segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Contra a inveja, o exclusivismo, o fechamento

 

A tentação da inveja mina as relações familiares, sociais, políticas e eclesiais. Nada tão mau como levar a mal que os outros tenham tanto êxito como nós ou tenham aquele êxito que nós não conseguimos ter. A incapacidade de nos alegrarmos com a felicidade dos outros é a inveja no seu grau mais caprichoso, só comparável à alegria sentida quando vemos os outros na lama.

Paralelamente, está o exclusivismo que nos formata para o facto de sermos nós os únicos a ter a capacidade de levar por diante grandes empreendimentos: os outros ou não são capazes ou, se tentam, são intrusos e podem tirar-nos poder, riqueza, “sabedoria” e prestígio.

E outrossim, o fechamento no grupo, o zelo apenas por quem alinha connosco, porque pertence ao clã, ao partido, ao clube, à comunidade religiosa, excluindo quaisquer outras iniciativas e contributos por não serem nossos ou dos nossos é cancro que mina toda a comunidade, todo o empreendimento, toda a boa obra.      

O testemunho desta inveja, emulação, exclusivismo ou fechamento emerge neste fabuloso texto veterotestamentário do Livro dos Números (Nm 11,25-29) tomado como 1.ª leitura do XXVI domingo do Tempo Comum no Ano B e que também foi lido a 29 de setembro de 1979, na Sé de Lamego, na Missa de ordenação presbiteral do Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida e minha.

O texto em referência faz remontar a Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos (em hebraico: “tzequenîm”), que recebem, na ótica do catequista bíblico, o Espírito de Deus para colaborarem na governação do Povo de Deus.

Os anciãos, uma instituição no universo político-social e religioso de Israel, são os “cabeças de família” que formavam, em cada cidade, um “conselho” que presidia à comunidade.

É curioso o modo de referir o dom do Espírito: Deus tira “uma parte” do Espírito que estava em Moisés e derrama-o sobre os 70 anciãos. De facto, Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi condividida com os setenta anciãos, o Espírito que repousava sobre Moisés foi repartido por todos. Esta bizarra referência dá a ideia correta da unidade do Espírito e da partilha do mesmo e único Espírito (cf Ef 4,3.4) por todos aqueles que Deus chama à missão.

Mais a presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar. Porém, é de ter em conta que este profetismo não tem nada a ver com o profetismo dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde; designa, antes um estado de entusiasmo, êxtase ou delírio coletivo, com vista à criação dum clima de fervor e exaltação religiosa, vistos então como sinais da presença do Espírito de Deus.

Entretanto, Eldad e Medad, dois anciãos que estariam na lista dos 70 escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da receção do Espírito, começaram a profetizar, o que Josué vê como abuso intolerável, que põe em causa as competências da hierarquia, pelo que propõe a Moisés que lhe ponha cobro. A surpreendente resposta de Moisés é a resposta do homem livre, magnânimo, aberto, nada preocupado com o controlo dos mecanismos de poder, mas com a vida e a felicidade do Povo: “Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!(Nm 11,29). É o protoanúncio do Pentecostes, em que o Espírito se derrama sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf At 2,16-21). É a lição do Espírito que sopra onde e donde quer, não se deixando aprisionar (cf Jo 3,8).

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Às 12 horas deste dia 26, Francisco apareceu na janela do estúdio do Palácio Apostólico do Vaticano para recitar o Angelus com os fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro. E, ao introduzir a oração mariana, comentou a passagem evangélica deste XXVI domingo do Tempo Comum (Mc 9,38-43.45-47-48), que nos apresenta um breve diálogo entre Jesus e o apóstolo João, falando este em nome de todo o grupo de discípulos. Viram um homem a expulsar demónios em nome do Senhor, mas impediram-no de o fazer, porque ele não fazia parte do grupo. 

Porém, Jesus insta com os discípulos a que não atrapalhem os que trabalham para o bem, pois contribuem para a realização do desígnio de Deus (cf Mc 9,38-41), na perspetiva de que quem não é contra nós é por nós. Isto, sem anular o aforismo de contraponto “quem está comigo está contra mim” (Mt 12,30), que significa “quem se recusa a estar com Jesus obviamente está contra Ele, mas quem faz o que Ele quer não pode dizer mal d’Ele.

