A tentação da
inveja mina as relações familiares, sociais, políticas e eclesiais. Nada tão
mau como levar a mal que os outros tenham tanto êxito como nós ou tenham aquele
êxito que nós não conseguimos ter. A incapacidade de nos alegrarmos com a
felicidade dos outros é a inveja no seu grau mais caprichoso, só comparável à
alegria sentida quando vemos os outros na lama.
Paralelamente,
está o exclusivismo que nos formata para o facto de sermos nós os únicos a ter
a capacidade de levar por diante grandes empreendimentos: os outros ou não são
capazes ou, se tentam, são intrusos e podem tirar-nos poder, riqueza, “sabedoria”
e prestígio.
E outrossim,
o fechamento no grupo, o zelo apenas por quem alinha connosco, porque pertence
ao clã, ao partido, ao clube, à comunidade religiosa, excluindo quaisquer
outras iniciativas e contributos por não serem nossos ou dos nossos é cancro
que mina toda a comunidade, todo o empreendimento, toda a boa obra.
O testemunho
desta inveja, emulação, exclusivismo ou fechamento emerge neste fabuloso texto
veterotestamentário do Livro dos Números (Nm
11,25-29) tomado
como 1.ª leitura do XXVI domingo do Tempo Comum no Ano B e que também foi lido
a 29 de setembro de 1979, na Sé de Lamego, na Missa de ordenação presbiteral do
Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida
e minha.
O texto em
referência faz remontar a Moisés e ao deserto a
instituição dos anciãos (em hebraico: “tzequenîm”), que recebem, na
ótica do catequista bíblico, o Espírito de Deus para colaborarem na governação
do Povo de Deus.
Os anciãos, uma instituição no universo político-social e
religioso de Israel, são os “cabeças de família” que formavam, em cada cidade,
um “conselho” que presidia à comunidade.
É curioso o modo de referir o dom do Espírito: Deus tira “uma
parte” do Espírito que estava em Moisés e derrama-o sobre os 70 anciãos. De
facto, Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigia sozinho o Povo
de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi condividida com os
setenta anciãos, o Espírito que repousava sobre Moisés foi repartido por todos.
Esta bizarra referência dá a ideia correta da unidade do Espírito e da partilha
do mesmo e único Espírito (cf Ef 4,3.4) por todos
aqueles que Deus chama à missão.
Mais a presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se
na capacidade de profetizar. Porém, é de ter em conta que este profetismo não
tem nada a ver com o profetismo dos grandes profetas pregadores e escritores
que Israel conhecerá mais tarde; designa, antes um estado de entusiasmo, êxtase
ou delírio coletivo, com vista à criação dum clima de fervor e exaltação
religiosa, vistos então como sinais da presença do Espírito de Deus.
Entretanto, Eldad e Medad, dois anciãos que estariam na lista
dos 70 escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da receção do
Espírito, começaram a profetizar, o que Josué vê como abuso intolerável, que
põe em causa as competências da hierarquia, pelo que propõe a Moisés que lhe
ponha cobro. A surpreendente resposta de Moisés é a resposta do homem livre,
magnânimo, aberto, nada preocupado com o controlo dos mecanismos de poder, mas
com a vida e a felicidade do Povo: “Estás
com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o
Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!” (Nm 11,29). É o protoanúncio do Pentecostes, em que o Espírito se
derrama sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf At 2,16-21). É a lição do Espírito que sopra onde e donde quer, não se
deixando aprisionar (cf Jo 3,8).
***
Às 12 horas
deste dia 26, Francisco apareceu na janela do estúdio do Palácio Apostólico do
Vaticano para recitar o Angelus com
os fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro. E, ao introduzir a oração
mariana, comentou a passagem evangélica deste XXVI domingo do Tempo Comum (Mc
9,38-43.45-47-48), que nos apresenta um breve diálogo entre Jesus e o apóstolo João, falando
este em nome de todo o grupo de discípulos. Viram um homem a expulsar demónios
em nome do Senhor, mas impediram-no de o fazer, porque ele não fazia parte do
grupo.
Porém, Jesus
insta com os discípulos a que não atrapalhem os que trabalham para o bem, pois
contribuem para a realização do desígnio de Deus (cf Mc 9,38-41), na perspetiva de que quem não é
contra nós é por nós. Isto, sem anular o aforismo de contraponto “quem
está comigo está contra mim” (Mt 12,30), que
significa “quem se recusa a estar com Jesus obviamente está contra Ele, mas
quem faz o que Ele quer não pode dizer mal d’Ele.
