No nível culto da língua padrão, são de pequena monta as discrepâncias.
E a prova é que nós percebemos um texto escrito por um brasileiro. Por isso,
Mauro Villar interroga:
“Se tantos e tão
diversos povos, com óbices linguísticos bem maiores que os nossos, conseguiram
unificar o modo de grafar as suas línguas e dialetos, porque não o conseguem Brasil
e Portugal, com usos tão semelhantes? Seremos incapazes de nos entender para
estreitar a aproximação ortográfica da língua?”.
Ora, como o conjunto de regras da ortografia é normativo, pode ser
modificado, modernizado e utilizado comunitariamente por grupos dialetais
diferentes dentro da mesma língua. Escrever a língua que falamos utilizando regras
ortográficas comuns a todos é desejável para qualquer das variedades que
compõem a superestrutura do português; e isso nada tem a ver com qualquer
tentativa de ‘unificação’ do idioma, “absolutamente irrealizável”, além de “inútil”.
Afasta como improvável ou
como remota a proposta do escritor Sérgio Rodrigues, numa crónica na “Folha de São Paulo”, da separação
linguística entre Brasil e Portugal, avançando com a possibilidade do
reconhecimento do “brasileiro”, como língua autónoma.
Sustenta a vacuidade de ter
de convencer os portugueses de que os brasileiros falam português como rejeita
a ideia de os portugueses se sentirem proprietários da língua. Com efeito, “o
português é uma
superestrutura”. Em Portugal e no Brasil os plurais fazem-se do mesmo modo, os
verbos flexionam-se pelo mesmo padrão, a sintaxe das frases é basicamente a
mesma. Portanto, “estamos a falar de variedades de uma mesma língua”. E todo o
idioma se enriquece com a soma das partes que o constituem. Mais: “os
proprietários das línguas são cada um dos que as usam, onde quer que estejam”;
e, “se considerássemos a língua falada pelos brasileiros como o brasileiro e a
falada pelos angolanos como o angolano”, o Português, que tem hoje 258 milhões
de falantes, segundo o Etnnologue, passaria a ser língua de apenas 25 milhões, “menos
que o Canarim, o Amárico ou o Suaíli”.
Tendo estado o Presidente de
Portugal a reinaugurar o Museu da Língua Portuguesa e sublinhado a importância
do português como instrumento económico, cultural e político, não valoriza a
ausência do Presidente do Brasil como “desacerto” institucional entre os dois
países. Ao invés, frisa que “os
brasileiros gostam muito da língua que falam e sonham com a qualidade de
Portugal, o que fica óbvio pela larga procura de migração para o seu país, de
determinado momento histórico em diante”. E afiança:
“Se Portugal
antes já era atraente, quanto mais agora, com a biblioteca de Alberto Manguel
no palácio dos Marqueses de Pombal. Segundo Manguel, Lisboa tem a luz que Dante
descreve ao entrar no Jardim do Éden. Embora ainda não tenha entrado no
Paraíso, confirmo-o.”.
Sobre a atualização do VOLP
como prova da vitalidade do português, diz que os vocabulários ortográficos são “ferramentas para resolver dúvidas de quem
escreve, fala ou lê” e, “quanto mais extensos e abrangentes, melhor”. No
atinente à vitalidade, diz que “o português não é impunemente uma das línguas
mais faladas”.
Diz que a uniformização da
ortografia do português é um passo essencial para a sua adoção como língua
oficial da ONU, soando mal o confronto tipo Igreja de Santa Engrácia.
Questionado se as mudanças
sociológicas devem ser indutoras de alterações da língua, como a adoção de
palavras de género neutro ou a redefinição de conceitos como família, defende:
“A língua é um
ser vivo com uma biologia própria. Não é cerebrinamente que se lhe estatuem
regras. Se a sua tendência for recriar o neutro, como no latim, grego,
sânscrito e existe em outras línguas vivas, fá-lo-á. As chamadas ‘lutas de género’
são muito importantes no mundo de hoje e eu apoio-as absolutamente, tendo
revisto com cuidado as definições dos nossos dicionários que poderiam levantar
qualquer mínima objeção. Quanto a forçar o aparecimento de um ‘género neutro’,
não parece, todavia, que a língua seja um campo de batalha apropriado para tais
embates.”
À questão se o futuro da
língua portuguesa dependerá mais de África que do Brasil ou de Portugal, diz
que depende dos três e de quem mais falar a língua, que, na sua biologia própria,
“sabe sozinha aonde ir”.
Questionado se, com a
massificação das tecnologias digitais, teme pelo futuro dos livros, responde
que o
empobrecimento da língua e do domínio lexical dos jovens resulta da má escola, da
desinformação metódica e da tolice triunfante que afoga e governa, sem se
importar com a cultura nem com os livros – o suporte em que tudo jaz à espera
de quem os abra. As tecnologias são um imenso passo, bastando ver o que se
consegue fazer em lexicografia com elas. São ferramentas inertes sob o nosso
domínio – e aí está o problema. Enfim, diz que os computadores e a computação
não sobrevivem sem os dicionários; e, para funcionarem, carecem dos
levantamentos semânticos e lexicais. Apreender as línguas, a sua sintaxe e
semântica será imprescindível para a tecnologia, pois “o dicionário é o mapa de
captação geográfica do nosso conhecimento”. Eles palmilham toda a área cognitiva e vão aos seus
limites mais extremos.
2021.09.21 – Louro de Carvalho
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