quinta-feira, 31 de março de 2022

Idosos, jovens, crianças, guerra e refugiados no coração do Papa

A 30 de março, Francisco continuou o seu ciclo de catequeses sobre a velhice, na Audiência Geral, realizada na Sala Paulo VI, com o tema “Fidelidade à visita de Deus para a geração futura”.

Estiveram no centro da catequese do Pontífice os idosos Simeão e Ana, cuja razão de vida, “antes de se despedirem deste mundo, é aguardar a visita de Deus”. Simeão sabe, através de premonição do Espírito Santo, que não morrerá sem ter visto o Messias e Ana vai ao Templo todos os dias, dedicando-se ao seu serviço. Ambos reconhecem a presença do Senhor no Menino que enche de consolação a sua longa espera e tranquiliza a sua despedida da vida – “cena de um encontro com Jesus e de despedida”, no dizer do Papa.

Segundo o já idoso Bispo de Roma, de Simeão e Ana “aprendemos que a fidelidade da espera aguça os sentidos”. Com efeito, o Espírito Santo “ilumina os nossos sentidos, aguça os sentidos da alma, apesar dos limites e das feridas dos sentidos do corpo: um mais cego, outro mais surdo”.

Embora a velhice debilite a sensibilidade do corpo, a velhice que se exerça na expectativa da visita de Deus não perderá a sua passagem, antes estará mais pronta para a acolher, terá mais sensibilidade para acolher o Senhor quando Ele passar em sintonia com o que o comportamento do cristão postula: estar atento às visitas do Senhor, porque o Senhor passa, em nossa vida, com as inspirações, com o convite para sermos melhores. Por isso, dizia Santo Agostinho: “Tenho medo de Deus quando ele passa, tenho medo de não perceber e deixá-lo passar”. Ora, é o Espírito Santo que prepara os sentidos para entendermos quando o Senhor nos visita, como fez com Simeão e Ana.

No dizer do Papa, precisamos “duma velhice dotada de sentidos espirituais vivos e capazes de reconhecer os sinais de Deus, ou melhor, o Sinal de Deus, que é Jesus”, que nos põe em crise sempre, porque é “sinal de contradição”, mas que nos enche de alegria. Na verdade, para Francisco, “estar em crise enquanto se serve ao Senhor dá paz e alegria, muitas vezes”. Assim, o problema é a “anestesia dos sentidos espirituais”, uma síndrome generalizada numa sociedade que cultiva a ilusão da juventude eterna, cuja caraterística mais perigosa consiste em ser-se quase inconsciente, ou seja, não se ter a consciência de estar anestesiado.

Segundo o Pontífice, se perdemos a sensibilidade do tacto ou do paladar, damo-nos conta disso imediatamente, mas a perda da sensibilidade da alma “podemos ignorá-la por muito tempo”. Tal insensibilidade dos sentidos espirituais não atinge só o pensamento de Deus ou da religião, mas também “a compaixão e a piedade, a vergonha e o remorso, a fidelidade e a dedicação, a ternura e a honra, a responsabilidade própria e a dor pelo próximo”.

Considerando que “os sentidos espirituais anestesiados confundem tudo e a pessoa não sente espiritualmente”, o Papa reconhece que a velhice se torna “a primeira vítima desta perda de sensibilidade” e que, “numa sociedade que exerce a sensibilidade sobretudo por prazer, só pode haver a perda de atenção pelos mais frágeis e prevalecer a competição dos vencedores”. Assim, a retórica da inclusão não passa de “fórmula ritual de cada discurso politicamente correto”, não trazendo “uma verdadeira correção nas práticas da normal convivência”. Por consequência, “uma cultura da ternura social tem dificuldade em crescer” e o espírito da fraternidade humana “é como uma peça de vestiário descartada, para admirar, sim, mas... num museu”.

Verifica o Pontífice que podemos observar, na vida real, muitos jovens capazes de honrar até ao fundo esta fraternidade, mas que existe, a par disso, “um descarte culpado, entre o testemunho desta linfa vital da ternura social e o conformismo, que obriga a juventude a contar a sua história de modo completamente diferente”.

Ao invés, a revelação que estimula a sensibilidade de Simeão e Ana consiste, segundo Francisco, “em reconhecer numa criança, que eles não geraram e que veem pela primeira vez, o sinal certo da visita de Deus”, aceitando não serem eles protagonistas, mas apenas testemunhas. Na verdade, no dizer do Papa, “quando alguém aceita não ser protagonista, mas se envolve como testemunha, vai tudo bem”: o homem ou a mulher amadurece bem. Já quando se tem o desejo de ser sempre protagonista, o caminho rumo à plenitude da velhice nunca amadurecerá. E, por conseguinte, “a visita de Deus não se encarna na sua vida, não os põe em cena como salvadores: Deus não se encarna na sua geração, mas na geração vindoura”.

Porém, “a velhice que cultivou a sensibilidade da alma extingue toda a inveja entre as gerações, todo o ressentimento, toda a recriminação pelo advento de Deus na geração seguinte, que chega com a despedida da própria”. E isso acontece a um idoso aberto como um jovem aberto: despede-se da vida, mas entrega a sua vida à nova geração. Como Simeão dirá: “Agora posso ir em paz”.

***

A um idoso jovem, como é o Papa, não falta o fôlego nem dói a voz, mesmo que seja trémula, para bradar pelo fim da guerra e ansiar pelo dom e esforço da paz.  

Assim, após a catequese da Audiência Geral, Francisco dirigiu “uma saudação particularmente afetuosa, acompanhada de longo aplauso, às crianças ucranianas, acolhidas pela Fundação ‘Ajude-as a viver’, pela Associação ‘Puer’ e pela Embaixada da Ucrânia junto à Santa Sé’, acompanhando a saudação com nova condenação do horror que ensanguenta o Leste Europeu e exortando à renovação das nossas orações para que esta crueldade selvagem, que é a guerra, pare.

Neste sentido, recomendou que, “esta última etapa do caminho quaresmal, olhemos para a Cruz de Cristo, expressão máxima do amor de Deus, e nos esforcemos por estarmos sempre perto dos que sofrem, dos que estão sozinhos, dos frágeis que sofrem violência e não têm quem os defenda”.

***

A associação ‘Puer’ visa a aplicação de medidas de apoio a situações sociais precárias, prestando especial atenção à proteção de menores em dificuldade. Uma história que se entrelaça com um evento dramático, ocorrido a 26 de abril de 1986, que levou à explosão dum reator na central nuclear Chernobyl. Desde então, milhares de crianças foram acolhidas em áreas não contaminadas, provenientes sobretudo de Belarússia, uma das nações mais afetadas pela radiação. E a fundação ‘Ajude-as a viver’ foi animada pela inestimável contribuição de pessoas de boa vontade que espontaneamente começaram a trabalhar para ajudar as populações infantis afetadas pelo desastre nuclear de Chernobyl. Nos últimos dias, uma delegação desta fundação foi a países de fronteira com a Ucrânia para levar ajuda humanitária, incluindo alimentos, roupas, cobertores, sapatos e medicamentos.

***

Pelo menos 144 crianças morreram na Ucrânia por causa da guerra que eclodiu a 24 de fevereiro, relatam fontes ucranianas, sublinhando que quase metade das vítimas estão em Kiev.

Segundo a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), são pelo menos 4 milhões e 300 mil as crianças deslocadas: mais de 1 milhão e 800 mil chegaram aos países vizinhos como refugiadas e 2 milhões e 500 mil as crianças deslocadas internamente. No dizer de Catherine Russell, diretora-geral da Unicef, “a guerra causou um dos mais rápidos deslocamentos em larga escala de crianças desde a II Guerra Mundial” – “um triste resultado que pode ter consequências duradouras para as gerações futuras”.

