Como noticiou o “7 Margens” no passado dia 6 de março, o Centro Internacional Rei
Abdullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID, da sigla em inglês) transferirá a sua sede de Viena para Lisboa no próximo mês de maio, como
afirmaram os responsáveis da instituição, que organizou, em Lisboa, um seminário
de formação de líderes
Criado em 2007 sob o impulso do Papa Bento
XVI e do rei saudita que lhe dá o nome, na sequência dos atentados do 11 de Setembro
de 2001 nos EUA, o KAICIID tomou, em outubro, tal decisão por considerar
Portugal como “um farol do multiculturalismo” e um país que sempre manifestou a
“abertura e tolerância” como “caraterísticas fortes da identidade nacional do
país”.
O arménio Kyfork Aghobjian, responsável
pelo programa de bolseiros do KAICIID, assegura que tais caraterísticas fazem
de Portugal “a nova sede perfeita para uma organização como o KAICIID”. Com efeito,
em Viena, a organização “foi frequentemente arrastada para discussões políticas
nacionais que não estavam relacionadas com o trabalho” para que está vocacionado,
mesmo se o KAICIID tentou que tal não interferisse na sua missão. Por isso considerou-se
que a melhor opção era sair da capital austríaca. Por consequência, tomou a decisão
de transferência da sede o Conselho das Partes, um dos órgãos de governo do
KAICIID, composto por representantes dos 4 estados fundadores: Arábia Saudita,
Espanha, Áustria e Santa Sé.
Esta organização intergovernamental,
regida pelas normas do direito internacional, tem um outro órgão dirigente: o
Conselho de Administração, constituído por líderes religiosos, reunindo assim
decisores políticos com seguidores e líderes de diferentes tradições
religiosas. Este conselho, com o Fórum Consultivo, que reúne mais de 60 líderes
religiosos das principais tradições religiosas e culturais do mundo, permite ao
Centro “ligar em rede comunidades de todo o mundo”. A organização assume-se,
pois, como “convocadora e facilitadora, trazendo à mesa de diálogo líderes
religiosos, responsáveis políticos e peritos, para que possam encontrar soluções
comuns para problemas comuns”.
Nascido para “promover o diálogo
intercultural e inter-religioso, colocando membros de diferentes tradições e
outros interessados a promover e participar em diferentes espaços de diálogo, o
Centro inclui, atualmente, representantes das 5 mais importantes tradições
religiosas: cristianismo, islão, judaísmo, budismo e hinduísmo.
Nos últimos meses, segundo Kyfork
Aghobjian, tem havido contacto com decisores políticos portugueses e líderes
religiosos “que têm sido extremamente acolhedores e solidários”, estando os responsáveis
do centro “desejosos de reforçar essas relações e de colaborar mais
estreitamente assim que tivermos mudado completamente para Lisboa”.
No predito seminário de formação os
participantes dedicaram uma tarde à visita de três locais de culto, contactando
com os seus responsáveis: a igreja católica de São Domingos, a igreja-catedral
de São Paulo, da Igreja Lusitana (Anglicana) e a Mesquita Central de Lisboa.
Também têm estado em contacto com a
instituição a Fundação Aga Khan, que já participou já em várias iniciativas do
KAICIID e a Nunciatura Apostólica (embaixada da Santa Sé) em Portugal.
O programa de formação de líderes admite
candidaturas todos os anos. Dos 500 concorrentes ao último, na 1.ª fase foram
escolhidas 20 pessoas por região, donde saiu o grupo de 61 que participaram na
formação de Lisboa, 45 das quais presencialmente e as restantes à distância,
ainda por via da pandemia. E prevê-se que alguns temas se relacionem
preferencialmente com algumas regiões: por exemplo, a cidadania no mundo árabe
ou a integração de imigrantes e a dimensão intercultural para a Europa.
