sábado, 18 de setembro de 2021

Dos equívocos aliados à transferência de sede de tribunais supremos

 

O Projeto de Lei n.º 516/XIV/2.ª, de 18 de setembro de 2020, do grupo parlamentar do PSD, com texto alterado, a 21 de setembro do mesmo ano, por iniciativa dos autores, foi aprovado na generalidade na Assembleia da República (AR), com votos a favor de PSD, CDS, Iniciativa Liberal e de 8 deputados do PS, mas com a abstenção da maior parte dos deputados do PS, dos deputados do BE, do PCP, do PEV e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues e os votos contra do PAN e do Chega.

O diploma, que dera entrada no Parlamento a 20 de setembro do ano transato, passa agora à discussão na especialidade na 1.ª Comissão, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com eventual conexão com a 13.ª, a Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local, como previsto na respetiva nota de admissibilidade.

A mesma nota de admissibilidade, colocando a hipótese de a iniciativa dos deputados envolver, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas previstas no Orçamento do Estado (cf n.º 2 do art. 120.º do Regimento e n.º 2 do art. 167.º da Constituição), ao determinar a transferência das sedes do Tribunal Constitucional (TC), do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de Lisboa para Coimbra e ao prever, no artigo 7.º, a entrada em vigor da iniciativa no dia seguinte ao da sua publicação, sugere que, em caso de aprovação, o limite imposto pela lei-travão seja acautelado no decurso do processo legislativo, por exemplo remetendo a respetiva entrada em vigor (ou produção de efeitos) para a data de entrada em vigor do OE posterior à sua publicação.

O projeto de lei em referência pretende proceder à:

a) 10.ª alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), alterada pelas Leis n.ºs 143/85, de 26 de novembro, 85/89, de 7 de setembro, 88/95, de 1 de setembro, e 13-A/98, de 26 de fevereiro, e pelas Leis Orgânicas n.ºs 1/2011, de 30 de novembro, 5/2015, de 10 de abril, 11/2015, de 28 de agosto, 1/2018, de 19 de abril, e 4/2019, de 13 de setembro;

b) 13.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19 de fevereiro, 107-D/2003, de 31 de dezembro, 1/2008, de 14 de janeiro, 2/2008, de 14 de janeiro, 26/2008, de 27 de junho, 52/2008, de 28 de agosto, e 59/2008, de 11 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de julho, e pelas Leis n.ºs 55- A/2010, de 31 de dezembro, e 20/2012, de 14 de maio, pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, e pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro;

c) 3.ª alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos), alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, e pela Lei n.º 71/2019, de 31 de dezembro.

Em síntese, o conteúdo do projeto de lei é o estabelecimento de que: o Tribunal Constitucional exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa e tem sede em Coimbra; o Supremo Tribunal Administrativo tem sede em Coimbra e jurisdição em todo o território nacional; e a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos tem sede em Coimbra, podendo funcionar em instalações do Tribunal Constitucional.

Mais estipula que o respetivo processo de transferência e instalação em Coimbra se inicia na data da entrada em vigor da lei, ficando definitivamente concluído até ao final de 2022; e que é acompanhado e monitorizado por uma comissão constituída por prestigiadas personalidades nacionais, de profissões jurídicas e não jurídicas, a designar pelo membro do Governo responsável pela área da Justiça, no prazo de trinta dias a contar da entrada em vigor da lei.

Aos trabalhadores com vínculo de emprego público por tempo indeterminado dos mapas de pessoal do TC e do STA aplicam-se os instrumentos de mobilidade previstos na Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que aprova a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, e da Lei n.º 25/2017, de 30 de maio, que aprova o regime de valorização profissional dos trabalhadores com vínculo de emprego público, sem prejuízo de outros instrumentos de mobilidade previstos em legislação especialmente aplicável. E os trabalhadores que adiram, imediata e voluntariamente, à transferência para a cidade de Coimbra beneficiam do regime previsto no artigo 24.º da Lei n.º 25/2017, de 30 de maio (ajudas de custo durante um ano; e, depois, subsídio de fixação, subsídio de deslocação, subsídio de residência mensal, garantia de transferência escolar dos filhos e preferência de colocação em procedimento concursal do cônjuge ou equivalente).

O primeiro equívoco consiste na falibilidade prevista neste processo legislativo. Como se trata de uma lei orgânica, a aprovação final global carece do voto favorável da maioria dos deputados em efetividade de funções. Assim, mantendo-se a abstenção da maioria dos deputados do PS, é previsível que o projeto não tenha sucesso e a AR esteja a trabalhar para aquecer.

Também é equívoca a posição dos deputados que se abstêm nesta matéria. A questão da sede destas entidades pode não ser relevante, mas, uma vez colocada, requer uma posição inequívoca a favor ou contra.

Acusa-se o PSD de aproveitamento eleitoral (mormente a generalidade dos partidos, com exceção do CDS e da Iniciativa Liberal), sendo que as sondagens preveem um empate técnico entre as candidaturas autárquicas protagonizadas pelo PS e pelo PSD no município de Coimbra. Ora, o projeto de lei foi apresentado em setembro de 2020, muito antes do debate eleitoral autárquico.

Perante o anúncio a abstenção parlamentar do PS face ao projeto de lei e a crítica dos meritíssimos juízes-conselheiros do TC, o Governo fez saber que, se o TC não for transferido para Coimbra, a cidade será dotada de uma maternidade. Não creio que haja equivalência entre o TC e uma maternidade. Se ainda fosse a transferência da sede AR, enquanto mãe nas leis ou casa da democracia, entenderia melhor. Assim…   

Todavia, os equívocos surgem logo na “Exposição de motivos” que encabeça o projeto de lei. Vejamos como.

É referido que, em 2019, os partidos reconheceram que Portugal é um dos países da UE “com um perfil mais centralizado e centralizador”, que se estende “à organização judiciária, sendo disso exemplo o facto de a sede da generalidade dos altos tribunais se encontrar localizada em Lisboa, incluindo a do Tribunal Constitucional”. Mais se afirma que “o desenvolvimento equilibrado dos vários territórios passa também por uma adequada distribuição do ‘mapa judiciário’ e que a organização judiciária não pode ficar à margem de um processo mais abrangente de descentralização e de reorganização e de gestão do Estado, constituindo também um sinal incontornável da aproximação das instituições aos cidadãos”.

Ora, a descentralização não consiste em colocar um ministério, uma secretaria de Estado, uma direção-geral, a sede de um órgão de soberania numa localidade qualquer, que não seja a capital. Tudo isso pode ser feito, mas, se uma fração dos poderes – legislativo, executivo, administrativo e judiciário – não for outorgada a entidades regionais ou locais, continuamos com um Estado centralizado e centralizador. E o projeto de lei mantém, para o TC, a “jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa” e, para o STA, a jurisdição em todo o território nacional.

Dizer que isto constitui “um sinal incontornável da aproximação das instituições aos cidadãos” é propaganda barata. Dificilmente o cidadão comum entra num supremo tribunal. A matéria de facto é habitualmente apurada na instância. Por outro lado, os magistrados não costumam desfilar publicamente.

Também os deputados escreveram que “a presente iniciativa assinala um incontornável sinal democrático e político, reforçando a visibilidade do valor da independência do poder judicial relativamente ao poder político, através da distanciação geográfica das respetivas sedes”.

Não é verdade que a independência dos tribunais esteja relacionada com a separação geográfica das suas sedes das dos outros órgãos de soberania. Hoje a forma de comunicação e de pressão é múltipla e subtil. Se me dissessem que a composição do TC devia ser alterada, por exemplo, não sendo os juízes todos eleitos pela AR, mas provindo alguns da iniciativa do Presidente da República e, até, de outras proveniências tipificadas em lei e serem todos eles oriundos da magistratura, eu veria reforçada a independência do TC. De contrário, não.  

De resto, concordo que “nos sistemas comparados, o exemplo mais paradigmático deste valor democrático e político encontramo-lo no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que foi localizado na cidade de Karlsruhe, intencionalmente deslocada das outras instituições federais, designadamente da sede do Governo”.

Também é verdade que a cidade de Coimbra, pela sua centralidade geográfica e pela sua indelével caraterística de ‘Cidade Universitária’ e representatividade, no plano nacional e internacional, no ensino do Direito, dispondo hoje, inclusivamente, de um centro inigualável e especificamente vocacionado ao estudo da jurisprudência – a Casa da Jurisprudência da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra –, reúne condições ímpares para acolher a sede do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo”.

Mais digo que até poderia sediar o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal de Contas (TdC). Não vejo por que motivo terá de ser o TC e o STA.

Por fim, o grande equívoco está nos juízes do TC. Do Palácio Ratton, onde está sediado o TC, saiu um parecer negativo que arrasa os argumentos da proposta do PSD.

Segundo o PSD, a mudança reforçaria a “independência do poder judicial relativamente ao poder político, através da distanciação geográfica das respetivas sedes”. Os sociais-democratas exemplificam ainda com a situação alemã, onde o Tribunal Constitucional Federal está sediado em Karlsruhe. Face a este argumento, os juízes-conselheiros consideram que essa independência do TC não está em causa ou “carece de afirmação simbólica”. E sustentam que a transferência da sede por decisão do poder político teria “uma carga simbólica negativa, degradando a perceção pública da autoridade, autonomia e relevância do órgão”. Assim, lê-se no parecer:

A transferência seletiva da sede de um órgão de soberania, baseada em qualquer critério que não seja o da natureza e dignidade constitucional das funções que desempenha, não poderia deixar de constituir um grave desprestígio.

Sobre o exemplo alemão, consideram a analogia “infundada” e que a situação ocorreu por “indisponibilidade da capital histórica no momento da criação do órgão”; e os exemplos em que os órgãos de soberania estão fora da capital têm “determinadas particularidades”.

É lamentável que, para o TC, a simples transferência da sede dum órgão de soberania seja desprestigiante. Mais parece desconhecer que é ao Parlamento que incumbe o ato de legislar.

É certo que, depois da reação da opinião pública o TC, segundo o “Público”, fez saber que o “desprestígio” não se refere à cidade de Coimbra, mas apenas à possibilidade de Lisboa perder um dos órgãos de soberania. Onde está a diferença? Os órgãos de soberania são nacionais, não são de Lisboa. Os Presidentes da República, em presidências abertas, promulgaram leis e decretos fora de Lisboa, o Conselho de Ministros já reuniu muitas vezes fora de Lisboa. Mais: Lisboa não foi sempre a capital. Também o foram, por exemplo, Guimarães, Lamego, Viseu, Coimbra, Salvador da Baía, Rio de Janeiro. E a Cortes reuniram em várias localidades.  

É óbvio que as escolhas de localização têm sempre razões históricas e políticas.

Têm, no entanto, razão os juízes do TC quando contestam o argumento da necessidade de dar um passo “mais ambicioso no processo de descentralização das instituições do Estado”. Relativamente a este ponto, o parecer rejeita o argumento de que a saída da sede da capital “não constitui uma medida de descentralização no sentido (jurídico-administrativo) rigoroso e próprio do termo” e sublinha que a concretização da descentralização seria feita com o reforço das atribuições de autonomia das autarquias locais.

E ao argumento de que a cidade de Coimbra tem uma “forte tradição de ensino de direito” e um “centro dedicado à jurisprudência”, sendo por isso o local ideal, respondem os juízes afirmando que “uma instituição cultivar o estudo da jurisprudência é irrelevante para a questão da localização do TC”. Penso que têm razão, mas esquecem que, em política, não é despicienda a qualidade do objeto que se pretende enriquecer. E, se a alegação é irrelevante, também não é motivo para contestação, mas uma oportunidade para reconhecer a mais-valia de Coimbra.

Em todo o caso, ressalta que, no painel dos juízes críticos, existem dois juízes que discordam do parecer apresentado: Mariana Canotilho, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e Manuel Costa Andrade, professor catedrático da Universidade de Coimbra.

Mariana Canotilho defende que a Constituição não refere a capital do país como tendo que ser o local das instituições e que a “localização dos órgãos do Estado é matéria estritamente política” e que o TC deve limitar-se a assinalar (não a ponderar) “os eventuais constrangimentos de ordem prática”. Assim, a juíza-conselheira sublinha que a competência é do legislador e não do TC e lamenta que do parecer se extraia que “a mudança de localização seria uma diminuição do prestígio e autoridade institucionais”.

Também Manuel Costa Andrade, ex-presidente do TC, critica o parecer do órgão. Para o juiz-conselheiro é ao Parlamento que compete decidir a sede do TC e defende que “qualquer chão nacional tem a mesma dignidade e legitimidade para acolher o TC”.

Bem observado. Só se espera que os órgãos de soberania respeitem as competências de uns e de outros e que primem pela separação cooperante. Não vá suceder que se confundam separação e independência institucionais ou proximidade e cooperação com as barreiras ou aproximações geográficas, corográficas ou topográficas. E se o legislador entender que o STJ, o STA, o TC e o TdC funcionem onde julgarem melhor, desde que publicitem essa decisão…   

2021.09.18 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário