quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Francisco e o périplo da Cruz na Eslováquia a 14 e 15 de setembro

 

O Mistério da Cruz

Na Divina Liturgia de São João Crisóstomo a que presidiu, do dia 14, na Praça do Mestská športová hala, em Prešov, o Santo Padre, fez jus à Festa da Exaltação da Santa Cruz.

A partir da proclamação paulina de Cristo crucificado, poder e sabedoria de Deus, mas escândalo e loucura para muitos, o hodierno supremo anunciador do Evangelho sublinhou que o Apóstolo não esconde a cruz, que de instrumento de morte passou a ser revelação da beleza do amor de Deus e da dádiva de vida. E o evangelista João, que estava junto da cruz do Senhor, tomando-nos pela mão, ajuda-nos a entrar no mistério de Jesus suspenso no madeiro e morto; e, com o seu dizer “Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas(Jo 19,35), torna-se claro que João “vê e dá testemunho.

Assim, o Papa disse que, antes de mais, é preciso ver como João: o inocente e bom morre de forma brutal entre malfeitores. Como sempre, os bons são eliminados, ao passo que os malvados prosperam. Nestes termos, a cruz é fracasso, pelo que não é fácil aceitar a lógica da cruz, ou seja, aceitar que Deus nos salve deixando que se desencadeie sobre Ele o mal do mundo. Até podemos aceitar em palavras “o Deus frágil e crucificado”, para depois sonharmos com “um deus forte e triunfante” na ótica do cristianismo de vencedores, um cristianismo mundano que usa a cruz, mas a deita fora, tornando-se estéril. Por isso, tal como João, temos de ver “na cruz a obra de Deus”, isto é, reconhecer “em Cristo crucificado a glória de Deus”, um Deus que Se voluntariamente oferece por cada homem para que não haja na terra ninguém tão desesperado que não consiga encontrá-Lo”, até na angústia, escuridão, abandono e, mesmo, no “escândalo da sua miséria e dos próprios erros”. E, “para salvar quem está desesperado”, clamou na cruz: “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?(Mt 27,46; Sl 22,2) – grito que salva, porque Deus assumiu o nosso abandono, pelo que nunca mais estaremos sozinhos.

Para entendermos como aprender a ver a glória na cruz, o Santo Padre referiu que alguns santos ensinaram que a cruz é como um livro que é preciso abrir e ler. Ora, a cruz está pintada ou esculpida nas igrejas; e os crucifixos abundam ao pescoço, em casa, no carro, no bolso. No entanto, corremos o risco de ter a cruz como objeto de adorno, um livro fechado ou, mesmo, um símbolo político, um sinal de relevância religiosa e social. Por isso, urge abrir este livro olhando o Crucificado e deixando que as suas chagas nos toquem e curem.

E da contemplação do Crucifixo passaremos ao segundo momento: dar testemunho. É preciso que o rosto de Jesus se reflita no nosso. Cá está: os mártires deram testemunho do amor de Cristo em todo o mundo e também no coração da Europa. Podiam ter calado, mas preferiram sofrer e morrer em testemunho da sua fé. E Francisco focou-se também “nos nossos tempos, em que não faltam ocasiões para dar testemunho”, alertando para o risco de o testemunho poder ser contaminado pelo mundanismo e pela mediocridade, quando “a cruz exige um testemunho claro”. Na verdade, “a cruz não quer ser uma bandeira elevada ao alto, mas a fonte pura duma maneira nova de viver”, a do Evangelho, a das Bem-aventuranças.

A seguir, Francisco faz a caraterização da testemunha que tem a cruz no coração, e não apenas ao pescoço: “não vê ninguém como inimigo, mas vê a todos como irmãos e irmãs por quem Jesus deu a vida”; não recorda as injustiças do passado nem se lamenta do presente; não usa as vias do engano e do poder mundano; não se impõe a si mesma e os seus, mas dá a vida pelos outros; não busca proveito próprio e a mostrar-se piedosa (religião da duplicidade); segue a estratégia do Mestre: o amor humilde; não espera triunfos na terra, pois “sabe que o amor de Cristo é fecundo na vida quotidiana, fazendo novas todas as coisas a partir de dentro, como uma semente caída na terra, que morre e dá fruto”. E é este testemunho que o Papa quer nos cristãos.  

Por fim, o Santo Padre olhou o Calvário e vê ali, com João, a Santa Mãe de Deus. E confessou que “ninguém como Ela viu o livro da cruz aberto e o testemunhou como amor humilde”. Por isso, confiando na sua intercessão, teremos a graça de converter o olhar do coração ao Crucificado, a fé florescerá em plenitude e amadurecerão os frutos do nosso testemunho – disse.