Depois, Jesus
avisa: em vez de dividir as pessoas em boas e más, somos chamados a zelar pelo
nosso coração, para não sucumbir ao mal e escandalizar os outros (cf Mc 42-45.47-48). Na verdade, se o nosso olhar for
puro, o coração estiver sem preconceitos e a cabeça sem teias de aranha, nós
abrir-nos-emos à moção do Espírito e aceitaremos todo o bem, venha donde
vier.
E o Santo
Padre vê nas palavras de Jesus “uma
tentação” e “uma exortação”. A
tentação leva ao “fechamento”,
exclusão e à inveja, a ver, nos outros, os rivais, os adversários, os inimigos,
os excomungados, os malfeitores.
Assinala o
Pontífice que “os discípulos queriam impedir um bom trabalho apenas porque
aquele que o fez não pertencia ao seu grupo”. Pensavam ter “direitos
exclusivos sobre Jesus” e ser os únicos autorizados a trabalhar pelo Reino de
Deus, sentindo-se os únicos amados. Daí, terem os outros como estranhos, a
ponto de se tornarem hostis para com eles.
É, como
refere Frei Bento Domingues na sua crónica dominical no “Público”, é o que “sempre acontece quando o discípulo quer ser mais
rigoroso e exigente do que o mestre, para manter a coesão do grupo dos
escolhidos e as condições para o exercício correto das suas competências”, pelo
que “nunca faltam os zeladores rigoristas, de espírito inquisitorial, para
denunciar ao chefe a desordem que está a minar a sua autoridade”. Mais: isto
significa a tentativa de impor ao Espírito a observância de regras
estabelecidas por nós, como se “o Espírito Santo, o Espírito de profecia, de
clarividência na orientação do grupo religioso”, não pudesse fazer o que lhe
apraz.
E o Papa
adverte:
“Todo
o fechamento, de facto, afasta quem não pensa como nós e isso – sabemo-lo –
está na raiz de muitos males da história: do absolutismo, que tantas vezes
gerou ditaduras, e de tanta violência contra quem é diferente”.
Mas porfia em
que “é preciso zelar contra o fechamento da Igreja”, já que o diabo (diabo que dizer: o que divide) “insinua suspeita para dividir e
excluir as pessoas”, mesmo que estas expulsem o próprio diabo. Em vez de
querermos dar a impressão de que somos “os primeiros da classe” e manter os
outros à distância – fazendo questão de dizer que somos crentes e católicos ou
que pertencemos a este ou àquele grupo de fiéis –, devemos ser “comunidades
humildes e abertas” e “tentar caminhar com todos”. E, em vez de nos pormos
a julgar os outros, acusando-os do pior, havemos de pedir ao Senhor a graça de
‘vencermos
a tentação de julgar e catalogar’ e de nos livrarmos “da mentalidade do
‘ninho’, a de zelosamente nos circunscrevermos ao pequeno grupo dos que se
consideram bons: “sacerdote com os fiéis, agentes da pastoral fechados entre
si, para que ninguém se infiltre, os movimentos e as associações com os seus
carismas particulares. Tudo isso, segundo o Papa, corre o risco de tornar
as comunidades cristãs lugares de separação e não de comunhão. Ora, ao invés
dos fechamentos, o Espírito Santo quer abertura, “comunidades acolhedoras onde haja
espaço para todos”.
Depois, o
Evangelho contém uma exortação de Jesus no sentido de, em vez
de julgarmos tudo e todos, cuidarmos de nós próprios. De facto, “o risco é ser
inflexível com os outros e indulgentes connosco”. Por isso, diz o
Pontífice, Jesus exorta a “não nos conformarmos com o mal”
com imagens impressionantes ao estilo hiperbólico oriental: “Se algo em ti (pé, mão, olho…) causa um escândalo,
corta-o!" (cf
Mc 9,43-48).
Obviamente,
como advertia o Padre passionista na missa das 12 horas, em Santa Maria da
Feira,
Jesus não
quer que nos mutilemos, mas que nos decidamos pelo bem removendo tudo o que, na
nossa vida, nos sirva de escândalo ou pedra de tropeço. E dizia o sacerdote que
a palavra “decisão” contém a noção de “corte”. Na verdade, o verbo latino “decidere” significa cortar de cima para
baixo, tal como temos “excisão”, corte de dentro para fora, ou “incisão”, corte
de fora para dentro e “precisão”, corte pela frente. Assim, decidir implica
rutura com o que estorva.
A este
respeito, o Papa observou que o Evangelho não diz: “Se algo causa escândalo, para, pensa, melhora um pouco...”. Antes
diz: “Corta! Imediatamente!”. E
considerou:
“Jesus
é radical nisso, exigente, mas para o nosso bem, como um bom médico. Cada
corte, cada poda, é para crescer melhor e dar frutos no
amor. Perguntemo-nos então: o que há em mim que contrasta com o
Evangelho? O que, concretamente, Jesus quer que eu corte em minha vida?”.
***
Dom António
Couto frisa que o Evangelho mostra “um Jesus feliz por ver que o bem saltou as
raias do grupo que o seguia ao ser praticado por pessoas de fora. Por sua vez, João
encarna a figura do Josué do aludido texto do Livro dos Números querendo o bem
todo para o mestre e o seu grupo e vendo com maus olhos que também outros o
possam fazer, até porque os discípulos tinham fracassado (Marcos
9,18.28-29) onde agora
veem alguém de fora ter sucesso.
O motivo
aduzido por João para obstar à continuidade da ação em nome de Jesus por parte
do estranho era “porque não nos seguia”
(“hóti ouk
êkoloúthei hêmîn”: Mc
9,38). Ora, como anota o prelado
académico, no Evangelho, fala-se sempre em “seguir Jesus”, e não “a nós”. O
mesmo sucede no único lugar paralelo desta passagem em Lucas (Lc 9,49): “porque não
segue connosco” (“hóti ouk akoloutheî meth’ hêmôn”). Dá para ver que os discípulos ainda não perceberam a lição da humildade e
do serviço, querendo eles próprios estar no centro, “usurpando o primeiro lugar”.
E o texto
“mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal
assumida pelos discípulos”, julgando-se donos exclusivos dalgumas funções e
zelando esse status.
Nem sempre é
bom querer o bem. Com efeito, querer o bem só para nós, de forma invejosa e
exclusiva, é mau, porque nos leva “a retirar o bem do alcance dos outros e até
a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem
sequer realizá-lo, beneficiando outros”. Por isso, em consonância com o Papa, o
Bispo de Lamego assenta em que “o bem que divide e exclui nunca é bem”, pois o
bem mostra-se como tal só “quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água,
pura alegria entre irmãos”.
Depois, a lição
de Jesus valoriza o bem por mais pequeno que ele pareça, desde que posto ao
serviço das pessoas e, em especial, alo serviço do acolhimento dos enviados de
Deus. Na verdade, segundo a palavra de Jesus, como assegura o Bispo de Lamego, “um
simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade”.
E o prelado
lamecense especifica os motivos da atenção a dar “às nossas mãos, pés, olhos,
entranhas, coração”:
“A mão, que indica a nossa ação,
pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador
cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica
o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o
abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de
amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria
fraterna ou ao ciúme e à inveja.”.
Enfim, é preciso
cortar pela raiz o vírus mortal que nos leve a quer o bem só para nós e a
desejar o mal aos outros. Só assim teremos abertura e seremos espaço humano de
acolhimento.
***
Também a
lição de Tiago (Tg 5,1-6), que
proclamamos em 2.ª leitura, evidencia que o rico é aquele que quer o bem só
para si, roubando-o aos outros. Ao mesmo tempo, “autoexclui-se da comunhão, da
bondade e da alegria da mesa fraterna”. Como resultado, depara-se com “a traça,
o mofo, a ferrugem, a podridão”. O texto da Carta de Tiago, mormente no uso dos
seus veementes imperativos, constitui um valioso e permanente complexo de
chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo e a maioria
não tem quase nada.
Em linguagem
muito dura, o texto de Tiago aproxima-se do retratado na geena de que fala o
Evangelho (Mc 9,43.45.47), “um vale
situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch,
onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os próprios filhos” – culto extinto
pelo rei Josias no quadro da reforma religiosa, que destinou este lugar ao ato
de queima das entranhas dos animais. Daqui vem, segundo Dom António Couto, todo
o “espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo (Jr 7,31-34;
19,1-13; 32,35), ‘vermes
que não morrem, fogo que não se apaga’ (Mc 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o
inferno”.
***
E é o
espírito de abertura, tolerância e acolhimento – longe da inveja e exclusivismo
– que nos leva a aceitar o bem de todos e a querer o bem para todos. E isso,
tornado estilo de vida, faz dos cristãos a comunidade e um conjunto de
comunidades em que todos têm um só coração e uma só alma, provendo às necessidades
de todos (cf At
2,42-47; 4,32-37).
2021.09.26 – Louro de Carvalho
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