A guerra causa consequências devastadoras na infraestrutura civil. Atinge hospitais e escolas. A este respeito, o Ministério da Educação e Ciência da Ucrânia informou que mais de 500 estruturas educacionais foram danificadas. Estima-se que pelo menos 1 milhão e 400 mil pessoas na Ucrânia não tenham acesso a água potável. E a Unicef salientou que há, neste país, uma redução na cobertura para as vacinações de rotina e principalmente para as vacinações infantis, incluindo sarampo e poliomielite, o que pode levar rapidamente a surtos de doenças evitáveis com vacinas, especialmente em áreas superlotadas onde a população se refugia durante bombardeios e ataques aéreos. A guerra chegou ao seu 36.º dia e continua a causar traumas e devastação: destrói o futuro, especialmente o das novas gerações que precisam de paz e proteção.

***

Paralelamente, foi apresentada na Sala de Imprensa da Santa Sé a 36.ª viagem apostólica do Papa, desta vez para a ilha de Malta. E, como disse aos jornalistas em conferência de imprensa Matteo Bruni, diretor da Sala de Imprensa, será “difícil não levar em conta a guerra na Ucrânia”. 

Adiada por causa da pandemia, a visita concentrar-se-á nos temas do acolhimento – Malta é um local de desembarque para muitos migrantes que tentam atravessar o Mediterrâneo vindos do norte da África – e do legado apostólico de São Paulo, que naufragou na ilha a caminho de Roma.

Nos termos do programa, serão feitos cinco discursos em dois dias, a partir da manhã de sábado, 2 de abril, no palácio do Grão Mestre em Valeta, dirigido às autoridades maltesas e ao corpo diplomático, seguido de encontro de oração no Santuário Mariano de Ta’inu, na ilha de Gozo. No domingo, dia 3, Francisco reunirá com os jesuítas de Malta em encontro privado e depois rezará nas grutas de São Paulo em Rabat. Ainda pela manhã, será celebrada a Santa Missa no Largo dei Granai em Floriana que será seguida pela oração do Angelus e, à tarde, ocorrerá a visita ao centro de migrantes “João XXIII Peace Lab”, onde o Pontífice se encontrará com cerca de duzentas pessoas, provavelmente provenientes da África.

Referindo-se à dor no joelho que forçou o Papa Francisco a cancelar alguns eventos nas últimas semanas foi dito: “Não haverá precauções especiais, mas certamente os cuidados de sempre”.

Assim, na Audiência Geral do dia 30 de março, Francisco saudou os malteses em vista da sua viagem apostólica, que será uma oportunidade para “ir às fontes do Evangelho” e a uma nação que abre as suas portas para aqueles que “buscam refúgio”.

De facto, Malta é um lugar de desembarque para muitas pessoas que tentam atravessar o mar a partir do norte da África e o país onde se conserva a memória do naufrágio do Apóstolo dos Gentios que foi o primeiro a levar a fé do Evangelho a esta ilha.

Este país, localizado na bacia do Mediterrâneo, é o destino da próxima viagem apostólica do Papa Francisco, uma peregrinação que será marcada por encontros, orações e um abraço com os migrantes. E o Pontífice vincou isto após a catequese da Audiência Geral:

Irei a Malta. Nessa terra luminosa serei peregrino nos passos do Apóstolo Paulo, que ali foi acolhido com grande humanidade depois de ter naufragado no mar no caminho para Roma. Esta Viagem Apostólica será assim uma oportunidade para ir às fontes do anúncio do Evangelho, para conhecer pessoalmente uma comunidade cristã com uma história milenar e vivaz, para encontrar os habitantes de um país que está no centro do Mediterrâneo e no sul do continente europeu, hoje ainda mais comprometido em acolher tantos irmãos e irmãs em busca de refúgio. Já agora saúdo de coração todos vós, malteses: tende um bom dia. Agradeço a todos aqueles que trabalharam para preparar esta visita e peço a cada um que me acompanhe em oração.”.

O lema da viagem apostólica do Papa Francisco “Eles trataram-nos com rara humanidade” (At 28,2) é tirado do versículo dos Atos dos Apóstolos com as palavras de São Paulo descrevendo a maneira como ele e os companheiros foram tratados quando naufragaram na ilha no ano 60, durante a viagem que os levava a Roma.

Francisco é o terceiro Pontífice a visitar Malta depois de São João Paulo II, em 1990 e 2001, e Bento XVI, em 2010. Assim, apesar da sua idade provecta, o Papa é incansável na luta pela paz e no apoio aos que se sentem sós e/ou deslocados.

2022.03.31 – Louro de Carvalho 

quarta-feira, 30 de março de 2022

Desproporcionada e precipitada exoneração de capelão militar

 

Dois fuzileiros e um civil estão indiciados pela provocação da morte de um agente da PSP na madrugada de 20 de março, à saída da discoteca Mome. Os dois fuzileiros estão com a medida de coação de prisão preventiva a aguardar julgamento; o civil, pelos vistos, está em fuga.

Efetivamente, na madrugada de 20 de março, o agente da PSP Fábio Guerra foi espancado depois de ter tentado separar uma briga entre os dois fuzileiros Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, um amigo e um cidadão estrangeiro que terá atacado Cláudio Coimbra. Os dois suspeitos, que estão em prisão preventiva, admitiram as agressões ao agente da PSP, que acabou por morrer de múltiplas lesões cerebrais.

No dia do funeral do predito agente, o Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) condenou, em discurso dirigido aos seus militares, a ação perpetrada no referido dia 20 de março, no que merece todo o aplauso. Porém, o teor do seu discurso terá desgostado o corpo de fuzileiros, porquanto o CEMA terá classificado de cobardes os militares em causa e terá dito que não queremos fuzileiros que sejam arruaceiros, pois temos de ser lobos na selva e cordeiros em casa.

Face a esta situação discursiva e o impacto psicossocial criado entre os militares, o capelão Licínio Luís, tornado provedor dos fuzileiros (também ele fuzileiro), postou na sua página do facebook um texto crítico para o CEMA por haver arrasado os dois fuzileiros suspeitos das agressões fatais ao agente da PSP Fábio Guerra, acusando-os de “mancharem” a farda ao terem-se envolvido no espancamento do polícia pois, segundo o capelão, “os jovens têm direito a ser respeitados: os jovens da PSP estavam no mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos”.

Não te deixes levar pelas primeiras impressões”, escreveu Licínio Luís na página pessoal do Facebook, onde é seguido por milhares de pessoas. “O senhor Almirante que aguarde pela Justiça. Julgar sem saber não corre nada bem”.

Nesse primeiro post, que foi entretanto apagado, o capelão defendia que “os jovens estavam a divertir-se e foram provocados” e perguntava a Gouveia e Melo: “O senhor Almirante nunca foi para a noite? Nunca bebeu uns copos?”. Estas duas perguntas eram desnecessárias…

Posteriormente, no dia 29, o capelão pediu desculpa pelas críticas que tinha feito antes a Gouveia e Melo através do Facebook: “É muito importante reconhecer perante a Marinha que errei ao dirigir-me de forma incorreta, inapropriada, interpretativa e pública ao almirante CEMA”.

Desta vez, o Padre Licínio Luís diz reconhecer que Gouveia e Melo “sempre foi um adepto dos fuzileiros” e que “agora mais a frio” defende que o número um da Marinha “tomou a única posição possível e ética ao traçar para toda a Marinha uma linha vermelha de comportamento”.

Como capelão, garante que “nenhuma agressão deve servir de resposta a qualquer ato terceiro, muito menos violência que possa ter contribuído para o falecimento de um agente da PSP”. E remata, citando Gouveia e Melo, que agora “é tempo da Justiça e do direito à defesa dos arguidos, mas também é tempo de verdade e de redenção”.