***

A Mãe que vai em caminho até permanecer de pé junto à cruz

Neste dia 15, na homilia da Santa Missa, a que presidiu na esplanada do Santuário Nacional de Šaštin, em Bratislava, Francisco focou-se no percurso de Maria, a Senhora das Dores.   

Começando por dizer que, no Templo de Jerusalém, os seus braços se estendem para os de Simeão, que acolhe Jesus e O reconhece como o Messias, frisou que a cena revela quem é Maria – “a Mãe que nos dá o Filho Jesus” – e que, “por isso A amamos e veneramos”. E vincou a adequação do logótipo desta Viagem Apostólica, em que “há um caminho desenhado dentro dum coração encimado pela cruz” e com os dizeres: “Maria é o caminho que nos introduz no Coração de Cristo, que deu a vida por nosso amor”. Depois, olhando para Maria como modelo da fé, reconheceu, na fé de Maria, três caraterísticas: o caminho, a profecia e a compaixão.

Efetivamente, a fé de Maria é a fé que se põe a caminho. Na verdade, assim que recebeu o anúncio do Anjo, “pôs-se a caminho (…) para a montanha(Lc 1,39) para visitar e ajudar Isabel; não ficou parada na contemplação de Si mesma. Ao invés, viveu o dom como missão a cumprir; e deu corpo à impaciência com que Deus quer alcançar todos os homens para os salvar. Por isso, põe-Se a caminho, podendo o caminho oferecer surpresas e incómodos. Também o Evangelho da subida ao Templo mostra Maria a caminho, agora para Jerusalém, onde, com José, apresenta Jesus no Templo. E toda a sua vida será caminho atrás do Filho, “como primeira discípula, até ao Calvário, ao pé da Cruz”. Assim, com Maria, vemos que, a caminhar, venceremos a tentação da fé estática, que se satisfaça com algum rito ou tradição. Antes, saímos de nós e fazemos da vida a peregrinação de amor a Deus e aos irmãos. E o Pontífice exortou:

Continuai a caminho. Sempre; não pareis! (…) Disse ‘não pareis’, porque, quando a Igreja para, adoece; quando os bispos param, adoecem a Igreja; quando os padres param, adoecem o povo de Deus.”.

Depois, a fé de Maria é fé profética. Com a própria vida, Ela “é profecia da obra de Deus na história, da sua ação misericordiosa que subverte as lógicas do mundo, exaltando os humildes e derrubando os soberbos” (cf Lc 1,52). Como “representante dos ‘pobres de Javé’, que clamam a Deus e esperam a vinda do Messias”, “é a Filha de Sião anunciada pelos profetas” (cf Sf 3,14-18), “a Virgem que conceberá o Deus connosco, o Emanuel” (cf Is 7,14). Como Imaculada, é ícone da nossa vocação: “como Ela, somos chamados a ser santos e imaculados no amor (cf Ef 1,4), tornando-nos imagem de Cristo”. A profecia culmina em Maria, porque traz no ventre a Palavra de Deus feita carne. E Ele realiza, plenamente, o desígnio de Deus. Falando d’Ele, Simeão diz: “Está para queda e ressurgimento de muitos em Israel e como sinal de contradição” (Lc 2,34).

Ora, diz o Pontífice, “não se pode reduzir a fé a um açúcar que adoça a vida”. Na verdade, “quem acolhe Cristo e se abre para Ele, ressuscita; quem O rejeita, encerra-se na escuridão e arruína-se a si mesmo”. De facto, “a sua Palavra, como espada de dois gumes, penetra na nossa vida e separa a luz das trevas, pedindo-nos para escolher”, pelo que “não se pode ficar morno” ou a jogar em dois tabuleiros. É destes profetas que o mundo tem necessidade: profetas que sigam por esta estrada, não para serem ser hostis ao mundo, mas para serem “sinais de contradição” no mundo; cristãos que mostram, com a vida, a beleza do Evangelho e são tecedores de diálogo, que fazem resplandecer a vida fraterna na sociedade, que difundem o bom perfume do acolhimento e solidariedade, que protegem a vida onde reinam lógicas de morte.

E, pela fé, “Maria é a Mãe da compaixão. De facto, Aquela que Se definiu como “a serva do Senhor” e Se preocupou com que não faltasse o vinho nas bodas de Caná, partilhou com o Filho a missão da salvação, até ao pé da Cruz. Na dor terrível do Calvário, compreendeu a profecia de Simeão: “uma espada trespassará a tua alma(Lc 2,35). O sofrimento do Filho, que tomava sobre Si os pecados e as tribulações da humanidade, trespassou-A. Está Jesus dilacerado na carne, Homem das dores desfigurado pelo mal; e Maria, dilacerada na alma, a Mãe compassiva recolhe as nossas lágrimas e consola-nos, indicando-nos em Cristo a vitória definitiva.

