domingo, 13 de março de 2022

Ex-diretora do SEF não merece censura disciplinar

 

Há precisamente dois anos, a 12 de março de 2020, morreu o ucraniano Ihor Homeniuk no Centro de Detenção do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) do aeroporto de Lisboa.

Contudo, depois da condenação a 9 anos de prisão efetiva, confirmada perlo TRL (Tribunal da Relação de Lisboa), mas em recurso no STJ (Supremo Tribunal de Justiça), de 3 inspetores do SEF por terem causado a morte daquele cidadão, ainda há responsabilidades por apurar. E jornalistas do DN puseram-se em campo, viram relatórios e obtiveram opiniões de especialistas – de que deixo algumas linhas gerais com uma ou outra nota peregrina.

Para a IGAI (Inspeção Geral da Administração Interna), o organismo que fiscaliza as polícias, a conduta de Cristina Gatões, ex-diretora do SEF, na sequência do óbito de Homeniuk, segundo decisão de julho de 2021, não merece censura disciplinar, mas penalistas e magistrados creem-na suscetível de prática de atos que configuram os crimes de prevaricação, encobrimento e abuso de poder.

Tanto no atinente às circunstâncias da detenção de Ihor de que resultou o óbito como ao que se lhe seguiu, designadamente a operação de encobrimento e de blindagem corporativa que teve lugar, segundo a IGAI. Para esta entidade, o mentor a operação foi António Sérgio Henriques, ex-diretor de Fronteiras de Lisboa (DFL), cuja expulsão da função pública foi proposta à tutela, que a aceitou. Henriques ainda não foi ouvido no inquérito criminal a correr termos no DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa e em que já foram constituídos arguidos outros inspetores do SEF, bem como vigilantes da empresa privada Prestibel, contratada pelo SEF para gerir aquele centro de detenção. E, para alguns penalistas e magistrados, também Cristina Gatões, diretora nacional ao tempo daquela morte, que foi demitida 9 meses depois (9 de dezembro), mercê das dúvidas sobre a sua conduta, deve ser investigada criminalmente. Com efeito, há, segundo eles, na sua conduta e nas explicações que deu à IGAI indícios suficientes para suspeitar de que tanto esta inspetora coordenadora (o grau mais alto na carreira no SEF) como Henriques terão cometido crimes específicos para quem desempenha funções públicas, nomeadamente o de denegação de justiça e prevaricação. Este crime, previsto no art.º 369.º, n.º 1 do Código Penal (CP), é cometido por funcionário que, “no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce”, sendo punido com pena de prisão até 2 anos ou de multa até 120 dias. E há quem considere que Gatões e Henriques deveriam ser investigados pelo crime de abuso de poder, previsto no art.º 382.º do CP, para funcionário “que (...) abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa” e punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Os prazos de prescrição ainda não venceram e os crimes estão muito a tempo de ser investigados.

Na conduta de Gatões está em causa o facto de ter decidido não comunicar de imediato, como a lei obriga, à IGAI. Na verdade, esta só a 18 de março (6 dias depois) foi oficialmente avisada por escrito de que morrera uma pessoa em custódia. Ora, apesar de então a brigada de homicídios da PJ (Polícia Judiciária) já estar a investigar o caso, do que vários elementos da alta hierarquia do SEF, subordinados diretos de Gatões, tinham conhecimento, a informação foi de que tal morte ocorrera por causas naturais. E Gatões justificaria a sua opção à IGAI, ao ser por esta inquirida a 19 de março de 2021, no âmbito do processo disciplinar instaurado a João Ataíde, ex-coordenador do Gabinete de Inspeção do SEF, alegando que fora avisada da morte, pouco depois de esta ter ocorrido, pelo DFL Henriques, que estava com ela numa reunião e recebeu a novidade por telefone, pelo que entendeu que para a IGAI seria útil a informação sobre se tinham ou não conhecimento de ter havido alguma violência, “para também dotar a IGAI de mais informação pertinente”, pois “a existência de tortura daria uma postura diferente”. E alegou que precisava de que lhe fizessem chegar o expediente para fazer chegar à IGAI, mas então “o que era urgente era fechar as fronteiras”, mercê da pandemia (o confinamento foi decretado a 19 de março).

