Nada justifica uma guerra numa Europa
civilizada que saiba dialogar e negociar, corrigindo erros, refreando ambições.
Esta Europa aprendeu a usar a diplomacia para prevenir, evitar e dirimir mal
entendidos e conflitos.
Não obstante, a Federação Russa
lançou, a 24 de fevereiro, uma ofensiva militar na Ucrânia que já causou, entre
a população civil, pelo menos 1.081 mortos, incluindo 93 crianças e 1.707
feridos, entre os quais 120 menores, e provocou a fuga de mais 10 milhões de
pessoas, 3,7 milhões das quais para fora do país. Isto sem fazer conta aos militares
feridos, estropiados e mortos de ambos os lados e a toda a onda de destruição. Segundo
as Nações Unidas, cerca de 13 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária
na Ucrânia.
A invasão
russa, que já dura há muito tempo e cujo fim ainda não se divisa, foi condenada
pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de
armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a
Moscovo.
***
Ora, em vez do reforço da diplomacia
e do esforço para um desanuviamento, o Presidente dos EUA deixa um aviso de guerra
como se fosse senhor absoluto da NATO e lança atoardas que, pela sua
inoportunidade e até indecência, só contribuem para deitar mais achas na
fogueira.
As asserções de que Putin “não pode
continuar no poder” e que é “um carniceiro” são de todo inconvenientes e um
Chefe de Estado nunca as deve dizer dum seu homólogo. E vir dizer a Casa Branca,
mais tarde, que não quis dizer que Putin não deve continuar no poder russo, mas
apenas que Putin não pode continuar a exercer o poder sobre os países vizinhos
e a região, é pior a emenda que o soneto. É apenas tentar lavar a face pela
democracia, já que é ao povo de um país que incumbe a escolha de quem o governe
e não a estrangeiros. Todavia, todos sabemos como o Ocidente – em particular os
EUA – sabe influenciar decisivamente a substituição de líderes em países estrangeiros
sob a capa da governança demoliberal.
Avisar que nenhum “centímetro” de território da NATO pode ser atacado, porque haverá
obrigatoriamente resposta, pode significar que a NATO, que nunca esteve tão
unida como agora, quererá mesmo a guerra e não a paz ou a estrita defesa do
Ocidente, não estando disposta a ter em conta que foi com a barriga para a
frente contra os acordos dos inícios da década de 90 de que a NATO não se estenderia
para lá da Alemanha, ignorando os avisos de Henry Kissinger e Mário Soares, e a
reconhecer que não tem sido apenas Moscovo quem rompeu pactos estabelecidos.
Mobilizar o
Ocidente para uma guerra para abater as ambições de Putin sem ter em conta os
danos que isso acarretará para todos os povos é não aprender com os efeitos que
as sanções económicas geram nos países que os sofrem e nos que os infligem, bem
como não ponderar a monstruosidade da guerra.
***
Num dos países da NATO mais a leste, a
Polónia, neste 26 de março, 3.º dia pelos países da Europa que está a visitar, Joe
Biden aproveitou para deixar avisos à Rússia e para assegurar o seu apoio aos
ucranianos. O líder dos EUA declarou este sábado, em Varsóvia, que Vladimir
Putin já não devia ser o líder russo.
Esta foi a primeira vez que o
presidente norte-americano abordou uma possível mudança de regime desde o
início do conflito, espelhando mudança significativa na abordagem a Moscovo.
Entretanto, a Casa Branca reagiu, dizendo que “o argumento do presidente
é o de que Putin não pode ser autorizado a exercer poder sobre os seus vizinhos
ou sobre a região”, garantindo que Biden “não estava a discutir o poder de Putin na Rússia,
ou a mudança de regime”.
O Kremlin reagira às declarações de Biden
pelo porta-voz Dmitry Peskov, assegurar que “não cabe ao senhor Biden” decidir
uma eventual mudança no poder no país.
No início do mês, o Secretário de
Estado Antony Blinken garantia que os EUA não consideravam que se trate de mudança
de regime. O povo russo é que tem de decidir quem os quer a liderar.
Agora Biden deixou um aviso ao regime
russo para não se atrever a “entrar um centímetro em territórios da NATO”, pois os EUA estão empenhados
em cumprir as obrigações de proteção coletiva estabelecidas na carta da NATO “com
toda a força do poder coletivo” americano.
Deixando claro que o conflito na Ucrânia não exige que os EUA se envolvam diretamente, pois a
Ucrânia não integra a NATO, disse que as forças americanas não
estão na Europa para entrar em conflito com as forças russas, mas para defender
os aliados da NATO.