E, além da recente postagem no facebook, o capelão teve reunião com Gouveia e Melo em que terá pedido desculpa e explicado que não queria pôr em causa a autoridade do CEMA.

Porém, “a Marinha confirma que o Sr. Capelão Licínio teve uma audiência com o Sr. Almirante CEMA. À data de hoje, 29 de março, o Sr. Capelão encontra-se exonerado.”.

E o caso, para já, termina com a exoneração do Padre Passionista Licínio Luís.

***

Está entredito que o CEMA fez-se muito bem ao condenar veementemente a ação dos preditos fuzileiros, mas ter-se-á excedido na qualificação do seu comportamento fazendo valer a vertente apologética dos fuzileiros.

O capelão tentou cumprir o seu papel de provedor dos camaradas fuzileiros e com legitimidade – sempre me ensinaram que estes era um dos seus papéis quando por lá andei –, pois este papel cumpre-se sobretudo junto de quem precisa ou atuou mal. E o apelo a que se esperasse pela justiça é razoável e oportuno, pois a presunção da inocência é um princípio basilar do direito e vale até decisão condenatória transitada em julgado, do que estamos longe. Por outro lado, fazer juízos de valor sobre um ato lamentável sem conhecer as circunstâncias é imprudente, pois até se sabe que há diferentes narrativas entre as declarações da PSP e da família de um dos indiciados quanto ao número de agentes que intervieram – quatro ou seis – e se estavam ou não ao serviço àquela hora.

Contudo, o capelão atuou de forma inábil. É certo que, apesar de ser um oficial superior, pode não ter acesso direto ao CEMA para lhe expor os seus pontos de vista, mas poderia ter usado o e-mail ou a carta. E há duas perguntas desnecessárias que acirraram a autoridade militar.

A sua atitude contraria o disposto no artigo 16.º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) das Forças Armadas, que estabelece o conteúdo do dever de lealdade.   

Assim, a alínea a) do n.º 2 explicita que, em cumprimento do dever de lealdade, incumbe ao militar “não manifestar de viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respetivos titulares, das instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo, prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas”. Por sua vez, a alínea b) impõe: “respeitar e agir com franqueza e sinceridade para com os militares de posto superior, subordinados ou de hierarquia igual ou inferior, tanto no serviço como fora dele”. E a alínea e) estabelece: “não se servir, sem para isso estar autorizado, dos meios de comunicação social ou de outros meios de difusão para tratar assunto de serviço ou para responder a apreciações feitas a serviço de que esteja incumbido, caso em que deve participar o sucedido às autoridades competentes”.

Nestes termos, o capelão não podia ter usado o facebook, outra rede social ou qualquer meio de comunicação social (jornal, rádio ou televisão) para exprimir os seus pontos de vista sobre a matéria, mas parece que lhe assistiria o direito, e mesmo o dever, de ser franco para com o CEMA, para o que deveria ter utilizado meios discretos de que dispõe, mesmo que recorresse a oficial com acesso ao CEMA, por exemplo o Chefe de Gabinete.

Não obstante, a exoneração é medida extrema e não consta no RDM. Com efeito, o artigo 30.º estabelece as penas aplicáveis:

1- As penas aplicáveis pela prática de infração disciplinar são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes: a) repreensão; b) repreensão agravada; c) proibição de saída; d) suspensão de serviço; e) prisão disciplinar.

“2 - Aos militares dos quadros permanentes nas situações do ativo ou de reserva, além das penas previstas no número anterior, poderão ser aplicadas as seguintes: a) reforma compulsiva; b) separação de serviço. 

Recordo que o General Carlos Azeredo e os coronéis Jaime Neves e Vasco Lourenço foram punidos por críticas públicas a superiores hierárquicos com a pena disciplinar detenção ou proibição de saída dum quartel e não mais.   

O artigo 39.º determina que na escolha e na medida da pena a aplicar se atenda a juízos de proporcionalidade: grau da ilicitude do facto; grau de culpa do infrator; responsabilidade decorrente da categoria e posto, e à antiguidade neste, do infrator; personalidade do infrator; relevância disciplinar da conduta anterior e posterior do infrator; natureza do serviço desempenhado pelo infrator; resultados perturbadores na disciplina; demais circunstâncias em que a infração tiver sido cometida, que militem contra ou a favor do infrator.

A aplicação de penas disciplinares relevantes deve ser precedida de processo disciplinar – regulado pelos artigos 74.º a 108.º – em que sejam dadas todas as garantias de defesa ao arguido e ponderadas todas as circunstâncias da ocorrência, bem como as eventuais agravantes e atenuantes, e do qual pode resultar ou a aplicação de pena ou o arquivamento do processo.

Além disso, tratando-se de capelães, os seus chefes religioso-militares devem ser ouvidos previamente a qualquer punição. Neste sentido seria útil saber-se do parecer do Venerando Ordinário Castrense do seu Vigário Geral.

Assim, parece que a exoneração, que equivale à pena de separação de serviço, foi precipitada, porque tomada a quente e sem processo disciplinar e desproporcionada.

Pode acontecer que a exoneração tenha partido de pedido do capelão, do que deveria ter sido demovido, porque a quente nada se resolve e até porque reconheceu o seu erro no quadro formal, embora tenha, a meu ver, razão em termos de substância, com exceção das preditas perguntas.

Consta, pelas últimas notícias, que se equaciona a hipótese da readmissão do Padre Licínio Luís, o que revela a precipitação e desproporção apontadas e a falta de consulta à parte eclesiástica militar. Se for verdade, entendo que, apesar do incómodo que a readmissão possa trazer, a humidade sacerdotal e passionista e o espírito de serviço se sobreporão a tudo o mais. Mas um chefe militar tem de ser mais ponderado e contido na aplicação de medidas disciplinares!

2022.03.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de março de 2022

A XV legislatura sob o mote da defesa da democracia e da liberdade

 

Os partidos com assento parlamentar aproveitaram a sessão inaugural para intervenções que anunciam as prioridades partidárias e as que revestem a forma de manifestos pela liberdade.

Ao fim de 48 anos de democracia, a maioria dos grupos parlamentares e os deputados únicos acharam útil fazer proclamações em defesa da democracia, da liberdade e da igualdade. (Falta a fraternidade!). Isto, porque há uma guerra em curso na Europa e porque há um grupo parlamentar que pretende uma mudança de regime, tendo crescido de 1 para 12 deputados.

O indigitado líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, enalteceu a relevância da Assembleia da República, inequivocamente assumida por “quem é radicalmente democrata”, lembrou que o PS foi fundado na Alemanha porque era proibido em Portugal e prometeu combater “radicalismos simplificadores com propostas concretas”.

Pelo PSD falou o seu antigo líder parlamentar, Adão Silva, que será indicado para vice-presidente da Assembleia da República e pelo que lhe sucederá Paulo Mota Pinto no grupo parlamentar, preconizando que “a maioria absoluta é uma situação excecional que tem de ser exercida com inteligência e lisura” e alertando que, nestas condições “não há desculpas para não se fazerem as reformas estruturais” necessárias, depois de os últimos anos terem sido “marcados por tibiezas”.

Falando dos tempos que o mundo vive perante o flagelo que os tiranos que estão a fazer e que não deviam estar a fazer, o deputado socialdemocrata disse: “estamos aqui para buscar caminhos de sucesso para os nossos cidadãos”.

Por seu turno, André Ventura, líder do Chega, terceira força política na Assembleia da República, não dando a voz ao seu líder parlamentar, preferiu ser ele o primeiro a discursar nesta legislatura, para apontar como o sistema democrático falhou “nas últimas décadas” e como o “Parlamento falhou aos portugueses”. E, apontando direto ao PS, lembrou como o Primeiro-Ministro não convocou o Chega para os encontros com os partidos a seguir às eleições, o que apodou de tirania socialista”. E respondeu subliminarmente a Santos Silva, doravante Presidente da Assembleia da República, afirmando que não importa nada ao seu partido que ache que o nacionalismo é algo negativo. E terminou a citar Fernando Pessoa, o poeta mais citado nesta abertura de legislatura: “Falta cumprir-se Portugal!”.

