quarta-feira, 30 de março de 2022

Desproporcionada e precipitada exoneração de capelão militar

 

Dois fuzileiros e um civil estão indiciados pela provocação da morte de um agente da PSP na madrugada de 20 de março, à saída da discoteca Mome. Os dois fuzileiros estão com a medida de coação de prisão preventiva a aguardar julgamento; o civil, pelos vistos, está em fuga.

Efetivamente, na madrugada de 20 de março, o agente da PSP Fábio Guerra foi espancado depois de ter tentado separar uma briga entre os dois fuzileiros Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, um amigo e um cidadão estrangeiro que terá atacado Cláudio Coimbra. Os dois suspeitos, que estão em prisão preventiva, admitiram as agressões ao agente da PSP, que acabou por morrer de múltiplas lesões cerebrais.

No dia do funeral do predito agente, o Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) condenou, em discurso dirigido aos seus militares, a ação perpetrada no referido dia 20 de março, no que merece todo o aplauso. Porém, o teor do seu discurso terá desgostado o corpo de fuzileiros, porquanto o CEMA terá classificado de cobardes os militares em causa e terá dito que não queremos fuzileiros que sejam arruaceiros, pois temos de ser lobos na selva e cordeiros em casa.

Face a esta situação discursiva e o impacto psicossocial criado entre os militares, o capelão Licínio Luís, tornado provedor dos fuzileiros (também ele fuzileiro), postou na sua página do facebook um texto crítico para o CEMA por haver arrasado os dois fuzileiros suspeitos das agressões fatais ao agente da PSP Fábio Guerra, acusando-os de “mancharem” a farda ao terem-se envolvido no espancamento do polícia pois, segundo o capelão, “os jovens têm direito a ser respeitados: os jovens da PSP estavam no mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos”.

Não te deixes levar pelas primeiras impressões”, escreveu Licínio Luís na página pessoal do Facebook, onde é seguido por milhares de pessoas. “O senhor Almirante que aguarde pela Justiça. Julgar sem saber não corre nada bem”.

Nesse primeiro post, que foi entretanto apagado, o capelão defendia que “os jovens estavam a divertir-se e foram provocados” e perguntava a Gouveia e Melo: “O senhor Almirante nunca foi para a noite? Nunca bebeu uns copos?”. Estas duas perguntas eram desnecessárias…

Posteriormente, no dia 29, o capelão pediu desculpa pelas críticas que tinha feito antes a Gouveia e Melo através do Facebook: “É muito importante reconhecer perante a Marinha que errei ao dirigir-me de forma incorreta, inapropriada, interpretativa e pública ao almirante CEMA”.

Desta vez, o Padre Licínio Luís diz reconhecer que Gouveia e Melo “sempre foi um adepto dos fuzileiros” e que “agora mais a frio” defende que o número um da Marinha “tomou a única posição possível e ética ao traçar para toda a Marinha uma linha vermelha de comportamento”.

Como capelão, garante que “nenhuma agressão deve servir de resposta a qualquer ato terceiro, muito menos violência que possa ter contribuído para o falecimento de um agente da PSP”. E remata, citando Gouveia e Melo, que agora “é tempo da Justiça e do direito à defesa dos arguidos, mas também é tempo de verdade e de redenção”.

E, além da recente postagem no facebook, o capelão teve reunião com Gouveia e Melo em que terá pedido desculpa e explicado que não queria pôr em causa a autoridade do CEMA.

Porém, “a Marinha confirma que o Sr. Capelão Licínio teve uma audiência com o Sr. Almirante CEMA. À data de hoje, 29 de março, o Sr. Capelão encontra-se exonerado.”.

E o caso, para já, termina com a exoneração do Padre Passionista Licínio Luís.

***

Está entredito que o CEMA fez-se muito bem ao condenar veementemente a ação dos preditos fuzileiros, mas ter-se-á excedido na qualificação do seu comportamento fazendo valer a vertente apologética dos fuzileiros.

O capelão tentou cumprir o seu papel de provedor dos camaradas fuzileiros e com legitimidade – sempre me ensinaram que estes era um dos seus papéis quando por lá andei –, pois este papel cumpre-se sobretudo junto de quem precisa ou atuou mal. E o apelo a que se esperasse pela justiça é razoável e oportuno, pois a presunção da inocência é um princípio basilar do direito e vale até decisão condenatória transitada em julgado, do que estamos longe. Por outro lado, fazer juízos de valor sobre um ato lamentável sem conhecer as circunstâncias é imprudente, pois até se sabe que há diferentes narrativas entre as declarações da PSP e da família de um dos indiciados quanto ao número de agentes que intervieram – quatro ou seis – e se estavam ou não ao serviço àquela hora.

