Dois fuzileiros e um civil estão indiciados pela
provocação da morte de um agente da PSP na
madrugada de 20 de março, à saída da discoteca Mome. Os dois fuzileiros estão
com a medida de coação de prisão preventiva a aguardar julgamento; o civil,
pelos vistos, está em fuga.
Efetivamente, na madrugada de 20 de março, o agente da PSP Fábio Guerra foi
espancado depois de ter tentado separar uma briga entre os dois fuzileiros Cláudio
Coimbra e Vadym Hrynko, um amigo e um cidadão estrangeiro que terá atacado
Cláudio Coimbra. Os dois suspeitos, que estão em prisão preventiva, admitiram
as agressões ao agente da PSP, que acabou por morrer de múltiplas lesões
cerebrais.
No dia do funeral do predito agente, o Almirante Chefe do Estado-Maior da
Armada (CEMA) condenou, em discurso dirigido aos seus militares, a ação
perpetrada no referido dia 20 de março, no que merece todo o aplauso. Porém, o
teor do seu discurso terá desgostado o corpo de fuzileiros, porquanto o CEMA
terá classificado de cobardes os militares em causa e terá dito que não
queremos fuzileiros que sejam arruaceiros, pois temos de ser lobos na selva e
cordeiros em casa.
Face a esta situação discursiva e o impacto psicossocial criado entre os
militares, o capelão Licínio Luís, tornado provedor dos fuzileiros (também ele
fuzileiro), postou na sua página do facebook
um texto crítico para o CEMA por haver arrasado os dois fuzileiros suspeitos
das agressões fatais ao agente da PSP Fábio Guerra, acusando-os de “mancharem”
a farda ao terem-se envolvido no espancamento do polícia pois, segundo o
capelão, “os jovens têm direito a ser respeitados: os jovens da PSP estavam no
mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos”.
“Não te deixes levar pelas primeiras
impressões”, escreveu Licínio Luís na página pessoal do Facebook, onde é
seguido por milhares de pessoas. “O
senhor Almirante que aguarde pela Justiça. Julgar sem saber não corre nada bem”.
Nesse primeiro post, que foi entretanto apagado, o capelão defendia que “os jovens estavam a divertir-se e foram
provocados” e perguntava a Gouveia e Melo: “O senhor Almirante nunca foi para a noite? Nunca bebeu uns copos?”.
Estas duas perguntas eram desnecessárias…
Posteriormente, no dia 29, o capelão pediu desculpa pelas críticas que tinha feito
antes a Gouveia e Melo através do Facebook: “É muito importante reconhecer perante a Marinha que errei ao dirigir-me
de forma incorreta, inapropriada, interpretativa e pública ao almirante CEMA”.
Desta vez, o Padre Licínio Luís diz reconhecer que Gouveia e Melo “sempre
foi um adepto dos fuzileiros” e que “agora mais a frio” defende que o número um
da Marinha “tomou a única posição
possível e ética ao traçar para toda a Marinha uma linha vermelha de
comportamento”.
Como capelão, garante que “nenhuma
agressão deve servir de resposta a qualquer ato terceiro, muito menos violência
que possa ter contribuído para o falecimento de um agente da PSP”. E
remata, citando Gouveia e Melo, que agora “é
tempo da Justiça e do direito à defesa dos arguidos, mas também é tempo de
verdade e de redenção”.
E, além da recente postagem no facebook, o capelão teve reunião com Gouveia
e Melo em que terá pedido desculpa e explicado que não queria pôr em causa a
autoridade do CEMA.
Porém, “a Marinha confirma que o Sr. Capelão
Licínio teve uma audiência com o Sr. Almirante CEMA. À data de hoje, 29 de março,
o Sr. Capelão encontra-se exonerado.”.
E o caso, para já, termina com a exoneração do Padre Passionista Licínio
Luís.
***
Está
entredito que o CEMA fez-se muito bem ao condenar veementemente a ação dos
preditos fuzileiros, mas ter-se-á excedido na qualificação do seu comportamento
fazendo valer a vertente apologética dos fuzileiros.
O
capelão tentou cumprir o seu papel de provedor dos camaradas fuzileiros e com
legitimidade – sempre me ensinaram que estes era um dos seus papéis quando por
lá andei –, pois este papel cumpre-se sobretudo junto de quem precisa ou atuou
mal. E o apelo a que se esperasse pela justiça é razoável e oportuno, pois a presunção
da inocência é um princípio basilar do direito e vale até decisão condenatória
transitada em julgado, do que estamos longe. Por outro lado, fazer juízos de valor
sobre um ato lamentável sem conhecer as circunstâncias é imprudente, pois até
se sabe que há diferentes narrativas entre as declarações da PSP e da família de
um dos indiciados quanto ao número de agentes que intervieram – quatro ou seis –
e se estavam ou não ao serviço àquela hora.