Rodrigo Saraiva, outra estreia na liderança duma bancada, advogou que, para a Iniciativa Liberal, é preciso “libertar o potencial criativo e empreendedor” do país, salientou a “urgência” do regresso dos debates quinzenais e lembrou que Santos Silva será “o garante de que o Estado de Direito e as suas regras não são atropelados”.

Paula Santos, do PCP, outra líder parlamentar estreante, vindo com um alerta semelhante, disse recear as “tentativas de abuso que são usais nas maiorias absolutas” e enumerou as prioridades do PCP, que ali está “para defender os aumentos de salários e pensões” e “medidas que travem a gula dos grupos económicos”.

Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda, o único líder de bancada que transita da XIV legislatura, começou pela referência à guerra na Ucrânia referindo que “todos os povos têm direito à autonomia, à soberania e à independência” e defendeu “a integridade do território ucraniano”.

Sobre Santos Silva disse que espera que “seja a garantia de independência da Assembleia da República” e terminou com referências ao 25 de abril e à necessidade de defender de igual forma a democracia, a liberdade e a igualdade.

Foi, a seguir, dada voz aos deputado únicos, mas não sem nova intervenção de Ventura, não para se opor, mas para lembrar como em 2019 não foi dada a palavra, na primeira sessão da legislatura, ao Chega e à IL que também tinham só um deputado. E, acusando Santos Silva de estar a passar por cima do regimento para “dar a palavra a dois amigos do PS”, vincou: “quando é o Chega não há palavra nenhuma”.

Porém, o novo presidente da Assembleia da República, parecendo dar já mostra de como vai exercer o seu novo ofício, não respondeu e limitou-se a dar a palavra a Inês Sousa Real, agora deputada única do PAN, que prometeu propor uma alteração ao regimento para clarificar os direitos dos deputados únicos.

Por fim, Rui Tavares, o fundador do Livre finalmente feito deputado, deixou no plenário a ultima citação de Pessoa deste dia: “Somos do tamanho daquilo que vemos”.

***

Como ficou entredito, os deputados únicos tiveram direito à palavra, mas querem “mais voz” e “diálogo”. Se o PAN volta à condição de 2015, o Livre recupera o lugar perdido com a retirada da confiança política a Joacine Katar Moreira, em 2020. Inês de Sousa Real e Rui Tavares querem defender agora as suas causas, garantir “oposição” ao Governo e procurar “convergências” nas áreas da ecologia e justiça social.

A deputada do PAN garante que, “mesmo enquanto deputada única”, continuará a dar voz a todas as causas que o partido tem representado até agora. Como o direito à oposição existe, diz que vai exigir “que haja mais poder de apresentação e agendamento, algo que até aqui não tem acontecido”. E avançou que o partido iria entregar de imediato uma proposta de alteração ao regimento da Assembleia da República, a procurar dar “mais voz” aos deputados únicos, frisando que o partido já defende a proposta desde 2015, porque não faz sentido que um deputado único, que representa uma “força política eleita diretamente” para a Assembleia da República não possa ter mais oportunidades de agendar discussões de propostas suas.

Apesar de ter registado com “muito agrado” o facto de Augusto Santos Silva, o novo presidente da Assembleia da República, ter dado a palavra aos deputados únicos na primeira sessão plenária – ao invés do que tinha acontecido em 2019, o que motivou o protesto de Ventura – Sousa Real insiste que é preciso garantir mais representatividade por parte dos partidos mais pequenos.

Na proposta, a deputada do PAN pede participação dos deputados únicos na conferência de líderes, o reforço do direito ao agendamento potestativo, que “não pode ficar limitado a uma iniciativa por legislatura”, e o reforço dos seus direitos no âmbito das declarações políticas, assegurando a “igualdade” quanto aos grupos parlamentares em termos do número total e direito a interpelar os partidos aquando das suas declarações políticas. Por outro lado, propõe o regresso dos debates quinzenais, insistindo no reforço do escrutínio ao Executivo de Costa, esperando “que não só em sede do OE, mas também durante todo o ano haja esta capacidade dialogante por parte do PS, porque uma maioria absoluta não pode representar um enfraquecimento da democracia ou da oposição das demais forças políticas”.

Por sua vez, Rui Tavares defendeu o reforço do “diálogo” e a “convergência” à esquerda, com vista a alcançarem-se consensos nas áreas da ecologia e da justiça social. Como vinca o deputado do Livre, a maioria absoluta do PS acaba por enfatizar a necessidade de, no Parlamento, “termos mais diálogo” e “articulação” entre as forças progressistas, ecologistas. Revelou que já teve “oportunidade de falar com as bancadas que estão à esquerda no Parlamento para pedir reuniões, facilitando esse diálogo”, pois sabe que “é mais fácil em conjunto apresentar propostas cuja justiça seja inegável e às quais o Governo, mesmo com a maioria absoluta, não se possa fechar”.

Embora tenha admitido que hoje é, de certa forma, um dia em que é reposta a “justiça” para com o Livre após a perda da representação parlamentar (mas o Livre perdeu representação parlamentar por má cabeça de representante e representado), Rui Tavares confessa que pessoalmente hoje, para si, “é um dia normal”. E, para os 230 deputados, espera que não seja um mandato como os outros, da política do costume, já que “estamos num momento muito importante para a história do país, vamos comemorar os 50 anos dos 25 de Abril, já temos mais dias de liberdade do que ditadura e é altura de olhar para o futuro e mudar o país”.

No arranque da legislatura, já apresentou duas iniciativas, uma na área da Ecologia e outra na área da Europa, os dois pilares do Livre. A primeira, um programa de investimento na eficiência energética das casas, anunciada no Congresso do partido (em Coimbra). E Tavares explicou:

Designamos o ‘Programa 3 C, de Casa, Conforto e Clima’, que tem a ver com uma questão de dignidade das pessoas nas suas casas, de segurança porque também se morre de frio em Portugal, e de ajudar a combater as alterações climáticas”.

Já o outro projeto propõe que Vladimir Putin seja considerado “responsável por crimes de guerra” e insta as autoridades portuguesas a participarem no esforço de investigação e de instrução dos processos no Tribunal Penal Internacional para julgar todos os crimes de guerra na Ucrânia.

***

Augusto Santos Silva, sentado no topo da Mesa, pois tinha acabado de ser eleito Presidente da Assembleia da República, com 156 votos a favor, 63 brancos e 11 nulos, fez o seu primeiro discurso nesta condição. O alvo foi os nacionalistas e populistas que se distinguem dos patriotas porque “não amam as pátrias dos outros”, pois uma coisa é ser patriota, outra é ser nacionalista. E Santos Silva, sem nunca se dirigir diretamente à bancada do Chega, vincou a linha que separa estes dois eixos no seu primeiro discurso parlamentar, carregando nas palavras:

O patriotismo só medra no combate ao nacionalismo. O patriota que ama a sua pátria enaltece o amor dos outros pelas respetivas pátrias, porque sabe que só na pluralidade das pátrias floresce a sua. O nacionalista odeia a pátria dos outros, discrimina quem é diferente.”.

E, para Santos Silva, é do lado oposto a esse nacionalismo que o Parlamento deve estar.