Junto da cruz, a Senhora das Dores simplesmente permanece. Está de pé; não foge, não tenta salvar-Se a Si mesma, não usa artifícios para escapar da dor. A prova da compaixão é ficar junto da cruz com o rosto marcado pelas lágrimas, mas com a fé de quem sabe que, no Filho, “Deus transforma o sofrimento e vence a morte”. Por isso, o Papa pede que nós, olhando para a Mãe Dolorosa, nos abramos à fé que se faz compaixão e partilha de vida com quem está ferido, sofre e é constrangido a carregar aos ombros pesadas cruzes – uma fé ao estilo de Deus, que levanta, humilde e silenciosamente, o sofrimento do mundo e irriga os sulcos da história com a salvação.

***

A lógica da fraternidade, do encontro e do acolhimento 

No encontro com a comunidade cigana, no Bairro Luník IX, em Košice, no dia 14, o Papa recordou o que disse São Paulo VI aos ciganos a 26 de setembro de 1965 – “Vós, na Igreja, não estais à margem... Estais no coração da Igreja” – para vincar que, “na Igreja, ninguém se deve sentir estranho nem marginalizado”, pois este “é o modo de ser da Igreja”, visto que “ser Igreja é viver como convocado por Deus, sentir-se eleito na vida, fazer parte da mesma equipa”. Diversos, mas todos unidos e juntos em Seu redor, é assim que Deus nos quer.

Na verdade, Ele tem olhar de Pai, olhar de predileção por cada um dos filhos. E, se cada um acolher este olhar sobre si, aprende a ver os outros e descobre que tem ao seu lado outros filhos de Deus e os reconhece como irmãos. E a Igreja é “a família de irmãos e irmãs com o mesmo Pai, que nos deu Jesus como irmão para entendermos quanto Ele ama a fraternidade” e quer que toda a humanidade se torne a família universal. Ora, como os ciganos nutrem grande amor pela família e olham a Igreja a partir dessa experiência, Francisco proclama que “a Igreja é casa, é casa vossa”, pede que se sintam sempre de casa na Igreja e pretende que ninguém os afaste da Igreja, a eles ou a qualquer outra pessoa.

O Papa felicitou um casal que antepôs o sonho da família às diversidades de proveniência, usos e costumes, dizendo que aquele matrimónio testemunha como a vida concreta em conjunto faz cair estereótipos que parecem insuperáveis, pois não é fácil superar preconceitos, mesmo entre cristãos, ou sentir apreço pelos outros considerados como obstáculos ou adversários, formulando-se juízos sem lhes conhecer os rostos e as histórias.

Com justeza diz Jesus: “Não julgueis(Mt 7,1). Ora, o Evangelho não deve ser atenuado. Porém, somos fáceis em falar só por ouvir dizer, somos juízes implacáveis dos outros e indulgentes para connosco mesmos. Em nome do Evangelho, urge abandonar os preconceitos e reconhecer em cada pessoa o portador da beleza incancelável de filho de Deus, em que se espelha o Criador.

Com os estereótipos discriminatório de que foram vítimas os ciganos, diz o Santo Padre, “todos ficamos mais pobres, pobres em humanidade”. Importa, pois, promover a integração – um processo orgânico e lento – pelo trabalho, educação e cultura, mas respeitando as raízes e as marcas fundamentais de proveniência. E fica a grande certeza:

Onde se presta atenção à pessoa, onde existe trabalho pastoral, onde há paciência e ações concretas, aparecem os frutos. Não imediatamente, pois requer-se tempo, mas eles aparecem. Juízos e preconceitos só aumentam as distâncias.”.

Ao mesmo tempo, fica a semente do futuro nas crianças, cujos sonhos não podem esfacelar-se contra as nossas barreiras e que desejam crescer juntas, sem obstáculos ou restrições, merecendo vida integrada e livre.

O Papa agradeceu a quantos vêm realizando o trabalho de integração, pediu que não tenham medo de sair ao encontro do marginalizado e convidou todos a ultrapassarem os medos, as feridas do passado, com confiança – no trabalho honesto, na dignidade de ganhar o pão de cada dia, no cultivo da confiança mútua e na oração uns pelos outros. É isto que nos guia e fortalece. 

***

No encontro com os jovens, no Estádio Lokomotiva, em Košice, também no dia 14, o Santo Padre respondeu a questões deles, centradas sobretudo no amor, no perdão e na cruz.