Contudo,
o capelão atuou de forma inábil. É certo que, apesar de ser um oficial
superior, pode não ter acesso direto ao CEMA para lhe expor os seus pontos de
vista, mas poderia ter usado o e-mail ou a carta. E há duas perguntas desnecessárias
que acirraram a autoridade militar.
A
sua atitude contraria o disposto no artigo 16.º do Regulamento de Disciplina Militar
(RDM) das Forças Armadas, que
estabelece o conteúdo do dever de lealdade.
Assim,
a alínea a) do n.º 2 explicita que, em cumprimento do dever de lealdade,
incumbe ao militar “não manifestar de
viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à
Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respetivos titulares, das
instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo,
prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas”.
Por sua vez, a alínea b) impõe: “respeitar
e agir com franqueza e sinceridade para com os militares de posto superior,
subordinados ou de hierarquia igual ou inferior, tanto no serviço como fora
dele”. E a alínea e) estabelece: “não
se servir, sem para isso estar autorizado, dos meios de comunicação social ou
de outros meios de difusão para tratar assunto de serviço ou para responder a
apreciações feitas a serviço de que esteja incumbido, caso em que deve
participar o sucedido às autoridades competentes”.
Nestes
termos, o capelão não podia ter usado o facebook, outra rede social ou qualquer
meio de comunicação social (jornal, rádio ou televisão) para exprimir os seus pontos de
vista sobre a matéria, mas parece que lhe assistiria o direito, e mesmo o dever,
de ser franco para com o CEMA, para o que deveria ter utilizado meios discretos
de que dispõe, mesmo que recorresse a oficial com acesso ao CEMA, por exemplo o
Chefe de Gabinete.
Não
obstante, a exoneração é medida extrema e não consta no RDM. Com efeito, o
artigo 30.º estabelece as penas aplicáveis:
“1- As penas aplicáveis pela prática de
infração disciplinar são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes: a)
repreensão; b) repreensão agravada; c) proibição de saída; d) suspensão de
serviço; e) prisão disciplinar.
“2 - Aos militares dos quadros
permanentes nas situações do ativo ou de reserva, além das penas previstas no
número anterior, poderão ser aplicadas as seguintes: a) reforma compulsiva; b)
separação de serviço.”
Recordo
que o General Carlos Azeredo e os coronéis Jaime Neves e Vasco Lourenço foram
punidos por críticas públicas a superiores hierárquicos com a pena disciplinar detenção
ou proibição de saída dum quartel e não mais.
O
artigo 39.º determina que na escolha e na medida da pena a aplicar se atenda a
juízos de proporcionalidade: grau da ilicitude do facto; grau de culpa do infrator;
responsabilidade decorrente da categoria e posto, e à antiguidade neste, do
infrator; personalidade do infrator; relevância disciplinar da conduta anterior
e posterior do infrator; natureza do serviço desempenhado pelo infrator; resultados
perturbadores na disciplina; demais circunstâncias em que a infração tiver sido
cometida, que militem contra ou a favor do infrator.
A
aplicação de penas disciplinares relevantes deve ser precedida de processo disciplinar
– regulado pelos artigos 74.º a 108.º – em que sejam dadas todas as garantias
de defesa ao arguido e ponderadas todas as circunstâncias da ocorrência, bem
como as eventuais agravantes e atenuantes, e do qual pode resultar ou a aplicação
de pena ou o arquivamento do processo.
Além
disso, tratando-se de capelães, os seus chefes religioso-militares devem ser
ouvidos previamente a qualquer punição. Neste sentido seria útil saber-se do
parecer do Venerando Ordinário Castrense do seu Vigário Geral.
Assim,
parece que a exoneração, que equivale à pena de
separação de
serviço, foi precipitada, porque tomada a quente e sem processo disciplinar e
desproporcionada.
Pode
acontecer que a exoneração tenha partido de pedido do capelão, do que deveria
ter sido demovido, porque a quente nada se resolve e até porque reconheceu o
seu erro no quadro formal, embora tenha, a meu ver, razão em termos de substância,
com exceção das preditas perguntas.
Consta,
pelas últimas notícias, que se equaciona a hipótese da readmissão do Padre Licínio
Luís, o que revela a precipitação e desproporção apontadas e a falta de
consulta à parte eclesiástica militar. Se for verdade, entendo que, apesar do incómodo
que a readmissão possa trazer, a humidade sacerdotal e passionista e o espírito
de serviço se sobreporão a tudo o mais. Mas um chefe militar tem de ser mais
ponderado e contido na aplicação de medidas disciplinares!
2022.03.30 – Louro de Carvalho
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