O discurso, centrado nos valores da tolerância, da diversidade e virado para as comunidades portuguesas, várias vezes aplaudido pelas bancadas da esquerda, por deputados do PSD e, a espaços, pelos 8 da Iniciativa Liberal, não encontrou eco na ora robusta bancada do Chega, cujas cabeças abanavam em sinal negativo. Porém, o Presidente da Assembleia da República prosseguia – sempre com a língua portuguesa como fio condutor – a defender o acolhimento e a integração de refugiados no respeito pela diversidade, sustentando: 

Basta pensar um minuto na incrível força desta língua de tantas pátrias para entender que o bom requisito para ser patriota é não ser nacionalista; é não ter medo de abrir fronteiras, integrar migrantes, acolher refugiados.

Para Santos Silva, a missão do patriota é combater o nacionalismo, que traz consigo o discurso do ódio, o insulto e os pontos de exclamação, sendo que “a liberdade e a igualdade custaram demasiado para que aceitássemos regredir para novos tempos de barbárie”.

Antes, Santos Silva ditara as regras do novo Parlamento e a receita para combater o populismo. A primeira regra é o respeito de todos os mandatos; a segunda, o respeito pela vontade popular que se exprime na exata medida da grandeza dos grupos parlamentares. Mas ele sabe que os atuais tempos são “difíceis”, “complexos” e, portanto, propícios “a toda a espécie de manipulações e de messianismos”, o que exige cuidado.

A receita para o combate a esses populismos é assim enunciada:  

Estes são tempos em que pode vingar o populismo, a invenção de inimigos e a substituição do debate pelo insulto. A sociedade portuguesa não está imune a este vírus, mas a melhor maneira de o combater é não lhe conceder mais relevância do que aquela que o povo português quis atribuir. (…) A melhor receita é contrapor aos seus obsessivos pontos de exclamação a serenidade de quem tem o conforto da razão – razão que interroga, que ouve, avalia, corrige, que é a razão democrática.”.

Augusto Santos Silva tinha avisado que seria imparcial, que daria importância igual a todos e que trataria todos pela ordem de grandeza que a vontade popular ditou.

***

Está, pois, inaugurada a XV legislatura e a sua primeira sessão legislativa.

2022.03.29 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 28 de março de 2022

“Juntos com Francisco por um percurso de verdade, justiça e reconciliação”

 

De acordo com nota da Sala de Imprensa da Santa Sé, o Papa recebeu, ao longo de duas audiências sucessivas, na manhã deste dia 28 de março, na Biblioteca Apostólica, no Vaticano, dois grupos de representantes dos povos indígenas canadenses, cerca de 10 delegados dos Métis e cerca de 8 dos Inuit, acompanhados por alguns bispos da Conferência Episcopal do Canadá, manifestando o desejo de ouvir as histórias dos sobreviventes das ações violentas que aniquilaram aqueles povos, e de lhes dar espaço para que elas sejam conhecidas, refletidas e delas captemos as lições necessárias. Os ditos grupos permanecerão em Roma até ao dia 1 de abril, numa atividade de narrativa, reflexão e divulgação sob o lema “Juntos com Francisco por um percurso de verdade, justiça e reconciliação”.

Segundo a predita nota da Sala, “cada encontro durou cerca de uma hora e foi marcado pelo desejo do Papa de ouvir e dar espaço às histórias dolorosas contadas pelos visitantes”, continuando os encontros e a escuta nos próximos dias de acordo com as informações atempadamente fornecidas.

Para entendimento do contexto desta iniciativa, é preciso reportar-nos à recitação do Angelus de 6 de junho de 2020 em que Francisco compartilhou com o mundo a consternação com as dramáticas notícias, que chegaram algumas semanas antes, da descoberta no Canadá de uma vala comum numa escola, a Escola Residencial Indígena Kamloops (Kamloops Indian Residential School), com mais de 200 restos humanos de nativos canadenses. Uma descoberta chocante, símbolo de um passado de crueldade residencial no país, quando, de 1880 às últimas décadas do século XX, em instituições financiadas pelo governo e administradas maioritariamente por organizações cristãs, o objetivo era, através de abusos sistemáticos, educar e converter os indígenas jovens e assimilá-los na sociedade canadense tradicional.

Efetivamente, entre 1863 e 1998, mais de 150 mil crianças indígenas foram tiradas às famílias e internadas nas escolas residenciais onde não lhes permitiam falar a sua língua nativa ou realizar quaisquer gestos caraterísticos da sua cultura. O internamento nestas instituições que se propunham assimilar à força as crianças autóctones tornou-se obrigatório na década de 1920, passando os pais a enfrentar a ameaça de prisão caso não cumprissem tal obrigação. Estimativas de várias fontes apontam que mais 6.000 crianças morreram durante o internamento forçado e um número muito maior foi vítima de maus-tratos, abusos sexuais e outras violências. No Canadá chegou a haver mais de 130 escolas residenciais financiadas pelo Governo e administradas por autoridades religiosas, sendo a Igreja Católica responsável por cerca de 70%.

Essa descobertas levaram o episcopado canadense a fazer imediato “mea culpa” e a ativar uma série de projetos de apoio às comunidades indígenas, num processo de reconciliação cujo ápice agora é representado pela disponibilidade do Papa de receber as comunidades no Vaticano, nestes dias 28 de março e 1 de abril, tendo em vista uma futura viagem apostólica àquele país norte-americano, já anunciada, mas ainda não confirmada.

Assim, em 1 de abril, o Pontífice receberá, na Sala Clementina, as várias delegações e a Conferência Episcopal Canadense.

Como referiram ao “Vatican NewsSalvatore Cernuzio e Mariangela Jaguraba, nesta manhã, Francisco recebeu os membros do Conselho Nacional Métis, num encontro repleto de palavras, histórias e recordações, mas também de muitos gestos: do Papa e dos indígenas que se viram a percorrer o caminho comum da “verdade, justiça, cura e reconciliação”. Obviamente que os males do passado estão feitos e nada se resolve passando por cima deles a esponja do esquecimento ou a da ocultação ou desvalorização, nem afiando as setas contra os seus autores, a maioria dos quais já se encontram nos escaninhos da eternidade. Nem se pode dizer que era a mentalidade epocal. Há efetivamente coisas que são injustificáveis em qualquer tempo e lugar, muito menos se praticadas em nome do cristianismo e da civilização ou de outros objetivos larvados pelos apregoados valores cristãos e ou civilizacionais. É, pois, o reconhecimento dos erros, a cura possível e a reconciliação com o passado e das pessoas e grupos entre si que deve ditar a postura que devemos assumir nos dias de hoje, de modo que erros deste jaez jamais se repitam.   

Saindo da Residência Apostólica ao som de dois violinos, símbolo da sua identidade e cultura, os indígenas encontraram-se com a imprensa internacional do lado de fora da Praça São Pedro para contar os detalhes do encontro com o Papa esta manhã.

Cassidy Caron, jovem presidente dos Métis, foi porta-voz, através da leitura de um comunicado, do “número incalculável de pessoas que nos deixaram sem que a sua verdade jamais tivesse sido ouvida e a sua dor reconhecida, sem nunca receber a humanidade e o cuidado básico que mereciam”. Mais disse que o reconhecimento, as desculpas, veio tudo muito atrasado, mas “nunca é tarde demais para fazer a coisa certa”.

De facto, foi iniciado pela Nação Métis um “trabalho difícil, mas essencial” de ouvir e compreender as vítimas e as suas famílias. O que foi recolhido foi apresentado a Francisco, que “se sentou e ouviu, acenou com a cabeça quando os nossos sobreviventes contaram as suas histórias”. E o referido porta-voz confessou que sentiu dor nas reações do Papa quando se tratava de crianças e disse que “os sobreviventes fizeram um trabalho incrível ao contar as suas verdades, foram muito corajosos…”. Mais revelou Caron que fizeram um trabalho difícil de preparação para a viagem e encontro com o Papa: traduziram as palavras dos autóctones com as que entenderia. A esperança é que o Pontífice e a Igreja no mundo prossigam agora com um trabalho de “tradução” das palavras ouvidas “em ações reais pela verdade”. Com efeito, quando convidaram o Papa Francisco para se unir a eles, respondeu-lhes na língua que domina e repetiu “verdade, justiça, cura e reconciliação”, o que eles tomaram como “um compromisso pessoal”.