Agora, com a guerra no Leste da Europa, Aghobjian
considera que estruturas como o KAICIID podem ter relevante papel no
desanuviamento: antes de mais, a sensibilizar a opinião pública para o facto de
a religião ser instrumentalizada para fins políticos; e, verificando-se tal
fenómeno, a capacitar líderes religiosos para o enfrentar, podendo contribuir assim
para a paz. E, relativamente à Ucrânia, o responsável do KAICIID considera que
“os líderes religiosos não devem entrar nos jogos políticos”, para evitar o uso
da fé não em “jogos ou cálculos políticos”. Na verdade, é parte da missão do
Centro “prevenir a instrumentalização das religiões nos conflitos”, trabalhando
para prevenir a instrumentalização ou abuso das religiões, valores religiosos e
posições religiosas e para não se usar a violência com argumentos religiosos. Não
obstante, Aghobjian observa:
“As religiões ou instituições religiosas, como um dos elementos cruciais
da sociedade, podem desempenhar um papel construtivo, para prevenir o conflito,
abrandar o conflito e construir a paz. Mesmo quando o conflito não tem
conotações religiosas, os líderes religiosos podem jogar um papel para prevenir
a escalada de violência, chamando as diversas partes ao cessar-fogo, prevenindo
a violência ou refreando-a.”.
O responsável do programa de bolseiros do
KAICIID menciona exemplos atuais, como a covid-19, as migrações, a crise dos
refugiados, os ataques a lugares de oração, para sustentar que não há quase
nenhum conflito em que a religião não possa ter papel relevante, seja através
dos líderes, seja através das instituições. Efetivamente, como disse, “em todas
estas questões, que atravessam fronteiras, as instituições e líderes religiosos
podem ter um papel crucial”.
Pensando no que se passa em âmbito mais
interno das estruturas religiosas, Aghobjian diz que o KAICIID privilegia a
prossecução do diálogo como forma de “entender e ouvir o outro”, em detrimento
da participação em debates do interior das instituições. E explica:
“Quando providenciamos o espaço, é possível que tudo se discuta. Mas o
diálogo não precisa de terminar sempre com um acordo de paz, é um espaço para
alargar a compreensão mútua. E podemos equacionar como podemos usar textos
religiosos para incrementar esse diálogo.”.
Depois, acrescenta que o diálogo é uma
“ferramenta para aprendermos uns dos outros e também sobre nós próprios, é um
meio muito efetivo de concretizar a nossa compreensão, para criar um terreno
comum mais amplo onde possamos trabalhar em conjunto”.
***
Por sua vez, José Mattoso saúda essa
transferência da sede do KAICIID para Lisboa como uma das prazenteiras notícias
e “portadora de paz e de esperança” no meio de tantas notícias nefastas devido
à guerra na Ucrânia, significando que a organização “se quis demarcar de toda e
qualquer conotação ideológica ou política, que poderia advir da sua posição num
país próximo do conflito, para marcar a sua total independência em relação com
a guerra e assumir inequivocamente o seu papel de promotor do diálogo, seja
qual for o motivo da guerra”.
Considera que Portugal foi sempre lugar de
neutralidade e tolerância, mas evoca algumas exceções que julga “historicamente
compreensíveis”, como as cruzadas, a inquisição, o salazarismo, guerra
colonial. Afora elas, praticou o diálogo cultural, detestou o racismo, bem como
toda a espécie de fundamentalismos. Mais assegura que o discurso radical a que,
por vezes, as elites aderiram “nunca foi dominante nem assumido pela cultura
popular”; ao invés, “as correntes ecuménicas e a fraternidade universal sempre
foram vistas com simpatia”, mesmo se nascidas em territórios alheios. Por isso,
preconiza que tal espírito “deve ser cultivado em todas as manifestações
religiosas e políticas”, sendo “indispensável em todos os momentos de conflito,
sobretudo nos que trazem consigo a violência e a destruição, que ameaçam a paz
e vitimam os indefesos, como é a situação atual”. Assim, na ótica do
historiador, o tão veemente apelo papal “à paz, à diplomacia e à tolerância” tem
de “ser escutado por todos e de todas as maneiras possíveis, mesmo que implique
cedências indispensáveis à sua efetivação”.
E conclui dizendo que o gesto do KAICIID de
transferir a sede para Lisboa nos coloca “numa posição mais próxima das
negociações” e nos insta “a procurar, por todos os meios possíveis, a promoção
da paz, nem que seja só pela oração e o jejum, que o Papa tanto recomenda” na
certeza de que “a fé remove montanhas” (cf Mt 21,21).
Não obstante, é de lamentar a postura do
Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias neste momento. Apesar de instado
pelo CMI e pela Comece a apelar às autoridades russas para a cessação das hostilidades
e para a negociação, alinha com a argumentação de Putin indo à história recente e, por via de eventual ameaça
externa, recusar o apelo que lhe foi dirigido a 2 de março pelo CMI (Conselho
Mundial das Igrejas) e reforçado pela Comece.