Contudo, o capelão atuou de forma inábil. É certo que, apesar de ser um oficial superior, pode não ter acesso direto ao CEMA para lhe expor os seus pontos de vista, mas poderia ter usado o e-mail ou a carta. E há duas perguntas desnecessárias que acirraram a autoridade militar.

A sua atitude contraria o disposto no artigo 16.º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) das Forças Armadas, que estabelece o conteúdo do dever de lealdade.   

Assim, a alínea a) do n.º 2 explicita que, em cumprimento do dever de lealdade, incumbe ao militar “não manifestar de viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respetivos titulares, das instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo, prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas”. Por sua vez, a alínea b) impõe: “respeitar e agir com franqueza e sinceridade para com os militares de posto superior, subordinados ou de hierarquia igual ou inferior, tanto no serviço como fora dele”. E a alínea e) estabelece: “não se servir, sem para isso estar autorizado, dos meios de comunicação social ou de outros meios de difusão para tratar assunto de serviço ou para responder a apreciações feitas a serviço de que esteja incumbido, caso em que deve participar o sucedido às autoridades competentes”.

Nestes termos, o capelão não podia ter usado o facebook, outra rede social ou qualquer meio de comunicação social (jornal, rádio ou televisão) para exprimir os seus pontos de vista sobre a matéria, mas parece que lhe assistiria o direito, e mesmo o dever, de ser franco para com o CEMA, para o que deveria ter utilizado meios discretos de que dispõe, mesmo que recorresse a oficial com acesso ao CEMA, por exemplo o Chefe de Gabinete.

Não obstante, a exoneração é medida extrema e não consta no RDM. Com efeito, o artigo 30.º estabelece as penas aplicáveis:

1- As penas aplicáveis pela prática de infração disciplinar são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes: a) repreensão; b) repreensão agravada; c) proibição de saída; d) suspensão de serviço; e) prisão disciplinar.

“2 - Aos militares dos quadros permanentes nas situações do ativo ou de reserva, além das penas previstas no número anterior, poderão ser aplicadas as seguintes: a) reforma compulsiva; b) separação de serviço. 

Recordo que o General Carlos Azeredo e os coronéis Jaime Neves e Vasco Lourenço foram punidos por críticas públicas a superiores hierárquicos com a pena disciplinar detenção ou proibição de saída dum quartel e não mais.   

O artigo 39.º determina que na escolha e na medida da pena a aplicar se atenda a juízos de proporcionalidade: grau da ilicitude do facto; grau de culpa do infrator; responsabilidade decorrente da categoria e posto, e à antiguidade neste, do infrator; personalidade do infrator; relevância disciplinar da conduta anterior e posterior do infrator; natureza do serviço desempenhado pelo infrator; resultados perturbadores na disciplina; demais circunstâncias em que a infração tiver sido cometida, que militem contra ou a favor do infrator.

A aplicação de penas disciplinares relevantes deve ser precedida de processo disciplinar – regulado pelos artigos 74.º a 108.º – em que sejam dadas todas as garantias de defesa ao arguido e ponderadas todas as circunstâncias da ocorrência, bem como as eventuais agravantes e atenuantes, e do qual pode resultar ou a aplicação de pena ou o arquivamento do processo.

Além disso, tratando-se de capelães, os seus chefes religioso-militares devem ser ouvidos previamente a qualquer punição. Neste sentido seria útil saber-se do parecer do Venerando Ordinário Castrense do seu Vigário Geral.

Assim, parece que a exoneração, que equivale à pena de separação de serviço, foi precipitada, porque tomada a quente e sem processo disciplinar e desproporcionada.

Pode acontecer que a exoneração tenha partido de pedido do capelão, do que deveria ter sido demovido, porque a quente nada se resolve e até porque reconheceu o seu erro no quadro formal, embora tenha, a meu ver, razão em termos de substância, com exceção das preditas perguntas.

Consta, pelas últimas notícias, que se equaciona a hipótese da readmissão do Padre Licínio Luís, o que revela a precipitação e desproporção apontadas e a falta de consulta à parte eclesiástica militar. Se for verdade, entendo que, apesar do incómodo que a readmissão possa trazer, a humidade sacerdotal e passionista e o espírito de serviço se sobreporão a tudo o mais. Mas um chefe militar tem de ser mais ponderado e contido na aplicação de medidas disciplinares!

2022.03.30 – Louro de Carvalho

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