Várias vezes o presidente dos Métis repetiu a palavra “orgulho”:

Estamos orgulhosos de estar aqui, junto com os Inuit e as Primeiras Nações. Temos orgulho da nossa história e cultura.”.

Também informou que apresentara um pedido de acesso a documentos mantidos no Vaticano sobre as escolas residenciais:

Continuamos e continuaremos apoiando tudo aquilo de que a nação Métis precisa para entender a verdade plena. Falaremos sobre os documentos com o Papa na audiência de sexta-feira.”.

Angie Crerar, 85 anos, também estava presente no grupo na Praça de São Pedro. Cabelo curto, óculos escuros, faixa multicolorida sobre um vestido preto, chegou em cadeira de rodas, mas levantou-se a compartilhar trechos da sua história, a que relatou ao Papa. Assim os mais de dez anos passados ​​com as suas irmãzinhas numa escola residencial nos territórios do Noroeste em 1947, onde perderam tudo, “menos a língua”. Quando partiram, levou mais de 45 anos para recuperar o que perdera. Angie, porém, diz não querer ser esmagada pelas lembranças do passado, mas olha o presente e diz:

Agora estamos mais fortes. Eles não nos quebraram, ainda estamos aqui. Esperamos muito tempo, mas parece que todos trabalharão connosco agora. Para mim é uma vitória, a vitória do nosso povo por todos os anos perdidos.”.

Na audiência deste dia 28 com Francisco, revelou que chegara ao Vaticano “muito nervosa”, mas que encontrou “a pessoa mais dócil e gentil que já conheceu”. O Papa deu-lhe um abraço que, segundo ela, apagou décadas de sofrimento:

Eu estava ao lado dele. Tiveram que me afastar (risos). Foi maravilhoso. Eu estava muito nervosa, mas depois que ele falou comigo, mesmo que eu não entendesse tudo o que ele dizia, o seu sorriso, as suas reações, a sua linguagem corporal, fizeram-me sentir esse homem amigo.”.

***

O “7 Margens”, a 27 de março, referia que parte das delegações das tribos indígenas do Canadá chegou, nesse dia, a Roma onde iniciou, a 28, uma série excecional 4 encontros com o Papa no âmbito do processo que culminará com o pedido de perdão da Igreja pelos graves abusos cometidos nas escolas residenciais que, nos séculos XIX e XX, participaram no processo de assimilação forçada dos povos nativos.

Os representantes das organizações índias e alguns descendentes de sobreviventes das escolas residenciais são acompanhados por bispos canadianos nas audiências que se prolongarão por toda esta semana, uma iniciativa prevista para dezembro de 2021, mas adiada por causa da pandemia.

Francisco recebe mais de cem índios em 4 encontros à porta fechada, de uma hora cada, duração referida como “excecional” no jornal “La Croix”. E terminarão a 1 de abril num encontro geral do Papa com o conjunto das delegações na Sala Clementina do Palácio Apostólico, no Vaticano.

Neste dia 28, o Papa teve, como se disse, encontros com a delegação Métis e com a delegação Inuit e, no dia 31, será o encontro com a delegação Primeiras Nações (tudo antes de 1 de abril).

“Penso que o Papa vai pedir perdão” pelos crimes cometidos nas escolas residenciais e “assumir o que ali aconteceu” disse ao jornal canadiano “La Presse” Mandy Gull-Masty, grande chefe do Grande Concelho dos Cris du Québec, a única mulher da região do Quebeque (língua francesa) a integrar a delegação a Roma e que não tem dúvidas de que Francisco pedirá perdão às Nações Índias na sua viagem ao Canadá no final deste ano” para que “muitas pessoas o oiçam”.

***

Enfim, coisas que não podiam ter acontecido, mas que lamentavelmente aconteceram!

2022.03.28 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de março de 2022

Congresso Internacional ‘Mulher, Mãe e Rainha’

 

De 24 a 26 de março, o Santuário de Fátima recebeu, nos auditórios do Centro Pastoral Paulo VI, o Congresso Internacional ‘Mulher, Mãe e Rainha’, que assinala 375 anos da Coroação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal, numa organização do Instituto da Padroeira de Portugal para os Estudos da Mariologia (IPPEM), em colaboração com o Santuário.

Efetivamente, foi a 25 de março de 1646 que o rei D. João IV consagrou os “Seus Reinos e Senhorios” a Nossa Senhora da Conceição, representada numa escultura existente no Santuário de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Por “Provisão Régia”, Nossa Senhora foi proclamada a Padroeira de Portugal e, a partir de então, não mais os monarcas da Dinastia de Bragança voltaram a colocar a coroa real na cabeça.

Para assinalar este acontecimento, o IPPEM quis organizar um congresso, intitulado: “Mulher, Mãe e Rainha. Nos 375 anos da Coroação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal”. Inicialmente marcado para 2021, ano em que Portugal viu passar 375 anos da coroação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal, teve de ser adiado devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19.

Pretendendo, na ótica da organização, ser um fórum de estudo abrangente nas temáticas, nas visões e nas abordagens, apresentou diferentes contributos relativos aos estudos da Mariologia, da Teologia e da Bíblia; da Religiosidade Popular; das Associações de Fiéis e das Ordens Religiosas, impulsionadoras em tantos casos, da devoção à Virgem Maria; do Direito Canónico; da Antropologia e da Sociologia, da Arte e da História da Igreja; da História de Portugal e até da História Universal

De acordo com o Presidente do Congresso, o evento tomou Nossa Senhora como figura a abordar “através de várias áreas de estudo”, a partir dos 375 anos da coroação da Imaculada Conceição como Padroeira de Portugal pelo rei D. João IV.

Como previsto, foi um Congresso interdisciplinar em que foram abrangidas áreas como a teologia, fundamentos bíblicos, discursos parenéticos e História. Em abordagem esteve, de modo especial, a forma como diferentes povos viram Nossa Senhora, particularmente os da Península Ibérica e os do Novo Mundo. As jornadas abriram e fecharam com duas figuras de renome internacional ligadas à Santa Sé: Padre Stefano Cecchin, Presidente da Pontifícia Academia Mariológica Internacional, que abriu o Congresso no dia 24 de março, com a Conferência “O contributo português no contexto dos movimentos imaculista”; e o Arcebispo Rino Fisichella, Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, que o encerrou no dia 26, com a Conferência “A pastoral dos santuários dedicados à Virgem Maria”.

Marco Daniel Duarte esclarecera previamente que se trataria de um congresso “científico”, em que participariam investigadores de diferentes áreas, como José Rui Teixeira, da Universidade Católica, e Antónia Fialho Conde, da Universidade de Évora, entre outros.

“A promoção do culto a Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal nos primórdios da imprensa periódica nacional”, “Maria nas Escrituras Sagradas”, “Considerações em torno da Génese do Dogma da Imaculada Conceição – A Importância de Santo Agostinho e a Questão Pelagiana”, “A perfeição de Maria na fórmula agostiniana do pecado original”; e “Do corpo de Maria ao corpo cósmico de Cristo Cristologia, Cosmologia e Mariologia” – foram alguns dos temas em análise no Congresso, durante o qual, na noite do dia 25, foi apresentado o livro “Coroa preciosa de Nossa Senhora de Fátima – Joias e a bala”, que, uma vez apresentado, passa a estar à venda em todo o país. Publicado pelo Santuário de Fátima, o livro pretende mostrar não só “toda a história que envolve a coroação da imagem de Nossa Senhora de Fátima”, mas também as joias e gemas em cuja coroa estão incrustadas, além da bala que atingiu o Papa São João Paulo II a 13 de maio de 1981 na Praça de São Pedro.