Depois, Jesus avisa: em vez de dividir as pessoas em boas e más, somos chamados a zelar pelo nosso coração, para não sucumbir ao mal e escandalizar os outros (cf Mc 42-45.47-48). Na verdade, se o nosso olhar for puro, o coração estiver sem preconceitos e a cabeça sem teias de aranha, nós abrir-nos-emos à moção do Espírito e aceitaremos todo o bem, venha donde vier. 

E o Santo Padre vê nas palavras de Jesus “uma tentação” e “uma exortação”. A tentação leva ao “fechamento”, exclusão e à inveja, a ver, nos outros, os rivais, os adversários, os inimigos, os excomungados, os malfeitores. 

Assinala o Pontífice que “os discípulos queriam impedir um bom trabalho apenas porque aquele que o fez não pertencia ao seu grupo”. Pensavam ter “direitos exclusivos sobre Jesus” e ser os únicos autorizados a trabalhar pelo Reino de Deus, sentindo-se os únicos amados. Daí, terem os outros como estranhos, a ponto de se tornarem hostis para com eles.

É, como refere Frei Bento Domingues na sua crónica dominical no “Público”, é o que “sempre acontece quando o discípulo quer ser mais rigoroso e exigente do que o mestre, para manter a coesão do grupo dos escolhidos e as condições para o exercício correto das suas competências”, pelo que “nunca faltam os zeladores rigoristas, de espírito inquisitorial, para denunciar ao chefe a desordem que está a minar a sua autoridade”. Mais: isto significa a tentativa de impor ao Espírito a observância de regras estabelecidas por nós, como se “o Espírito Santo, o Espírito de profecia, de clarividência na orientação do grupo religioso”, não pudesse fazer o que lhe apraz. 

E o Papa adverte:

Todo o fechamento, de facto, afasta quem não pensa como nós e isso – sabemo-lo – está na raiz de muitos males da história: do absolutismo, que tantas vezes gerou ditaduras, e de tanta violência contra quem é diferente”.

Mas porfia em que “é preciso zelar contra o fechamento da Igreja”, já que o diabo (diabo que dizer: o que divide) “insinua suspeita para dividir e excluir as pessoas”, mesmo que estas  expulsem o próprio diabo. Em vez de querermos dar a impressão de que somos “os primeiros da classe” e manter os outros à distância – fazendo questão de dizer que somos crentes e católicos ou que pertencemos a este ou àquele grupo de fiéis –, devemos ser “comunidades humildes e abertas” e “tentar caminhar com todos”. E, em vez de nos pormos a julgar os outros, acusando-os do pior, havemos de pedir ao Senhor a graça de ‘vencermos a tentação de julgar e catalogar’ e de nos livrarmos “da mentalidade do ‘ninho’, a de zelosamente nos circunscrevermos ao pequeno grupo dos que se consideram bons: “sacerdote com os fiéis, agentes da pastoral fechados entre si, para que ninguém se infiltre, os movimentos e as associações com os seus carismas particulares. Tudo isso, segundo o Papa, corre o risco de tornar as comunidades cristãs lugares de separação e não de comunhão. Ora, ao invés dos fechamentos, o Espírito Santo quer abertura, “comunidades acolhedoras onde haja espaço para todos”. 

Depois, o Evangelho contém uma exortação de Jesus no sentido de, em vez de julgarmos tudo e todos, cuidarmos de nós próprios. De facto, “o risco é ser inflexível com os outros e indulgentes connosco”. Por isso, diz o Pontífice, Jesus exorta a “não nos conformarmos com o mal” com imagens impressionantes ao estilo hiperbólico oriental: “Se algo em ti (pé, mão, olho…) causa um escândalo, corta-o!" (cf Mc 9,43-48)

Obviamente, como advertia o Padre passionista na missa das 12 horas, em Santa Maria da Feira,

Jesus não quer que nos mutilemos, mas que nos decidamos pelo bem removendo tudo o que, na nossa vida, nos sirva de escândalo ou pedra de tropeço. E dizia o sacerdote que a palavra “decisão” contém a noção de “corte”. Na verdade, o verbo latino “decidere” significa cortar de cima para baixo, tal como temos “excisão”, corte de dentro para fora, ou “incisão”, corte de fora para dentro e “precisão”, corte pela frente. Assim, decidir implica rutura com o que estorva.