Ora, havendo despacho a obrigar à comunicação imediata da morte à IGAI, o que não foi feito, houve clara violação dos deveres inerentes à função. Assim, importa que a investigação determine qual era a intenção. Se tiver sido com intenção de beneficiar alguém, a moldura penal agrava-se. E, segundo alguns procuradores, pelo que tem sido do conhecimento público, tal atitude tem os indícios de encobrimento de comportamentos que indiciam fortemente a prática de crimes, o que além dos crimes susoditos, configura ainda o de favorecimento pessoal (encobrimento), previsto no art.º 367.º, n.º 1 do CP, para “quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir atividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança” e punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Sobre a alegação de Gatões, que não comunicou de imediato à IGAI, por querer primeiro verificar se não tinha havido maus-tratos, é de referir que tal avaliação competia à IGAI, não ao SEF.

Teresa Quintela de Brito, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sublinha que “quem tem de averiguar se há ou não indícios de crime é o MP e a IGAI, esta para apuramento de eventual responsabilidade disciplinar”. Gatões a extrapolar as suas competências!

Em contraponto com o atraso na comunicação à IGAI, Gatões apressou-se a dar a novidade à tutela: mandou um SMS ao Ministro a dizer que tinha havido uma morte no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (o centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa) “na sequência de uma crise convulsiva e de um problema de epilepsia”. Porém, tal não consta do relatório da IGAI, que apenas refere o e-mail que a então diretora nacional enviou, às 19,54 horas, para a chefe de gabinete do Ministro.

Também a então coordenadora nacional disse à IGAI que alguém lhe contou que Ihor se tinha atirado ou batido num armário, o que alertara para a possibilidade de ter podido haver algumas agressões ou alguma violência, mas não instaurou qualquer averiguação interna à morte para apurar em que circunstâncias ela tinha acontecido, ao invés do que o Ministro da Administração Interna certificou a 8 de abril ao Parlamento. Gatões limitou-se a pedir informalmente ao DFL e ao responsável do gabinete de inspeção que vissem as imagens de videovigilância das câmaras do centro de detenção, o que só ocorreu a 16 de março, com os dois a visionar em fast forward, em menos de três horas, mais de um dia de gravações.

Em resultado desse visionamento em que não viu nada a não ser que havia muita gente a entrar e sair da divisão (a única sem videovigilância no centro de detenção) em que Ihor foi posto em isolamento e onde morreu, Ataíde comunicou à direção nacional que não encontrara indícios objetivos de situações anómalas. E tanto Ataíde como Gatões negam que tenha sido aberta uma averiguação interna, apesar de o então Ministro Eduardo Cabrita ter dito ao Parlamento, na já referida audição, que esta era obrigatória.

Gatões invocou a necessidade de receber o expediente para o enviar à IGAI, mas sem deixar claro a que expediente se refere. E sabe-se que o RO (relatório de ocorrência), documento crucial para qualquer averiguação sobre o caso, uma espécie de diário de cada detido, em que devem ser averbadas todas as ocorrências e intervenções a ele relativas, só estava preenchido até meio do dia 11 de março. Diz a IGAI, na conclusão do processo disciplinar que moveu a Henriques, que tudo o que está plasmado no RO a partir dessa altura foi escrito sob a batuta do mesmo e para “encobrir a etiologia criminosa da morte de Ihor Homeniuk e, dessa forma, proteger-se e a colegas de trabalho (...) omitindo, deliberadamente, informações essenciais e relevantes à descoberta da verdade (...)”, tentando, “com uma blindagem corporativista, evitar a instauração de procedimentos criminais e disciplinares contra os autores do crime, sobrepondo-se ao interesse público, nomeadamente, de aplicação da justiça” (apud DN, 2 de março).

