quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Das atoardas do Ministro do Ensino Superior

 Em entrevista publicada no “Diário de Notícias” no passado dia 1 de setembro, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior afirmou que “para formar um médico de família experiente não é preciso, se calhar, ter o mesmo nível, a mesma duração de formação, que um especialista em oncologia ou um especialista em doenças mentais”.
Esqueceu o governante que Medicina Geral e Familiar é uma especialidade e não uma profissão generalista como tradicionalmente era encarada a clínica geral. Depois, não teve na devida consideração o facto de os especialistas de Medicina Geral e Familiar serem aqueles que têm os primeiros embates com uma pessoa fragilizada, cabendo-lhes a capacidade do necessário e mais conveniente encaminhamento para outras especialidades, sucedendo, não raro, que são eles quem deteta e trata a maior parte dos achaques que as pessoas lhes apresentam, como são eles quem, após um tratamento a que se submeteram noutras especialidades, cuidam da manutenção e acompanhamento do doente, paciente ou utente, como se queira dizer.       
Por isso, a 3 de setembro, a APMGF (Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar) veio a terreiro lamentar as declarações do Ministro do Ensino Superior sobre a formação nesta especialidade, considerando-as desrespeitosas e reveladoras de “desconhecimento sobre o panorama da formação clínica em Portugal”.
Num comunicado disponível no ‘site’ da associação, a direção pede que o Governo esclareça as suas intenções.
Esta reação surge depois de Manuel Heitor ter colocado a hipótese de a formação de um médico de família não precisar de ter a mesma duração que outras especialidades, ao mesmo tempo que disse esperar que, até 2023, o país possa ter três novas escolas de Medicina: em Aveiro, Vila Real e Évora.
Para a APMGF, as declarações do Ministro sobre a eventualidade da menor duração da formação nesta especialidade “são profundamente desrespeitosas para com os médicos de família portugueses e surgem em completa contradição com a tendência verificada nas últimas décadas em Portugal”. Diz a associação que, nos últimos anos, a especialidade tem vindo a ser consolidada e está hoje associada “a um rigoroso e elogiado internacionalmente” programa de internato de quatro anos”, o que é garantia de “profissionais altamente competentes”, com “reflexo na elevada procura de médicos portugueses no mercado internacional. E vinca:
A medicina geral e familiar deve ser respeitada enquanto especialidade médica autónoma, com aptidões e conhecimentos próprios, com uma abordagem generalista que não a torna menos complexa e exigente do que qualquer outra especialidade médica, antes pelo contrário”.
Os representantes dos médicos de família vão mais longe e sublinham quem se o Governo pretender seguir essa linha de ação, a APMGF “não pactuará com qualquer tentativa de abreviar e aligeirar a formação dos médicos de família portugueses”.
Por isso, no predito comunicado, pedem que o executivo esclareça as suas intenções, defendendo que a adoção daquilo a que chama “uma lógica de formação fast-food” porá em causa a sua qualidade técnico-científica e não será benéfica para atingir o objetivo de atribuir um médico de família a cada português.
O governante aduziu, na entrevista ao “Diário de Notícias”, o exemplo do Reino Unido para sustentar que a formação de um médico de família não precisa de ter a mesma duração do que outras especialidades.
Face a esta argumentação do Ministro português, a BMA (British Medical Association, em português, Associação Médica Britânica) negou que a formação dos médicos de família no Reino Unido seja menos exigente que a de outras especialidades, contrariando as asserções o governante.
Num comunicado, publicado na sua página na internet, em resposta a Manuel Heitor, a BMA considerou que a medicina familiar é altamente especializada no Reino Unido e rejeita que os médicos de família sejam menos qualificados que os clínicos de outras especialidades.
É completamente incorreto descrever a formação em medicina familiar no Reino Unido como menos exigente do que no caso de outras especialidades médicas, afirmou, citada na nota, Samira Anane, responsável para a educação, formação e trabalho do grupo de Medicina Familiar da BMA, observando que esta ideia “prejudica seriamente” os médicos de família “altamente qualificados que trabalham em consultórios em todo o país”.Samira Anane destacou que estes procedimentos também “estão em vigor para garantir que os médicos que se mudam do estrangeiro para o Reino Unido ou que demonstrem conhecimento, aptidões e experiência equivalentes, cumpram estes altos padrões”.
Também o Fórum Médico, que junta várias entidades desta classe profissional, considerou “totalmente inaceitável e desrespeitosa a forma como o Ministro desvalorizou a formação e a qualidade dos médicos especialistas em medicina geral e familiar”, que são “um dos pilares do Serviço Nacional de Saúde”, exigindo do Ministro do um “pedido de desculpas público”.
A este respeito, o Bastonário da Ordem dos Médicos diz que o Ministro fala em ajustar a Medicina Geral e Familiar ao curso de Medicina, quando o curso de Medicina é completamente independente da formação pós-graduada. E declara que “o curso de Medicina tem de se manter assim, como é em todo o mundo”. E acrescenta:
Se nós matamos a visão holística da Medicina, estamos a matar a Medicina em si e, portanto, temos que defender a Medicina. Não podemos deixar que o Ministro ache que agora a Medicina pode ser completamente espartilhada, uns têm o curso de Medicina completo, outros têm meio curso, etc.”.
Entretanto, neste dia 9, em declarações à Lusa e à Rádio Renascença, após a visita ao Centro de Simulação Médica do Hospital da Luz de Lisboa, o Ministro disse não retirar “nada do que disse”, alegando que “o contexto do que disse”, numa susodita entrevista ao “Diário de Notícias”, “foi totalmente alterado” pelos seus críticos.
É preciso formar mais e é preciso valorizar todas as especialidades, foi o que eu disse”, vincou, assinalando que, “se há poucos médicos de família é preciso ter mais e valorizar os médicos de família”.
E Manuel Heitor entende que são as entidades que integram o Fórum, como sindicatos, Ordem dos Médicos e associações do setor, que lhe devem um pedido de desculpas.
***
Não é a primeira vez que Manuel Heitor entra em desaguisado discursivo. Há tempos, enquanto sustentava que o ano letivo deveria entrar com ensino presencial e que se deveriam dotar os cursos de mais aulas de caráter prático, referiu que, nas aulas teóricas em que o professor expõe os conteúdos, não há mais que transmissão de conhecimentos, havendo, quando muito o conhecimento do estado da arte, mas não produção de novo conhecimento.
Não sei se o Ministro se referia a casos particulares que tinha em vista ou à experiência pessoal ou vizinha (e creio que há muito disso, aulas de sebenta…), mas a generalização foi má conselheira. E, se formos a ver, as aulas práticas, no limite, também se circunscreverão ao mimetismo do que outros já fizeram. Por isso, a inovação e a produção de novo conhecimento não são capturadas por determinado tipo de aulas ou atividades. Nem a universidade tem por função produzir, sempre em toda a parte, novo conhecimento, a não ser nos centros de investigação.
Seja como for, nem podem ser subestimadas as aulas teóricas e expositivas (há aulas teóricas que não são expositivas), nem se podem desenvolver os cursos só com o auxílio do lápis e do papel. Importa, sim, pôr os estudantes a investigar em trabalho acompanhado e em trabalho autónomo.
Quanto ao mais, dar o tempo necessário e suficiente para a formação segundo a índole dos cursos. Que dizer duma licenciatura de três anos ou da batota do mestrado integrado para obviar à insuficiência da Declaração de Bolonha?
Por fim, que os governantes, antes de se espalharem em atoardas, ouçam os especialistas. E não lucram nada em pô-los contra si.

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