sexta-feira, 11 de março de 2022

KAICIID transferirá em maio a sua sede para Lisboa

  

Como noticiou o “7 Margens” no passado dia 6 de março, o Centro Internacional Rei Abdullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID, da sigla em inglês) transferirá a sua sede de Viena para Lisboa no próximo mês de maio, como afirmaram os responsáveis da instituição, que organizou, em Lisboa, um seminário de formação de líderes

Criado em 2007 sob o impulso do Papa Bento XVI e do rei saudita que lhe dá o nome, na sequência dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA, o KAICIID tomou, em outubro, tal decisão por considerar Portugal como “um farol do multiculturalismo” e um país que sempre manifestou a “abertura e tolerância” como “caraterísticas fortes da identidade nacional do país”.

O arménio Kyfork Aghobjian, responsável pelo programa de bolseiros do KAICIID, assegura que tais caraterísticas fazem de Portugal “a nova sede perfeita para uma organização como o KAICIID”. Com efeito, em Viena, a organização “foi frequentemente arrastada para discussões políticas nacionais que não estavam relacionadas com o trabalho” para que está vocacionado, mesmo se o KAICIID tentou que tal não interferisse na sua missão. Por isso considerou-se que a melhor opção era sair da capital austríaca. Por consequência, tomou a decisão de transferência da sede o Conselho das Partes, um dos órgãos de governo do KAICIID, composto por representantes dos 4 estados fundadores: Arábia Saudita, Espanha, Áustria e Santa Sé.

Esta organização intergovernamental, regida pelas normas do direito internacional, tem um outro órgão dirigente: o Conselho de Administração, constituído por líderes religiosos, reunindo assim decisores políticos com seguidores e líderes de diferentes tradições religiosas. Este conselho, com o Fórum Consultivo, que reúne mais de 60 líderes religiosos das principais tradições religiosas e culturais do mundo, permite ao Centro “ligar em rede comunidades de todo o mundo”. A organização assume-se, pois, como “convocadora e facilitadora, trazendo à mesa de diálogo líderes religiosos, responsáveis políticos e peritos, para que possam encontrar soluções comuns para problemas comuns”.

Nascido para “promover o diálogo intercultural e inter-religioso, colocando membros de diferentes tradições e outros interessados a promover e participar em diferentes espaços de diálogo, o Centro inclui, atualmente, representantes das 5 mais importantes tradições religiosas: cristianismo, islão, judaísmo, budismo e hinduísmo.

Nos últimos meses, segundo Kyfork Aghobjian, tem havido contacto com decisores políticos portugueses e líderes religiosos “que têm sido extremamente acolhedores e solidários”, estando os responsáveis do centro “desejosos de reforçar essas relações e de colaborar mais estreitamente assim que tivermos mudado completamente para Lisboa”.

No predito seminário de formação os participantes dedicaram uma tarde à visita de três locais de culto, contactando com os seus responsáveis: a igreja católica de São Domingos, a igreja-catedral de São Paulo, da Igreja Lusitana (Anglicana) e a Mesquita Central de Lisboa.

Também têm estado em contacto com a instituição a Fundação Aga Khan, que já participou já em várias iniciativas do KAICIID e a Nunciatura Apostólica (embaixada da Santa Sé) em Portugal.

O programa de formação de líderes admite candidaturas todos os anos. Dos 500 concorrentes ao último, na 1.ª fase foram escolhidas 20 pessoas por região, donde saiu o grupo de 61 que participaram na formação de Lisboa, 45 das quais presencialmente e as restantes à distância, ainda por via da pandemia. E prevê-se que alguns temas se relacionem preferencialmente com algumas regiões: por exemplo, a cidadania no mundo árabe ou a integração de imigrantes e a dimensão intercultural para a Europa.

Agora, com a guerra no Leste da Europa, Aghobjian considera que estruturas como o KAICIID podem ter relevante papel no desanuviamento: antes de mais, a sensibilizar a opinião pública para o facto de a religião ser instrumentalizada para fins políticos; e, verificando-se tal fenómeno, a capacitar líderes religiosos para o enfrentar, podendo contribuir assim para a paz. E, relativamente à Ucrânia, o responsável do KAICIID considera que “os líderes religiosos não devem entrar nos jogos políticos”, para evitar o uso da fé não em “jogos ou cálculos políticos”. Na verdade, é parte da missão do Centro “prevenir a instrumentalização das religiões nos conflitos”, trabalhando para prevenir a instrumentalização ou abuso das religiões, valores religiosos e posições religiosas e para não se usar a violência com argumentos religiosos. Não obstante, Aghobjian observa:

As religiões ou instituições religiosas, como um dos elementos cruciais da sociedade, podem desempenhar um papel construtivo, para prevenir o conflito, abrandar o conflito e construir a paz. Mesmo quando o conflito não tem conotações religiosas, os líderes religiosos podem jogar um papel para prevenir a escalada de violência, chamando as diversas partes ao cessar-fogo, prevenindo a violência ou refreando-a.”.

O responsável do programa de bolseiros do KAICIID menciona exemplos atuais, como a covid-19, as migrações, a crise dos refugiados, os ataques a lugares de oração, para sustentar que não há quase nenhum conflito em que a religião não possa ter papel relevante, seja através dos líderes, seja através das instituições. Efetivamente, como disse, “em todas estas questões, que atravessam fronteiras, as instituições e líderes religiosos podem ter um papel crucial”.

Pensando no que se passa em âmbito mais interno das estruturas religiosas, Aghobjian diz que o KAICIID privilegia a prossecução do diálogo como forma de “entender e ouvir o outro”, em detrimento da participação em debates do interior das instituições. E explica:

Quando providenciamos o espaço, é possível que tudo se discuta. Mas o diálogo não precisa de terminar sempre com um acordo de paz, é um espaço para alargar a compreensão mútua. E podemos equacionar como podemos usar textos religiosos para incrementar esse diálogo.”.

Depois, acrescenta que o diálogo é uma “ferramenta para aprendermos uns dos outros e também sobre nós próprios, é um meio muito efetivo de concretizar a nossa compreensão, para criar um terreno comum mais amplo onde possamos trabalhar em conjunto”.

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Por sua vez, José Mattoso saúda essa transferência da sede do KAICIID para Lisboa como uma das prazenteiras notícias e “portadora de paz e de esperança” no meio de tantas notícias nefastas devido à guerra na Ucrânia, significando que a organização “se quis demarcar de toda e qualquer conotação ideológica ou política, que poderia advir da sua posição num país próximo do conflito, para marcar a sua total independência em relação com a guerra e assumir inequivocamente o seu papel de promotor do diálogo, seja qual for o motivo da guerra”.

Considera que Portugal foi sempre lugar de neutralidade e tolerância, mas evoca algumas exceções que julga “historicamente compreensíveis”, como as cruzadas, a inquisição, o salazarismo, guerra colonial. Afora elas, praticou o diálogo cultural, detestou o racismo, bem como toda a espécie de fundamentalismos. Mais assegura que o discurso radical a que, por vezes, as elites aderiram “nunca foi dominante nem assumido pela cultura popular”; ao invés, “as correntes ecuménicas e a fraternidade universal sempre foram vistas com simpatia”, mesmo se nascidas em territórios alheios. Por isso, preconiza que tal espírito “deve ser cultivado em todas as manifestações religiosas e políticas”, sendo “indispensável em todos os momentos de conflito, sobretudo nos que trazem consigo a violência e a destruição, que ameaçam a paz e vitimam os indefesos, como é a situação atual”. Assim, na ótica do historiador, o tão veemente apelo papal “à paz, à diplomacia e à tolerância” tem de “ser escutado por todos e de todas as maneiras possíveis, mesmo que implique cedências indispensáveis à sua efetivação”.

E conclui dizendo que o gesto do KAICIID de transferir a sede para Lisboa nos coloca “numa posição mais próxima das negociações” e nos insta “a procurar, por todos os meios possíveis, a promoção da paz, nem que seja só pela oração e o jejum, que o Papa tanto recomenda” na certeza de que “a fé remove montanhas” (cf Mt 21,21).

Não obstante, é de lamentar a postura do Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias neste momento. Apesar de instado pelo CMI e pela Comece a apelar às autoridades russas para a cessação das hostilidades e para a negociação, alinha com a argumentação de Putin indo à história recente e, por via de eventual ameaça externa, recusar o apelo que lhe foi dirigido a 2 de março pelo CMI (Conselho Mundial das Igrejas) e reforçado pela Comece.

E, na sua carta ao CMI, observa que a Igreja russa se juntou ao CMI em 1961, na base renovada da “comunhão de Igrejas” e da Declaração de Toronto, que dizia que “o Conselho como tal não pode se tornar o instrumento de uma confissão ou escola”, pelo que “as igrejas membros devem reconhecer a sua solidariedade umas com as outras, prestar assistência umas às outras em caso de necessidade e abster-se de ações incompatíveis com o relacionamento fraterno”.

Aceita que, desde 1983, tenha sido prioridade do CMI comprometer as suas igrejas-membro no processo de reconhecimento da sua responsabilidade compartilhada pela justiça, paz e integridade da criação dentro da comunidade mundial”.

Reconhece que atualmente “milhões de cristãos em todo o mundo nas suas orações e pensamentos olham para os dramáticos acontecimentos na Ucrânia. Porém, frisando que “o conflito não começou hoje”, afirma-se convicto de que “os seus iniciadores não são os povos da Rússia e da Ucrânia, que vieram duma pia batismal de Kiev, estão unidos por uma fé comum, santos e orações comuns e compartilham um destino histórico comum”. Neste aspeto está visivelmente alinhado com o discurso de Putin. E explicita que “as origens do confronto estão nas relações entre o Ocidente e a Rússia”. Com efeito, na década de 1990, prometeram à Rússia que seriam respeitadas “a sua segurança e dignidade”. Todavia, com o passar do tempo, as forças que consideravam a Rússia como um inimigo chegaram até às suas fronteiras: os Estados membros da NATO vêm aumentando a sua presença militar, desconsiderando as preocupações da Rússia e que essas armas possam vir a ser usadas contra ela.

Mais: as forças políticas que pretendem conter a Rússia não iriam lutar contra ela, mas planeavam outros meios, tentando fazer dos povos irmãos (russos e ucranianos) inimigos, não poupando “esforços nem fundos para inundar a Ucrânia com armas e instrutores de guerra” e, mais terrível que as armas, tentando “reeducar” e “reconstruir  mentalmente os ucranianos e russos que vivem na Ucrânia em inimigos da Rússia”. Neste sentido, aponta o cisma da igreja criado pelo Patriarca Bartolomeu de Constantinopla em 2018 (tornar autocéfala a Igreja Ortodoxa Ucraniana, ou seja independente da russa), que “afetou a Igreja Ortodoxa Ucraniana”.

Recorda que, já em 2014, quando se derramava sangue na praça de Maidan (Kiev) e se registaram as primeiras vítimas, o CMI expressou a sua preocupação. E cita Olav Fykse Tveit, então secretário-geral do CMI, que disse a 3 de março de 2014:

O Conselho Mundial de Igrejas está profundamente preocupado com os atuais desenvolvimentos perigosos na Ucrânia. A situação coloca muitas vidas inocentes em grave perigo. E, como um vento amargo da Guerra Fria, corre o risco de minar ainda mais a capacidade da comunidade internacional de agir agora ou no futuro nas muitas questões urgentes que exigirão uma resposta coletiva e baseada em princípios.”.

Regista que, ao eclodir o conflito armado na região de Donbas, cuja população defendia o direito de falar russo e exigia respeito pela sua tradição histórica e cultural, “as suas vozes não foram ouvidas, assim como milhares de vítimas entre a população de Donbas passaram despercebidas no mundo ocidental”. E sublinha que este conflito se tornou parte da estratégia geopolítica de grande escala que visa enfraquecer a Rússia. E os líderes ocidentais impõem sanções económicas à Rússia, prejudiciais para todos. Tornam as suas intenções óbvias: “trazer sofrimento não apenas aos líderes políticos ou militares russos, mas especificamente ao povo russo”. Espalha-se a russofobia pelo mundo ocidental a um ritmo sem precedentes.

Enfim, embora tenha alguma razão na crítica ao Ocidente, nada justifica a quase legitimação que faz da guerra. E, quase como Putin, considera a sua narrativa da história como única e legitimadora de tudo. Depois, a guerra, mesmo fazendo vencedores, cava a destruição e a morte, que alastram sem freios e sem limites. Nada há como a força da paz!

2022.03.11 – Louro de Carvalho

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