E, na sua carta ao CMI, observa
que a Igreja russa se juntou ao CMI em 1961, na base renovada da “comunhão de
Igrejas” e da Declaração de Toronto, que dizia que “o Conselho como tal não
pode se tornar o instrumento de uma confissão ou escola”, pelo que “as igrejas
membros devem reconhecer a sua solidariedade umas com as outras, prestar
assistência umas às outras em caso de necessidade e abster-se de ações
incompatíveis com o relacionamento fraterno”.
Aceita que, desde 1983, tenha sido prioridade do
CMI comprometer as suas igrejas-membro no processo de reconhecimento da sua
responsabilidade compartilhada pela justiça, paz e integridade da criação
dentro da comunidade mundial”.
Reconhece que atualmente “milhões de cristãos em
todo o mundo nas suas orações e pensamentos olham para os dramáticos
acontecimentos na Ucrânia. Porém, frisando que “o conflito não começou hoje”,
afirma-se convicto de que “os seus iniciadores não são os povos da Rússia e da
Ucrânia, que vieram duma pia batismal de Kiev, estão unidos por uma fé comum,
santos e orações comuns e compartilham um destino histórico comum”. Neste aspeto
está visivelmente alinhado com o discurso de Putin. E explicita que “as origens
do confronto estão nas relações entre o Ocidente e a Rússia”. Com efeito, na
década de 1990, prometeram à Rússia que seriam respeitadas “a sua segurança e
dignidade”. Todavia, com o passar do tempo, as forças que consideravam a Rússia
como um inimigo chegaram até às suas fronteiras: os Estados membros da NATO vêm
aumentando a sua presença militar, desconsiderando as preocupações da Rússia e
que essas armas possam vir a ser usadas contra ela.
Mais: as forças políticas que pretendem conter a
Rússia não iriam lutar contra ela, mas planeavam outros meios, tentando fazer
dos povos irmãos (russos e ucranianos) inimigos, não poupando “esforços nem fundos para
inundar a Ucrânia com armas e instrutores de guerra” e, mais terrível que as
armas, tentando “reeducar” e “reconstruir mentalmente
os ucranianos e russos que vivem na Ucrânia em inimigos da Rússia”. Neste sentido,
aponta o cisma da igreja criado pelo Patriarca Bartolomeu de Constantinopla em
2018 (tornar autocéfala
a Igreja Ortodoxa Ucraniana, ou seja independente da russa), que “afetou a Igreja
Ortodoxa Ucraniana”.
Recorda que, já em 2014, quando se derramava
sangue na praça de Maidan (Kiev) e se registaram as primeiras vítimas, o CMI expressou a sua preocupação.
E cita Olav Fykse Tveit, então secretário-geral do CMI, que disse a 3 de março
de 2014:
“O Conselho Mundial de Igrejas
está profundamente preocupado com os atuais desenvolvimentos perigosos na
Ucrânia. A situação coloca muitas vidas inocentes em grave perigo. E, como um
vento amargo da Guerra Fria, corre o risco de minar ainda mais a capacidade da
comunidade internacional de agir agora ou no futuro nas muitas questões
urgentes que exigirão uma resposta coletiva e baseada em princípios.”.
Regista
que, ao eclodir o conflito armado na região de Donbas, cuja população defendia
o direito de falar russo e exigia respeito pela sua tradição histórica e
cultural, “as suas vozes não foram ouvidas, assim como milhares de vítimas
entre a população de Donbas passaram despercebidas no mundo ocidental”. E sublinha
que este conflito se tornou parte da estratégia geopolítica de grande escala
que visa enfraquecer a Rússia. E os líderes ocidentais impõem sanções
económicas à Rússia, prejudiciais para todos. Tornam as suas intenções óbvias: “trazer
sofrimento não apenas aos líderes políticos ou militares russos, mas
especificamente ao povo russo”. Espalha-se a russofobia pelo mundo ocidental a um
ritmo sem precedentes.
Enfim, embora tenha alguma razão na crítica ao
Ocidente, nada justifica a quase legitimação que faz da guerra. E, quase como
Putin, considera a sua narrativa da história como única e legitimadora de tudo.
Depois, a guerra, mesmo fazendo vencedores, cava a destruição e a morte, que
alastram sem freios e sem limites. Nada há como a força da paz!
2022.03.11 – Louro de
Carvalho
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