Além da apresentação do livro, houve outro momento cultural, “Cantar a Padroeira”, na noite do dia 24, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, concerto pelo Coro do Santuário de Fátima, com direção de Ricardo Campos e com Sílvio Vicente ao órgão. E, como eminente tempo litúrgico, a Celebração eucarística da Anunciação do Senhor, no fim da tarde do dia 25 sob a presidência do Arcebispo de Évora, Dom Francisco Senra Coelho

***

O Congresso foi pensado 5 sessões devendo as comunicações com os respetivos eixos temáticos.

Assim, o da 1.ª sessão foi: “HISTORIOGRAFIA: ESTUDOS SOBRE UM TEMA MAIOR”.

Na verdade, o debate sobre o papel da Mãe do Deus dos cristãos na comunidade crente “gerou, também na comunidade académica, interesse maior que se consubstanciou, entre outros, no rastreamento de posições, muitas vezes sustentadas por leituras políticas e sociais que interessaram aos intelectuais e a outros revisitadores do tema, a fim de auscultarem o que pensaram outros pensadores e que posicionamento tomaram em cada época histórica”, pelo que se pretendia “proceder ao estado da arte relativamente à historiografia sobre os estudos marianos em Portugal e no mundo ibero-americano”, convocando especialmente as áreas disciplinares da História e da Mariologia.

O eixo da 2.ª sessão foi:FUNDAMENTOS BÍBLICOS E DISCURSO PARENÉTICO”.

Com efeito, “apesar de não serem abundantes as referências a Maria nos textos sagrados, a narrativa bíblica mostra-a como mulher especialmente consagrada a Deus e com papel fundamental na economia da história da salvação. Amplamente glosadas, essas referências foram intertextualmente ligadas a passagens outras, algumas bem mais antigas, lidas segundo o pensamento teológico de cada contexto histórico. Por isso, pretendia-se “refletir sobre a forma como a Virgem Maria é tomada a partir das fontes primárias que dão fundamento à comunidade dos crentes e a partir dos discursos que umbilicalmente a estas se encontram ligados e delas derivam”, convocando especialmente as áreas disciplinares das Ciências da Religião, da Literatura, da Mariologia e da Teologia.

O eixo temático da 3.ª sessão foi: “REPRESENTAÇÕES INSTITUCIONAIS, PLÁSTICAS E ARTÍSTICAS”.

“Fruto das leituras que encomendantes e artistas operaram a partir dos traços semânticos associados à figura da Virgem Maria, a arte de temática mariana, nas suas diferentes expressões plásticas, manifestam-se ‘topos’ de constante (re)criação e (re)construção, conforme as épocas históricas, desde a Antiguidade à Contemporaneidade, e nos diferentes contextos estéticos, incluindo os museológicos, sejam estes contextos defensores da figuração ou da abstração”. Assim, pretendia-se “abordar a visão dos artistas, nos diferentes tempos históricos e nas diferentes categorias estéticas, desde as artes plásticas às da representação cénica, relativas à importância da representação da Virgem Maria”, convocando especialmente as áreas disciplinares da Arte, das Ciências do Património, do Cinema, da Estética, da História da Arte, da Museologia e do Teatro.

O eixo temático da 4.ª sessão foi: “MARCAS MARIANAS NA CULTURA DOS POVOS”.

Com efeito, “a importância vivencial que o tema mariano demonstrou ao longo da história do Cristianismo levou à impressão de diferenciadas marcas culturais nas sociedades, marcas que se percecionam em diferentes campos de abordagem como são a antroponímia e toponímia, e, bem assim, as expressões artísticas de cunho literário que fizeram ecoar, inclusive nos Media, aspetos de Maria como tipificadores da condição humana: entre outros, a maternidade, a humanização da religião, a visão da mulher, a mulher das dores”. Assim, pretendia-seatualizar o conhecimento dos diferentes fenómenos que exibem a marca mariana na cultura, popular ou erudita”, convocando especialmente as áreas disciplinares da Antropologia, das Ciências da Comunicação, da História, da Literatura, da Música e da Sociologia.

O eixo da 5.ª sessão foi:RELIGIOSIDADE POPULAR, DISCURSOS TEOLÓGICOS E VIVÊNCIAS CULTUAIS”.

De facto, “o culto mariano, consubstanciado em diversas manifestações, entre as quais as peregrinações e visitas aos santuários, reveste-se de múltiplas formas de devoção, desde as estabelecidas pela norma litúrgica às relacionadas com práticas relativas a uma espiritualidade pessoal ou coletiva que se exterioriza através do tópico da festa”, pelo que se pretendia analisar, à luz do entendimento atual da pastoral da Igreja Católica, as práticas devocionais e a sua relação com os que frequentam os lugares de culto marianos, sejam crentes, sejam turistas ou outros visitantes”, convocando especialmente as áreas disciplinares da Antropologia, da Liturgia, da Mariologia, da Teologia e do Turismo.

***

Nestes dias ocorreu também o enceramento do Ano Jubilar referente aos 375 anos da coroação e proclamação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal com: Celebração Eucarística, no dia 25, e concerto pelo grupo “Ars Encontro”, no Santuário de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; procissão com saída da Igreja dos Agostinhos e que percorreu algumas das ruas de Vila Viçosa numa verdadeira demonstração de fé e devoção, em que se incorporou o Presidente da República, e celebração da Eucaristia presidida pelo Arcebispo Dom Rino Fisichella, Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, no dia 26, à noite (21 horas), no mesmo Santuário; e Exposição “Três Coroas, a mesma Padroeira”, das 10 às 17 horas, no Seminário de Vila Viçosa, no dia 27, e Celebração da Eucaristia presidida pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e Bispo de Leiria-Fátima, Dom José Ornelas, na qual marcou presença o Presidente da República, às 10,30 horas, no Santuário.

***

Enfim, tudo o que sirva para enaltecer a figura de Maria como portadora de Cristo e como caminhante por nós e connosco para Cristo é sempre bem-vindo, porque útil para reforço da nossa fé, estímulo da esperança, alimento da caridade e situação na história da Salvação.

2022.03.27 – Louro de Carvalho

sábado, 26 de março de 2022

Joe Biden parece estar a perder a cabeça

 

Nada justifica uma guerra numa Europa civilizada que saiba dialogar e negociar, corrigindo erros, refreando ambições. Esta Europa aprendeu a usar a diplomacia para prevenir, evitar e dirimir mal entendidos e conflitos.  

Não obstante, a Federação Russa lançou, a 24 de fevereiro, uma ofensiva militar na Ucrânia que já causou, entre a população civil, pelo menos 1.081 mortos, incluindo 93 crianças e 1.707 feridos, entre os quais 120 menores, e provocou a fuga de mais 10 milhões de pessoas, 3,7 milhões das quais para fora do país. Isto sem fazer conta aos militares feridos, estropiados e mortos de ambos os lados e a toda a onda de destruição. Segundo as Nações Unidas, cerca de 13 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária na Ucrânia.

A invasão russa, que já dura há muito tempo e cujo fim ainda não se divisa, foi condenada pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a Moscovo.

***

Ora, em vez do reforço da diplomacia e do esforço para um desanuviamento, o Presidente dos EUA deixa um aviso de guerra como se fosse senhor absoluto da NATO e lança atoardas que, pela sua inoportunidade e até indecência, só contribuem para deitar mais achas na fogueira.

As asserções de que Putin “não pode continuar no poder” e que é “um carniceiro” são de todo inconvenientes e um Chefe de Estado nunca as deve dizer dum seu homólogo. E vir dizer a Casa Branca, mais tarde, que não quis dizer que Putin não deve continuar no poder russo, mas apenas que Putin não pode continuar a exercer o poder sobre os países vizinhos e a região, é pior a emenda que o soneto. É apenas tentar lavar a face pela democracia, já que é ao povo de um país que incumbe a escolha de quem o governe e não a estrangeiros. Todavia, todos sabemos como o Ocidente – em particular os EUA – sabe influenciar decisivamente a substituição de líderes em países estrangeiros sob a capa da governança demoliberal.    

Avisar que nenhum “centímetro” de território da NATO pode ser atacado, porque haverá obrigatoriamente resposta, pode significar que a NATO, que nunca esteve tão unida como agora, quererá mesmo a guerra e não a paz ou a estrita defesa do Ocidente, não estando disposta a ter em conta que foi com a barriga para a frente contra os acordos dos inícios da década de 90 de que a NATO não se estenderia para lá da Alemanha, ignorando os avisos de Henry Kissinger e Mário Soares, e a reconhecer que não tem sido apenas Moscovo quem rompeu pactos estabelecidos.

Mobilizar o Ocidente para uma guerra para abater as ambições de Putin sem ter em conta os danos que isso acarretará para todos os povos é não aprender com os efeitos que as sanções económicas geram nos países que os sofrem e nos que os infligem, bem como não ponderar a monstruosidade da guerra.

***

Num dos países da NATO mais a leste, a Polónia, neste 26 de março, 3.º dia pelos países da Europa que está a visitar, Joe Biden aproveitou para deixar avisos à Rússia e para assegurar o seu apoio aos ucranianos. O líder dos EUA declarou este sábado, em Varsóvia, que Vladimir Putin já não devia ser o líder russo.

Esta foi a primeira vez que o presidente norte-americano abordou uma possível mudança de regime desde o início do conflito, espelhando mudança significativa na abordagem a Moscovo.

Entretanto, a Casa Branca reagiu, dizendo que “o argumento do presidente é o de que Putin não pode ser autorizado a exercer poder sobre os seus vizinhos ou sobre a região”, garantindo que Biden “não estava a discutir o poder de Putin na Rússia, ou a mudança de regime”.

O Kremlin reagira às declarações de Biden pelo porta-voz Dmitry Peskov, assegurar que “não cabe ao senhor Biden” decidir uma eventual mudança no poder no país.

No início do mês, o Secretário de Estado Antony Blinken garantia que os EUA não consideravam que se trate de mudança de regime. O povo russo é que tem de decidir quem os quer a liderar.

Agora Biden deixou um aviso ao regime russo para não se atrever a “entrar um centímetro em territórios da NATO”, pois os EUA estão empenhados em cumprir as obrigações de proteção coletiva estabelecidas na carta da NATO “com toda a força do poder coletivo” americano.

Deixando claro que o conflito na Ucrânia não exige que os EUA se envolvam diretamente, pois a Ucrânia não integra a NATO, disse que as forças americanas não estão na Europa para entrar em conflito com as forças russas, mas para defender os aliados da NATO.

No início do seu discurso, citou o Papa São João Paulo II, quando este falou na União Soviética, em 1979, pedindo que “não tenhais medo”. E explicitou:

Emergimos de novo na grande batalha pela liberdade, uma batalha entre democracia e autocracia, entre liberdade e repressão. Nesta batalha, precisamos de ser clarividentes. Esta batalha também não será ganha em dias ou meses. Precisamos de nos motivar para a longa luta que temos pela frente.”.

Quer dizer que Biden falou em nome dos EUA com legitimidade. Duvido de que tenha falado, como o fez em nome da NATO com legitimidade. Aí a palavra caberia ao secretário-geral da NATO. É mau confundir-se NATO e EUA. E a citação de João Paulo II é oportunista e descontextualizada. O apelo ao não medo é muito mais abrangente que a luta pela queda do comunismo soviético e de arredores. É evangélico, de futuro e aliado da esperança, não de agoiro.

No entanto, o Presidente dos EUA deixou avisos a Putin e alertou o Ocidente. Ao primeiro avisou que, se pisar território da NATO, terá a consequente resposta; ao segundo advertiu que a luta pela liberdade levaria tempo, como quando aconteceu a queda da União Soviética, pois “um ditador que quer reconstruir um império que esmaga o amor pela liberdade do seu povo nunca poderá vencer” (uma das últimas asserções do discurso de Biden em Varsóvia).

Depois de ter chamado “carniceiro” a Putin, o líder dos EUA classificou-o como autocrata que “está a ameaçar o Estado de Direito, a liberdade e a verdade”. Com efeito, “hoje a Rússia estrangulou a democracia e procurou fazê-lo não apenas no seu país, mas no estrangeiro”. Mas, dirigindo-se ao povo russo, frisou que não são eles o “inimigo”, mas Putin.

Duma ambivalência – a NATO não intervém porque a Ucrânia não é seu membro, mas estão por ali as forças da NATO para defender um aliado (Intervém ou não intervém?) – passa a porfiar na suposta luta pela liberdade e democracia e alerta que não se conseguiu isso com a guerra fria nem mesmo com a queda da União Soviética. E, dizendo que “esta batalha não se travou em dias ou meses”, considerou que “temos de estar preparados para enfrentar um combate que pode durar”, alertou, pedindo união e solidariedade para com o povo ucraniano. E, algumas horas após ataque a um depósito de combustível em Lviv, uma das grandes cidades ucranianas que está situada perto das fronteiras com a Polónia, disse que tal união é, sobretudo, no seio da NATO, pelo que “não pode haver nenhum ataque a uma nação membro da NATO”.

Aliás, sobre a NATO e a postura dos EUA, Biden disse que “nunca pensaram em atacar e entrar em guerra”, frisando que a aliança é uma organização de defesa e não de ataque.

Houve uma “mensagem clara” que quis deixar para “a NATO, os G7, a União Europeia”: “todos os amantes da liberdade devem comprometer-se neste combate, estar unidos hoje, amanhã e no futuro”, pois “esta guerra já é um desastre estratégico para os russos”, porém, “a Ucrânia nunca poderá ser conquistada pela Rússia”.

***

Reiterando que nada justifica a guerra e a insistência na mesma, é de estar pela inaceitabilidade de uma pré-declaração de guerra pelo Sr. Biden, não sei se em nome dos EUA, se da NATO. E, se isso vier a acontecer, é só um passo mais para a 3.ª guerra mundial de efeitos imprevisíveis. O falhanço da diplomacia, a desistência da fraternidade.

Tem razão Dmitry Peskov ao considerar que os insultos de Biden a Putin reduzem possibilidade de melhorar as relações entre Washington e Moscovo. Já não terá autoridade moral para dizer que “um líder deve manter a calma”, pois, sendo verdade, também líder da Rússia não a tem mostrado ou então é muito hipócrita, sentindo uma coisa e mandando fazer outra.

Porém, Não foi a primeira vez que Biden usou palavras duras em relação a Putin, considerado o principal responsável pela invasão da Ucrânia, que já causou milhares de mortes. Nos últimos dias, o presidente norte-americano designou-o, por duas vezes, como criminoso de guerra. E Peskov afirmou:

Afinal, (Biden) é o homem que uma vez exigiu, ao falar na televisão do seu país, que se bombardeasse a Jugoslávia. Exatamente, bombardeamentos à Jugoslávia. Exigiu que se matassem pessoas.”.

Ora, o momento presente, tão causticado por destruição, morte, estropiamentos, deslocações, desabrigados, impõe um valente “mea culpa” multilateral, com cessar-fogo imediato, desanuviamento, negociação, reflexão, levantamento de sanções e, para os crentes, prece também.

2022.03.26 – Louro de Carvalho