No início do seu discurso, citou o
Papa São João Paulo II, quando este falou na União Soviética, em 1979, pedindo
que “não tenhais medo”. E explicitou:
“Emergimos
de novo na grande batalha pela liberdade, uma batalha entre democracia e
autocracia, entre liberdade e repressão. Nesta batalha, precisamos de ser
clarividentes. Esta batalha também
não será ganha em dias ou meses. Precisamos de nos motivar para a longa luta
que temos pela frente.”.
Quer dizer que Biden falou em nome
dos EUA com legitimidade. Duvido de que tenha falado, como o fez em nome da
NATO com legitimidade. Aí a palavra caberia ao secretário-geral da NATO. É mau
confundir-se NATO e EUA. E a citação de João Paulo II é oportunista e descontextualizada.
O apelo ao não medo é muito mais abrangente que a luta pela queda do comunismo soviético
e de arredores. É evangélico, de futuro e aliado da esperança, não de agoiro.
No entanto, o Presidente dos EUA deixou
avisos a Putin e alertou o Ocidente. Ao primeiro avisou que, se pisar
território da NATO, terá a consequente resposta; ao segundo advertiu que a luta
pela liberdade levaria tempo, como quando aconteceu a queda da União Soviética,
pois “um ditador que quer reconstruir um império que esmaga o amor pela
liberdade do seu povo nunca poderá vencer” (uma das últimas asserções do discurso de Biden em Varsóvia).
Depois
de ter chamado “carniceiro” a Putin, o líder dos EUA classificou-o como
autocrata que “está a ameaçar o Estado de Direito, a liberdade e a verdade”. Com
efeito, “hoje a Rússia estrangulou a democracia e procurou fazê-lo não apenas
no seu país, mas no estrangeiro”. Mas, dirigindo-se ao povo russo, frisou que
não são eles o “inimigo”, mas Putin.
Duma ambivalência
– a NATO não intervém porque a Ucrânia não é seu membro, mas estão por ali as
forças da NATO para defender um aliado (Intervém ou não intervém?) – passa a porfiar na suposta luta pela liberdade e
democracia e alerta que não se conseguiu isso com a guerra fria nem mesmo com a
queda da União Soviética. E, dizendo que “esta batalha não se travou em dias ou
meses”, considerou que “temos de estar preparados para enfrentar um combate que
pode durar”, alertou, pedindo união e solidariedade para com o povo ucraniano. E,
algumas horas após ataque a um depósito de combustível em Lviv, uma das grandes
cidades ucranianas que está situada perto das fronteiras com a Polónia, disse
que tal união é, sobretudo, no seio da NATO, pelo que “não pode haver nenhum
ataque a uma nação membro da NATO”.
Aliás,
sobre a NATO e a postura dos EUA, Biden disse que “nunca pensaram em atacar e
entrar em guerra”, frisando que a aliança é uma organização de defesa e não de
ataque.
Houve
uma “mensagem clara” que quis deixar para “a NATO, os G7, a União Europeia”:
“todos os amantes da liberdade devem comprometer-se neste combate, estar unidos
hoje, amanhã e no futuro”, pois “esta guerra já é um desastre estratégico para
os russos”, porém, “a Ucrânia nunca poderá ser conquistada pela Rússia”.
***
Reiterando que nada justifica a
guerra e a insistência na mesma, é de estar pela inaceitabilidade de uma pré-declaração
de guerra pelo Sr. Biden, não sei se em nome dos EUA, se da NATO. E, se isso
vier a acontecer, é só um passo mais para a 3.ª guerra mundial de efeitos imprevisíveis.
O falhanço da diplomacia, a desistência da fraternidade.
Tem razão Dmitry Peskov ao considerar
que os insultos
de Biden a Putin reduzem possibilidade de melhorar as relações entre
Washington e Moscovo. Já não terá autoridade moral para dizer que “um líder deve manter a calma”, pois, sendo
verdade, também líder da Rússia não a tem mostrado ou então é muito hipócrita,
sentindo uma coisa e mandando fazer outra.
Porém, Não
foi a primeira vez que Biden usou palavras duras em relação a Putin,
considerado o principal responsável pela invasão da Ucrânia, que já causou
milhares de mortes. Nos últimos dias, o presidente norte-americano designou-o,
por duas vezes, como criminoso de guerra. E Peskov afirmou:
“Afinal, (Biden) é o homem que uma vez exigiu, ao falar na televisão
do seu país, que se bombardeasse a Jugoslávia. Exatamente, bombardeamentos à
Jugoslávia. Exigiu que se matassem pessoas.”.
Ora,
o momento presente, tão causticado por destruição, morte, estropiamentos,
deslocações, desabrigados, impõe um valente “mea culpa” multilateral, com cessar-fogo imediato, desanuviamento, negociação,
reflexão, levantamento de sanções e, para os crentes, prece também.
2022.03.26 – Louro de Carvalho
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