A conduta imputada pela IGAI a Henriques, que não apresentou defesa, corresponde à tipificação do crime de abuso de poder ou de favorecimento pessoal. O relatório da IGAI deixa implícito que houve obstrução à justiça por parte de dirigentes. A ex-diretora nacional  afirma, em depoimento à IGAI, que leu o RO “um milhão de vezes”, sustentando que, “durante meses largos”, isso não a deixou dormir e que ainda não lhe é fácil lidar com isso porque é a negação de toda a sua vida de trabalho. Mas, questionada sobre quando viu o RO pela primeira vez, diz não se recordar: não sabe se foi na sexta ou na segunda, não tem memória se lhe chegou no dia 13. Porém, a 13 não lhe chegou, pois não estava pronto: os inspetores condenados por causarem a morte agredindo e algemando o cidadão ucraniano, deixando-o nessa condição mais de 8 horas, só enviaram o relato da sua intervenção, por e-mail, a Henriques no dia 15 de março.

Tendo perguntado pelo RO mal soube da morte ou no dia seguinte, Gatões teria de concluir que este não estava disponível e que, portanto, a data que está no documento de 56 páginas como sendo a da conclusão (13 de março) não corresponde à verdade. E deveria ter reparado que, havendo menção à algemagem do detido, não há referência ao momento em que foi desalgemado, omissão no mínimo intrigante.

Ora, sendo a regra, ao algemar alguém, como explicou à IGAI um inspetor formador do SEF, que a pessoa fique acompanhada, é óbvio da leitura do RO que tal não sucede, o que desde logo devia concluir a diretora nacional que houve violação das normas e dos direitos do detido e a instaura inquérito interno, mas só o fez a 30 de março, aquando da detenção dos três inspetores pela PJ.

Tal inquérito foi de imediato, por determinação ministerial, avocado pela IGAI, que esperou até esse dia para se interessar pela morte dum cidadão em custódia policial. Só então pediu mais informação ao SEF sobre o óbito, solicitando à Direção Nacional que informasse com urgência se foi instaurado algum processo de natureza disciplinar para averiguar dos factos comunicados.

Este atraso de 12 dias da IGAI leva Teresa Quintela de Brito a considerar que “houve falha da IGAI”, que também apresenta  indícios do crime de prevaricação e denegação de justiça.

Cristina Gatões saiu da direção do SEF a 9 de dezembro, quando se soube que o DFL enviara a 19 de março à PJ um e-mail de resposta a um pedido desta para identificação dos funcionários (do SEF e vigilantes Prestibel) que tinham estado ao serviço de 10 a 12 e março, os 3 dias em que Ihor esteve sob custódia, e preservação das imagens de videovigilância do centro de detenção. Tal revelação desdiz a sua alegação de que só soubera da suspeita de crime pela comunicação social, a 29 de março, quando a TV o noticiou. Contudo, na inquirição pela IGAI a ex-diretora nacional assegura que não viu o e-mail e que Henriques não a informou de que a PJ estava a investigar.

Henriques recebeu a 16 de março, no aeroporto de Lisboa, a visita da brigada de homicídios da PJ, que fora alertada a 14 de março, por denúncia anónima e pelo médico que fez a autópsia, para a existência de uma morte violenta no SEF. Inspetores do SEF consideram que Henriques tinha o dever de comunicar, “por escrito e por voz”, à direção nacional a existência da investigação. E não o fez, mas também não guardou segredo, pois, nesse dia, disse a Ataíde que fora ao aeroporto a mando de Gatões visionar as imagens de videovigilância, que a PJ estava a investigar. Este esteve, após o visionamento das imagens, no dia 17, com a diretora nacional e com o subdiretor José Barão. Assim, a obrigação de Henriques avisar a direção nacional é extensiva a Ataíde.