Sobre o amor no casal, disse que o amor é o maior sonho da vida, mas custa; e são necessários, para o encarar, olhos novos que não se deixem enganar pelas aparências. Não se pode banalizar o amor, que não é só emoção e sentimento, mas é sobretudo fidelidade, dom, responsabilidade.

Por isso, urge rebelar-se contra a cultura do provisório e amar por toda a vida, com todo o ser, à imagem de Jesus, o Crucificado. Aliás, a história das grandes personalidades e feita de amor e heroísmo. E veio à tona o exemplo da Beata Ana (Kolesárová), uma heroína do amor, que nos diz para apostar em metas altas.

Depois, acentuou a unicidade de cada pessoa, aconselhando a que não se deixem homogeneizar nem aliciar pela venda de facilidades e quimeras, sabendo que os esperam os outros, a sociedade, os pobres. E pediu que sonhem com uma beleza que vá além da aparência, da maquilhagem, das tendências da moda, e que vise a formação duma família, com a geração e educação de filhos, uma vida inteira de partilha.

E considerou que, para o amor dar fruto, é preciso não esquecer as raízes. E as raízes dos jovens são os pais e sobretudo os avós, que lhes prepararam o terreno. Por isso, aconselhou que reguem as raízes, que vão ter com os avós, que reservem tempo para ouvir as suas histórias, que podem ser instrumento de luta contra o pessimismo e a futilidade ou sensaboria da vida.

Sobre a confissão, como remédio para erguer-se quando se está em baixo, disse que, mais do pensar nos pecados, é preciso pensar no encontro com Deus, o Pai que perdoa todos os pecados e sempre. Com efeito, diz o Papa, “não vamos confessar-nos como pessoas castigadas que se devem humilhar, mas como filhos que correm para receber o abraço do Pai”. Por isso, depois de cada Confissão, há que permanecer alguns momentos a recordar o perdão recebido e a guardar a paz no coração, a liberdade que se sente por dentro. Por isso, na confissão, qual sacramento do perdão e da alegria, deve ser dado o primeiro lugar a Deus, não ao padre.  

É útil sentir alguma vergonha pelos pecados, mas não se pode ficar nela. Não se pode duvidar da capacidade de Deus em perdoar pelo facto de nós não nos perdoarmos a nós próprios. Não se pode limitar a sua misericórdia. Ele “não vê pecadores a etiquetar, mas filhos a amar”. E de cada vez que nos confessamos “faz-se festa no Céu”, sendo importante que seja assim na terra.

E à questão como “encorajar os jovens para não terem medo de abraçar a cruz” Francisco responde assegurando que “abraçar ajuda a vencer o medo”, pois, “quando somos abraçados, readquirimos confiança em nós mesmos e na vida”. Ora, deixando-nos abraçar por Jesus e abraçando Jesus, reabraçamos a esperança. Porém, como diz o Papa, “a cruz não se pode abraçar por si só” e “o sofrimento não salva ninguém”; “é o amor que transforma o sofrimento”. Portanto, “é com Jesus que se abraça a cruz” e, abraçando Jesus, “renasce a alegria”, que se transforma em paz.

Por fim, Francisco desejou aos jovens esta alegria e pediu que a levassem aos amigos com sorriso, proximidade fraterna. E o encontro terminou com a oração a Deus que nos ama, dizendo todos o Pai Nosso.

***

E, por ela espelhar as preocupações dos Pastores eslovacos, não resisto a transcrever a oração de consagração que o Santo Padre e os Bispos rezaram no Santuário Nacional de Nossa Senhora das Sete Dores em Šaštín (Bratislava), neste dia 15:

Nossa Senhora das Sete Dores, estamos reunidos aqui diante de Vós como irmãos, agradecidos ao Senhor pelo seu amor misericordioso. E Vós estais connosco aqui, como com os Apóstolos no Cenáculo.

Mãe da Igreja e Consoladora dos aflitos, voltamo-nos confiadamente para Vós, nas alegrias e fadigas do nosso ministério. Olhai para nós com ternura e acolhei-nos nos vossos braços.

Rainha dos Apóstolos e Refúgio dos pecadores, que conheceis as nossas limitações humanas, os falhanços espirituais, o sofrimento pela solidão e pelo abandono: curai com a vossa doçura as nossas feridas.

Mãe de Deus e nossa Mãe, confiamo-Vos a nossa vida e a nossa pátria, confiamo-Vos a nossa própria comunhão episcopal. Obtende-nos a graça de vivermos fielmente dia a dia as palavras que o vosso Filho Jesus nos ensinou e que agora, n’Ele e com Ele, dirigimos a Deus nosso Pai.”.

E assim vai Francisco concretizando a sua missão ao largo e ao longe. Prosit!

2021.09.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário