O Projeto de
Lei n.º 516/XIV/2.ª, de 18 de setembro de 2020, do grupo parlamentar do PSD, com
texto alterado, a 21 de setembro do mesmo ano, por iniciativa dos autores, foi aprovado na generalidade na Assembleia
da República (AR),
com votos a favor de PSD, CDS, Iniciativa
Liberal e de 8 deputados do PS, mas com a abstenção da maior parte dos
deputados do PS, dos deputados do BE, do PCP, do PEV e das
deputadas não inscritas Joacine
Katar Moreira e Cristina Rodrigues e os votos
contra do PAN e do Chega.
O
diploma, que dera entrada no Parlamento a 20 de setembro do ano transato, passa
agora à discussão na especialidade na 1.ª Comissão, a Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com eventual conexão com a 13.ª,
a Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização
e Poder Local, como previsto na respetiva nota de admissibilidade.
A
mesma nota de admissibilidade, colocando a hipótese de a
iniciativa dos deputados envolver, no ano económico em curso, aumento das
despesas ou diminuição das receitas previstas no Orçamento do Estado (cf
n.º 2 do art. 120.º do Regimento e n.º 2 do art. 167.º da Constituição), ao determinar a transferência
das sedes do Tribunal Constitucional (TC), do Supremo Tribunal
Administrativo (STA)
e da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de Lisboa para Coimbra e ao
prever, no artigo 7.º, a entrada em vigor da iniciativa no dia seguinte ao da
sua publicação, sugere que, em caso de aprovação, o limite imposto pela
lei-travão seja acautelado no decurso do processo legislativo, por exemplo
remetendo a respetiva entrada em vigor (ou produção de
efeitos) para a data
de entrada em vigor do OE posterior à sua publicação.
O
projeto de lei em referência pretende proceder à:
a)
10.ª alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei
da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), alterada pelas Leis n.ºs
143/85, de 26 de novembro, 85/89, de 7 de setembro, 88/95, de 1 de setembro, e
13-A/98, de 26 de fevereiro, e pelas Leis Orgânicas n.ºs 1/2011, de
30 de novembro, 5/2015, de 10 de abril, 11/2015, de 28 de agosto, 1/2018, de 19
de abril, e 4/2019, de 13 de setembro;
b)
13.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado
pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs
4-A/2003, de 19 de fevereiro, 107-D/2003, de 31 de dezembro, 1/2008, de 14 de
janeiro, 2/2008, de 14 de janeiro, 26/2008, de 27 de junho, 52/2008, de 28 de
agosto, e 59/2008, de 11 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de
julho, e pelas Leis n.ºs 55- A/2010, de 31 de dezembro, e 20/2012,
de 14 de maio, pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, e pela Lei n.º
114/2019, de 12 de setembro;
c)
3.ª alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei
de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos
Políticos), alterada
pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, e pela Lei n.º 71/2019, de 31 de
dezembro.
Em
síntese, o conteúdo do projeto de lei é o estabelecimento de que: o Tribunal Constitucional exerce a sua jurisdição no
âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa e tem sede em Coimbra; o Supremo Tribunal
Administrativo tem sede em Coimbra e jurisdição em todo o território nacional;
e a Entidade das
Contas e Financiamentos Políticos tem sede em
Coimbra, podendo funcionar em instalações do Tribunal Constitucional.
Mais
estipula que o respetivo processo de transferência e instalação em Coimbra se inicia
na data da entrada em vigor da lei, ficando definitivamente concluído até ao
final de 2022; e que é acompanhado e monitorizado por uma comissão constituída
por prestigiadas personalidades nacionais, de profissões jurídicas e não
jurídicas, a designar pelo membro do Governo responsável pela área da Justiça,
no prazo de trinta dias a contar da entrada em vigor da lei.
Aos
trabalhadores com vínculo de emprego público por tempo indeterminado dos mapas
de pessoal do TC e do STA aplicam-se
os instrumentos de mobilidade previstos na Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que
aprova a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, e da Lei n.º 25/2017, de 30
de maio, que aprova o regime de valorização profissional dos trabalhadores com
vínculo de emprego público, sem prejuízo de outros instrumentos de mobilidade
previstos em legislação especialmente aplicável. E os trabalhadores que adiram,
imediata e voluntariamente, à transferência para a cidade de Coimbra beneficiam
do regime previsto no artigo 24.º da Lei n.º 25/2017, de 30 de maio (ajudas de
custo durante um ano; e, depois, subsídio de fixação, subsídio de deslocação,
subsídio de residência mensal, garantia de transferência escolar dos filhos e preferência de colocação em procedimento concursal do cônjuge
ou equivalente).
O primeiro
equívoco consiste na falibilidade prevista neste processo legislativo. Como se
trata de uma lei orgânica, a aprovação final global carece do voto favorável da
maioria dos deputados em efetividade de funções. Assim, mantendo-se a abstenção
da maioria dos deputados do PS, é previsível que o projeto não tenha sucesso e
a AR esteja a trabalhar para aquecer.
Também é
equívoca a posição dos deputados que se abstêm nesta matéria. A questão da sede
destas entidades pode não ser relevante, mas, uma vez colocada, requer uma
posição inequívoca a favor ou contra.
Acusa-se o
PSD de aproveitamento eleitoral (mormente a generalidade dos partidos, com exceção do
CDS e da Iniciativa Liberal), sendo que
as sondagens preveem um empate técnico entre as candidaturas autárquicas
protagonizadas pelo PS e pelo PSD no município de Coimbra. Ora, o projeto de
lei foi apresentado em setembro de 2020, muito antes do debate eleitoral
autárquico.
Perante o
anúncio a abstenção parlamentar do PS face ao projeto de lei e a crítica dos
meritíssimos juízes-conselheiros do TC, o Governo fez saber que, se o TC não
for transferido para Coimbra, a cidade será dotada de uma maternidade. Não
creio que haja equivalência entre o TC e uma maternidade. Se ainda fosse a
transferência da sede AR, enquanto mãe nas leis ou casa da democracia,
entenderia melhor. Assim…
Todavia, os
equívocos surgem logo na “Exposição de motivos” que encabeça o projeto de lei.
Vejamos como.
É referido
que, em 2019, os partidos reconheceram que Portugal é um dos países da UE “com
um perfil mais centralizado e centralizador”, que se estende “à organização
judiciária, sendo disso exemplo o facto de a sede da generalidade dos altos
tribunais se encontrar localizada em Lisboa, incluindo a do Tribunal
Constitucional”. Mais se afirma que “o desenvolvimento equilibrado dos vários
territórios passa também por uma adequada distribuição do ‘mapa judiciário’ e
que a organização judiciária não pode ficar à margem de um processo mais
abrangente de descentralização e de reorganização e de gestão do Estado,
constituindo também um sinal incontornável da aproximação das instituições aos cidadãos”.
Ora, a
descentralização não consiste em colocar um ministério, uma secretaria de Estado,
uma direção-geral, a sede de um órgão de soberania numa localidade qualquer,
que não seja a capital. Tudo isso pode ser feito, mas, se uma fração dos
poderes – legislativo, executivo, administrativo e judiciário – não for
outorgada a entidades regionais ou locais, continuamos com um Estado centralizado
e centralizador. E o projeto de lei mantém, para o TC, a “jurisdição no âmbito
de toda a ordem jurídica portuguesa” e, para o STA, a jurisdição em todo o
território nacional.
Dizer que
isto constitui “um sinal incontornável da aproximação das instituições aos cidadãos”
é propaganda barata. Dificilmente o cidadão comum entra num supremo tribunal. A
matéria de facto é habitualmente apurada na instância. Por outro lado, os
magistrados não costumam desfilar publicamente.
Também os
deputados escreveram que “a presente iniciativa assinala um incontornável sinal
democrático e político, reforçando a visibilidade do valor da independência do
poder judicial relativamente ao poder político, através da distanciação
geográfica das respetivas sedes”.
Não é
verdade que a independência dos tribunais esteja relacionada com a separação
geográfica das suas sedes das dos outros órgãos de soberania. Hoje a forma de
comunicação e de pressão é múltipla e subtil. Se me dissessem que a composição
do TC devia ser alterada, por exemplo, não sendo os juízes todos eleitos pela
AR, mas provindo alguns da iniciativa do Presidente da República e, até, de
outras proveniências tipificadas em lei e serem todos eles oriundos da
magistratura, eu veria reforçada a independência do TC. De contrário, não.
De resto,
concordo que “nos sistemas comparados, o exemplo mais paradigmático deste valor
democrático e político encontramo-lo no Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha, que foi localizado na cidade de Karlsruhe, intencionalmente deslocada
das outras instituições federais, designadamente da sede do Governo”.
Também é
verdade que a cidade de Coimbra, pela sua centralidade geográfica e pela sua
indelével caraterística de ‘Cidade Universitária’ e representatividade, no plano
nacional e internacional, no ensino do Direito, dispondo hoje, inclusivamente,
de um centro inigualável e especificamente vocacionado ao estudo da
jurisprudência – a Casa da Jurisprudência da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra –, reúne condições ímpares para acolher a sede do
Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo”.
Mais digo
que até poderia sediar o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal de Contas (TdC). Não vejo por que motivo terá de ser o TC e o STA.