Porém, na inquirição no âmbito do processo disciplinar movido a Ataíde por ter visto as imagens e ter dito que nada indiciavam de maus tratos, a IGAI não perguntou se lhes comunicou tal informação, o que soubera por Henriques, ou se estes mostraram ter conhecimento dela.

Além destes, havia pelo menos mais duas pessoas na alta hierarquia do SEF que sabiam da investigação da PJ tendo, por isso, a obrigação de comunicar o facto à diretora nacional: Amílcar Vicente, subdiretor de Fronteiras de Lisboa, um dos destinatários de dois e-mails, o que Gatões diz não ter visto, na tarde de 19 de março, e outro, na manhã desse dia, enviado para ele e para o DFL sobre essa mesma investigação; e o inspetor coordenador Paulo Torres, diretor regional de Lisboa e Vale do Tejo do SEF, que sabia da investigação e, dando como verdadeiro o que Gatões sustenta, nada lhe disse sobre ela.

Ora, a 17 de março, a Direção Regional de Lisboa do SEF recebeu um e-mail dum inspetor da Brigada de Homicídios da PJ a solicitar a lista dos funcionários do SEF que estiveram em serviço no aeroporto de 10 a 12 de março e perguntar sobre a existência de videovigilância no centro de detenção. A 19 de março, é enviado da PJ novo e-mail como o mesmo pedido, mas agora dirigido ao diretor regional e assinado pelo coordenador de investigação criminal da PJ.

Quase de imediato, Paulo Torres envia um e-mail para a direção de Fronteiras de Lisboa contendo em apenso as listas de funcionários ao serviço naqueles 3 dias; e, à tarde, Henriques faz forward desse email, que contém também o pedido da PJ, para esta polícia, com conhecimento para Gatões, e para Ataíde e Amílcar Vicente, elencando a informação enviada e assegurando que as imagens de videovigilância estão guardadas e ao seu dispor.

A 26 de março (7 dias depois)a PJ, que já tinha chamado para depor os enfermeiros da Cruz Vermelha e do INEM que socorreram Ihor, o médico que certificou o óbito e os seguranças da Prestibel, começou a ouvir os inspetores do SEF que contactaram com Ihor.

Assim, é claro que desde o início da investigação da PJ havia pelo menos 4 altos funcionários do SEF, 3 dos quais na dependência direta da direção nacional, que sabiam que a morte de Ihor era tratada como homicídio. E, antes de a notícia chegar aos media, já havia inquirições de inspetores e de pessoal ao serviço do SEF – os seguranças da Prestibel – sendo pouco provável que o que Gatões apelida no depoimento à IGAI de “rádio alcatifa” não fizesse circular tal informação. 

O que se passou é tão confuso, imbricado e eivado do “sei, não sei” que, segundo o penalista Paulo Saragoça da Matta, “não é fácil pensar em enquadramentos criminais para elas”. Não obstante, defende que, “antes de mais, cabia assentar que concretos factos ocorreram e, a partir daí, enquadrar juridicamente os comportamentos nos tipos”, pois, dadas as aparentes “mentiras” de vários dos atores, o mínimo a dizer “é que haverá possíveis abusos de poder, prevaricação, denegação de justiça e eventuais acobertamentos dos factos já julgados”, o que agora “constituiria cumplicidade nesses mesmos factos”. Gatões é só a ponta da corda! Que diz a isto a oposição?

É uma investigação que ficou a meio. Condenaram-se alguns, crucificou-se na praça o Ministro como se, para lá da inabilidade política, tivesse no cartório culpas de ordem criminal por omissão e de fora ficaram outros. Mais responsabilidades, disciplinares, criminais e civis não se investigam no caso. Porque será? Todavia, o Estado, por cálculo da Provedora de Justiça já indemnizou os herdeiros de Ihor em mais de 700 mil euros (que bem a merecem). O povo é soberano, mas paga!  

2022.03.12 – Louro de Carvalho

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