A este respeito, o Papa observou que o Evangelho não diz: “Se algo causa escândalo, para, pensa, melhora um pouco...”. Antes diz: “Corta! Imediatamente!”. E considerou:

Jesus é radical nisso, exigente, mas para o nosso bem, como um bom médico. Cada corte, cada poda, é para crescer melhor e dar frutos no amor. Perguntemo-nos então: o que há em mim que contrasta com o Evangelho? O que, concretamente, Jesus quer que eu corte em minha vida?”.

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Dom António Couto frisa que o Evangelho mostra “um Jesus feliz por ver que o bem saltou as raias do grupo que o seguia ao ser praticado por pessoas de fora. Por sua vez, João encarna a figura do Josué do aludido texto do Livro dos Números querendo o bem todo para o mestre e o seu grupo e vendo com maus olhos que também outros o possam fazer, até porque os discípulos tinham fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.

O motivo aduzido por João para obstar à continuidade da ação em nome de Jesus por parte do estranho era “porque não nos seguia(“hóti ouk êkoloúthei hêmîn”: Mc 9,38). Ora, como anota o prelado académico, no Evangelho, fala-se sempre em “seguir Jesus”, e não “a nós”. O mesmo sucede no único lugar paralelo desta passagem em Lucas (Lc 9,49): “porque não segue connosco(“hóti ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Dá para ver que os discípulos ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço, querendo eles próprios estar no centro, “usurpando o primeiro lugar”.

E o texto “mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos”, julgando-se donos exclusivos dalgumas funções e zelando esse status.

Nem sempre é bom querer o bem. Com efeito, querer o bem só para nós, de forma invejosa e exclusiva, é mau, porque nos leva “a retirar o bem do alcance dos outros e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros”. Por isso, em consonância com o Papa, o Bispo de Lamego assenta em que “o bem que divide e exclui nunca é bem”, pois o bem mostra-se como tal só “quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos”.

Depois, a lição de Jesus valoriza o bem por mais pequeno que ele pareça, desde que posto ao serviço das pessoas e, em especial, alo serviço do acolhimento dos enviados de Deus. Na verdade, segundo a palavra de Jesus, como assegura o Bispo de Lamego, “um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade”.

E o prelado lamecense especifica os motivos da atenção a dar “às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração”:

A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja.”.

Enfim, é preciso cortar pela raiz o vírus mortal que nos leve a quer o bem só para nós e a desejar o mal aos outros. Só assim teremos abertura e seremos espaço humano de acolhimento.

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Também a lição de Tiago (Tg 5,1-6), que proclamamos em 2.ª leitura, evidencia que o rico é aquele que quer o bem só para si, roubando-o aos outros. Ao mesmo tempo, “autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna”. Como resultado, depara-se com “a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão”. O texto da Carta de Tiago, mormente no uso dos seus veementes imperativos, constitui um valioso e permanente complexo de chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo e a maioria não tem quase nada.

Em linguagem muito dura, o texto de Tiago aproxima-se do retratado na geena de que fala o Evangelho (Mc 9,43.45.47), “um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os próprios filhos” – culto extinto pelo rei Josias no quadro da reforma religiosa, que destinou este lugar ao ato de queima das entranhas dos animais. Daqui vem, segundo Dom António Couto, todo o “espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo (Jr 7,31-34; 19,1-13; 32,35), ‘vermes que não morrem, fogo que não se apaga’ (Mc 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno”.

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E é o espírito de abertura, tolerância e acolhimento – longe da inveja e exclusivismo – que nos leva a aceitar o bem de todos e a querer o bem para todos. E isso, tornado estilo de vida, faz dos cristãos a comunidade e um conjunto de comunidades em que todos têm um só coração e uma só alma, provendo às necessidades de todos (cf At 2,42-47; 4,32-37).

2021.09.26 – Louro de Carvalho

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