Por fim, o
grande equívoco está nos juízes do TC. Do Palácio Ratton, onde está sediado
o TC, saiu um parecer negativo que arrasa os
argumentos da proposta do PSD.
Segundo o PSD, a mudança reforçaria a “independência do poder
judicial relativamente ao poder político, através da distanciação geográfica
das respetivas sedes”. Os sociais-democratas exemplificam ainda com
a situação alemã, onde o Tribunal Constitucional Federal está sediado em
Karlsruhe. Face a este argumento, os juízes-conselheiros
consideram que essa independência do TC não está em causa ou “carece de
afirmação simbólica”. E sustentam que a transferência da sede por
decisão do poder político teria “uma carga simbólica
negativa, degradando a perceção pública da autoridade, autonomia e relevância
do órgão”. Assim, lê-se no parecer:
“A transferência
seletiva da sede de um órgão de soberania, baseada em qualquer critério que não
seja o da natureza e dignidade constitucional das funções que desempenha, não poderia deixar de constituir um grave desprestígio”.
Sobre o exemplo alemão, consideram a analogia
“infundada” e que a situação ocorreu por “indisponibilidade da capital
histórica no momento da criação do órgão”; e os exemplos em que os órgãos
de soberania estão fora da capital têm “determinadas particularidades”.
É lamentável que, para o TC, a simples transferência da sede dum órgão de
soberania seja desprestigiante. Mais parece desconhecer que é ao Parlamento que
incumbe o ato de legislar.
É certo que, depois da reação da opinião pública o TC, segundo o “Público”, fez saber que o “desprestígio” não se refere à cidade de Coimbra, mas apenas à
possibilidade de Lisboa perder um dos órgãos de soberania. Onde está a
diferença? Os órgãos de soberania são nacionais, não são de Lisboa. Os
Presidentes da República, em presidências abertas, promulgaram leis e decretos
fora de Lisboa, o Conselho de Ministros já reuniu muitas vezes fora de Lisboa.
Mais: Lisboa não foi sempre a capital. Também o foram, por exemplo, Guimarães, Lamego, Viseu, Coimbra, Salvador da Baía, Rio de Janeiro. E a Cortes reuniram em várias localidades.
É óbvio que as escolhas de localização têm sempre
razões históricas e políticas.
Têm, no
entanto, razão os juízes do TC quando contestam o argumento da necessidade de dar um passo “mais ambicioso no processo de
descentralização das instituições do Estado”. Relativamente a este
ponto, o parecer rejeita o argumento de que a saída da sede da capital “não
constitui uma medida de descentralização no sentido (jurídico-administrativo) rigoroso e próprio do termo” e sublinha que a concretização da descentralização
seria feita com o reforço das atribuições de autonomia das autarquias locais.
E ao argumento de que a cidade de Coimbra tem uma “forte tradição de
ensino de direito” e um “centro dedicado à jurisprudência”, sendo por
isso o local ideal, respondem os juízes afirmando que “uma
instituição cultivar o estudo da jurisprudência é irrelevante para a questão da
localização do TC”. Penso que têm razão, mas esquecem que, em política, não é
despicienda a qualidade do objeto que se pretende enriquecer. E, se a alegação
é irrelevante, também não é motivo para contestação, mas uma oportunidade para
reconhecer a mais-valia de Coimbra.
Em todo o caso, ressalta que, no painel dos juízes críticos, existem dois juízes que discordam do parecer apresentado: Mariana
Canotilho, professora da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, e Manuel Costa Andrade, professor catedrático da
Universidade de Coimbra.
Mariana
Canotilho defende que a Constituição não refere a
capital do país como tendo que ser o local das instituições e que a
“localização dos órgãos do Estado é matéria estritamente política” e que o TC deve
limitar-se a assinalar (não a ponderar) “os
eventuais constrangimentos de ordem prática”. Assim, a juíza-conselheira
sublinha que a competência é do legislador e não do TC e
lamenta que do parecer se extraia que “a mudança de localização seria uma diminuição
do prestígio e autoridade institucionais”.
Também Manuel Costa Andrade, ex-presidente do TC, critica o parecer do
órgão. Para o juiz-conselheiro é ao Parlamento que compete
decidir a sede do TC e defende que “qualquer chão nacional tem a
mesma dignidade e legitimidade para acolher o TC”.
Bem observado. Só se espera que os órgãos de soberania respeitem as
competências de uns e de outros e que primem pela separação cooperante. Não vá
suceder que se confundam separação e independência institucionais ou
proximidade e cooperação com as barreiras ou aproximações geográficas, corográficas
ou topográficas. E se o legislador entender que o STJ, o STA, o TC e o TdC
funcionem onde julgarem melhor, desde que publicitem essa decisão…
2021.09.18 – Louro de Carvalho
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