quarta-feira, 16 de março de 2022

Transmissão intergeracional é caraterística determinante da pobreza

 

Como consta do comunicado do Conselho de Ministros deste dia 16 de março, o Governo aprovou a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, instrumento de política pública que visa concretizar a abordagem multidimensional e transversal de articulação das políticas públicas para a erradicação da pobreza através de um conjunto de ações coerentes e articuladas

O documento, sujeito a consulta pública no mês de outubro (até ao dia 25), é condição habilitante do Portugal 2030 e uma das reformas inscritas no PRR para contribuir para a coerência e eficácia dos investimentos inscritos nestes dois programas. Enquadrada no desafio estratégico de redução das desigualdades, define 6 eixos prioritários de intervenção, em articulação com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais e com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da Agenda 2030. Tais eixos estão organizados nas seguintes dimensões: reduzir a pobreza nas crianças e jovens e nas suas famílias; promover a integração plena dos jovens adultos na sociedade e a redução sistémica do seu risco de pobreza; potenciar o emprego e a qualificação como fatores de eliminação da pobreza; reforçar as políticas públicas de inclusão social, promover e melhorar a integração societal e a proteção social de pessoas e grupos mais desfavorecidos; assegurar a coesão territorial e o desenvolvimento local; e fazer do combate à pobreza um desígnio nacional.

A Estratégia tem entre os seus objetivos a redução da taxa de pobreza monetária para 10% da população, retirando 660 mil pessoas da situação de pobreza, e a redução para metade a taxa de pobreza nas crianças, retirando 170 mil crianças dessa condição.

Foi também aprovado o decreto-lei que altera o regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social, o qual, concretizando uma medida Simplex 2021, cujo objetivo é tornar mais célere o processo de instalação e de funcionamento das várias respostas sociais, pela eliminação de constrangimentos detetados, melhoria na articulação dos diferentes intervenientes e agilização e desmaterialização dos procedimentos legais. Visando acelerar o processo de entrada em funcionamento das respostas sociais e a previsibilidade da decisão administrativa, o que alavancará novas respostas e as medidas previstas no PRR para a área social, é dos contributos legais para a concretização da diminuição e erradicação da pobreza.

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A 8.ª e última conferência do ciclo “Sociedade no Século XXI: Desafios Sociais, Geracionais, Políticos e Económicos”, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, sob o título “Desigualdade e pobreza no século XXI” e proferida por Carlos Farinha Rodrigues, professor de Economia no ISEG, conclui que a transmissão intergeracional é caraterística determinante da pobreza em Portugal.

Como refere o palestrante, o estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos “Faces da pobreza em Portugal” mostra que grande parte das pessoas em situação de pobreza cresceu num contexto continuado de privação, condicionando as suas oportunidades de vida, nomeadamente pela antecipação da sua saída da escola e a entrada precoce no mercado de trabalho, assim como pelo ingresso em empregos pouco qualificados. Muitas famílias convivem com a pobreza há várias ​​​gerações. Estudo recente da OCDE mostra que a baixa mobilidade social no país implica que uma família com baixos rendimentos precisa de 125 anos (5 gerações) para os seus descendentes atingirem um nível de salário médio. Assim, o elevador social funciona com grandes limitações, que se agravaram com os efeitos socioeconómicos da pandemia. O afastamento das crianças e jovens do sistema de ensino por largos períodos de tempo (em 2020 e 2021) terá efeitos significativos na igualdade de oportunidades que, tarde ou cedo, darão no agravamento das desigualdades económicas e num potenciar acrescido de fatores de pobreza e exclusão social.

E a grande questão é que é possível ter trabalho e salário fixo, mas ser pobre. De facto, têm papel fundamental no fomento e manutenção das condições de pobreza baixos salários, desigualdade salarial e generalização do trabalho precário. Segundo o INE, em 2019, encontravam-se em situação de pobreza 444 milhares de trabalhadores (taxa de working poor: 9,6%). Os trabalhadores pobres representavam 33.6% da população pobre com 18 ou mais anos. Em 2020 a proporção de working poors subiu para 11,2%. Os jovens, em transição do sistema educativo para o mercado de trabalho são afetados por formas desreguladas de funcionamento do mercado de trabalho. E a relação entre participação no mercado de trabalho e situação de pobreza não depende só dos níveis salariais, mas também da dimensão e composição da família do trabalhador. Por exemplo, em 2020 um trabalhador a viver sozinho e a ganhar o salário mínimo estava acima do limiar de pobreza. Porém, num casal com dois filhos em que só um dos elementos auferisse o salário mínimo, os rendimentos do trabalho estão cerca de 30% abaixo do limiar de pobreza: são pobres.

Os últimos dados disponíveis para comparar a desigualdade entre os vários países europeus remontam a 2019 não refletindo o agravamento das desigualdades provocadas pela pandemia. Em 2019, Portugal era o 8.º país mais desigual da UE com um coeficiente de Gini de 31,2%, ou seja, 0,2 pontos percentuais acima da média dos 27 países da UE. A descida da desigualdade no país entre 2014 e 2019 justifica a aproximação dos níveis de desigualdade medida pelo índice de Gini em Portugal com o valor médio da UE. Assim, em 2014, o nível de desigualdade em Portugal era 3,2 pontos percentuais (pp) superior à média da UE. Os efeitos da crise pandémica foram muito desiguais e agravaram os níveis de desigualdade. Em 2020, o índice de Gini assumiu o valor de 33%, agravando-se 1.8 pontos percentuais. São múltiplas e complexas as razões que explicam que Açores e Madeira sejam as regiões do país com maior incidência da pobreza: os custos da insularidade, as taxas de participação no mercado de trabalho, os baixos níveis médios de rendimento (comparados com o continente) têm papel importante na incidência acrescida da pobreza nessas regiões. E é nestas regiões que se verificam os maiores níveis de desigualdade. Isto quer dizer que a desigualdade e a pobreza são as duas faces da mesma moeda. E assim não é possível combater a pobreza sem simultaneamente reduzir as desigualdades.

Para tanto, há que incrementar o aumento dos níveis de ensino e das qualificações, pois, segundo o palestrante, “constitui o instrumento mais eficiente para, de forma estrutural, reduzir a pobreza no nosso país”. Com efeito, em 2019, a incidência da pobreza entre os indivíduos com 18 e mais anos que possuíam o 1º ciclo do Ensino Básico ou menos era de 44%. Tal incidência reduzia-se para 12% para quem tinha o ensino secundário e para 5% para quem tinha um curso superior. Apesar disso, nos anos mais recentes, desvaloriza-se a eficácia da educação na redução da pobreza, desvalorização sentida sobretudo nos jovens, que na transição do sistema de ensino para o mercado de trabalho enfrentam dificuldades acrescidas – precariedade de trabalho, salários não congruentes com as qualificações, etc. – o que é deveras preocupante. Ora, a aposta na educação dos jovens e na requalificação dos adultos é condição necessária para a redução da pobreza, mas não é condição suficiente, pois, se não for assegurado o verdadeiro potencial que uma formação acrescida representa, de modo que se transforme em valor acrescentado para a economia e em valorização do fator trabalho os seus efeitos na redução da pobreza serão mitigados.

Nas últimas décadas tem havido flutuações acentuadas na forma como os governos priorizam a o combate à pobreza na agenda política. Se às vezes foi possível identificar o aparecimento de novas políticas de combate à pobreza, como o rendimento social de inserção, o complemento solidário para idosos, etc., noutros momentos assistiu-se ao retorno a políticas mais assistencialistas de eficácia reduzida no combate à pobreza. Mas regra geral a redução da desigualdade, pobreza e exclusão social foi sempre algo de subalterno nas políticas públicas e na política económica. Agora, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, acabada de aprovar, pode constituir um elemento de coerência das diferentes políticas públicas para priorizar e implementar a efetiva política de redução da pobreza, mas tem de ser vista como ponto de partida e nunca como ponto de chegada. O combate pela redução e erradicação da pobreza só ganha pleno sentido se for, combate por uma economia ao serviço das pessoas, que preserve a casa comum que habitamos e onde novas gerações habitarão no futuro e que assegure um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo.

Também a nível europeu os avanços e retrocessos no combate à pobreza têm estado associados à prioridade que as políticas comunitárias atribuem a tal objetivo. Se em determinados momentos foram implementados mecanismos e recursos para a efetiva redução da pobreza e construção de uma Europa mais social (Planos Nacionais para o Combate à Pobreza, Planos Nacionais para a Inclusão, etc.), nos anos mais recentes predominaram as políticas que desvalorizam este tipo de preocupações. O plano de ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, aprovado na presidência portuguesa da UE, pode ser elemento estruturante para recolocar as questões sociais na agenda. Mas a existência dum quadro mais favorável a nível europeu não basta para o sucesso da redução da pobreza nos países da Europa. Isso postula que cada país faça da redução da pobreza um desígnio nacional e instrumento de redução das injustiças sociais, de fortalecimento da coesão social e de fortalecimento da economia. Se não for assegurado o potencial que a formação acrescida representa, os efeitos na redução da pobreza serão necessariamente mitigados.

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“O número de pessoas em risco de pobreza aumentou de 1,7 milhões em 2019 para 1,9 milhões em 2020” e com subidas maiores entre mulheres e idosos, mas também nas famílias, segundo o relatório “Portugal, Balanço Social 2021”, elaborado pela Nova School of Business & Economics, uma das 5 faculdades da Universidade Nova de Lisboa, em resultado de parceria entre a faculdade, a Fundação “La Caixa” e o BPI que se juntaram em 2019 para lançar a Iniciativa para a Equidade Social, com vista a impulsionar o setor social em Portugal.

De acordo com o relatório, a que já aludi em janeiro e que tem por base os dados preliminares do ICOR (Inquérito aos Rendimentos e Condições de Vida) que o INE disponibilizou em dezembro de 2021, a taxa de risco de pobreza aumentou 2 pp entre 2019 e 2020.

Os dados do ICOR têm por base a situação financeira e profissional das famílias em 2020 e permitem “descrever sumariamente o impacto da pandemia nas condições de vida das famílias”, desde logo que a taxa de risco de pobreza após transferências sociais passou de 16,2% em 2019 para 18,4% em 2020. Esta taxa de risco de pobreza aumentou mais nas mulheres (2,5 pp) e nas pessoas com mais de 65 anos (2,6 pp), como subiu entre todos os tipos de famílias, “especialmente nas famílias com crianças” (2,7 pp). Nas famílias, o maior aumento registou-se nas monoparentais, com o crescimento de 4,7 pp da pobreza para 30,2% durante o ano de 2020. Já nas pessoas desempregadas, a taxa de risco de pobreza atingiu 46,5%, isto é, mais 5,8 pp que em 2019.

Em 2019, a taxa de risco de pobreza diminuiu 1 pp, para 16,2%, relativamente a 2018, sendo o 5.º ano consecutivo em que este indicador diminui. E lê-se no relatório que “a taxa de risco de pobreza antes de transferências sociais também diminuiu face a 2018, atingindo 42,4%” e, como em 2018, a taxa de incidência de pobreza é maior entre os desempregados, famílias monoparentais e indivíduos menos escolarizados. Assim, a análise permite ficar a saber que nesse ano a pobreza era mais prevalente em pessoas desempregadas (33,3%), famílias monoparentais (25,5%) e pessoas com níveis de escolaridade mais baixos (21,9%), sendo maior nas mulheres que nos homens a taxa de risco de pobreza (16,7% contra 15,6%).

Para as crianças (0 aos 17 anos) e as pessoas mais velhas (mais de 65 anos) a taxa de risco de pobreza é, em 2019, superior à média nacional, com 19,1% e 17,5%, respetivamente.

No atinente aos idosos, a taxa de risco de pobreza de 17,5% é 2,3 pp acima da média nacional e o valor é superior ao de 2018, quando a taxa de pobreza se ficou nos 17,3%. Isto é, em 2019, eram pobres 381 mil idosos. Como é expectável, o pagamento de pensões reduz a taxa de risco de pobreza deste segmento da população: para 20%, em 2019. O efeito das restantes transferências é menor, mas relevante: entre 2017 e 2019, a taxa de risco de pobreza foi cerca de 1,15 vezes maior que na ausência destas transferências.

Relativamente à percentagem de pessoas em risco de pobreza de forma persistente, ou seja, no ano em análise e na maioria dos três anos anteriores, a taxa é de 9,8%, o que quer dizer que “60% das pessoas pobres em 2020 estavam numa situação de pobreza persistente”, sendo que destas, 6% nunca saíram da situação de pobreza no período de 4 anos, entre 2016 e 2019.

Um dos determinantes da pobreza é a relação com o mercado de trabalho, de modo que uma em cada 3 pessoas desempregadas é pobre e, em alguns casos, não basta trabalhar para fugir à pobreza, pois uma em 10 pessoas empregadas é pobre. Efetivamente, “40,6% dos indivíduos pobres vivem em agregados onde se trabalha a tempo inteiro”.

Apesar das melhorias verificadas, as famílias pobres é que têm piores condições habitacionais, saúde pior (autoavaliada) e mais dificuldade em aceder a cuidados de saúde.

No atinente à desigualdade na distribuição dos rendimentos, sabe-se que em 2018, os 25% mais ricos detinham 42% do rendimento do país, valor que em 2019 sobe para quase 46%.

Mais de 330 mil crianças eram pobres em 2019, revela o relatório, segundo o qual o risco de pobreza aumentou para 19,1%, o que quer dizer que quase duas em cada 10 viviam na pobreza. As crianças [0 aos 17 anos] são um dos grupos da população mais vulnerável a situações de pobreza e exclusão social. A taxa de risco de pobreza em crianças aumentou entre 2018 e 2019 (de 18,5% para 19,1%). Isto significa que há, em 2019, mais de 330 mil menores pobres em Portugal. Por outro lado, a pobreza afetava 25,5% das famílias monoparentais, ou seja, cerca de 1/4 de todos os agregados familiares, tendo esse valor diminuído 8,4 pp em relação a 2018, apesar de estas famílias continuarem a ser o tipo de agregado com maior taxa de risco de pobreza. No atinente a carências habitacionais e alimentares, e já em relação a 2020, “mais de uma em cada 4 crianças vivia em casas com telhado, paredes, janelas e chão permeáveis à água ou apodrecidos”, enquanto 11% das habitações não tinha aquecimento adequado. E os investigadores referem:

A incapacidade de comer, pelo menos de dois em dois dias, uma refeição de carne, peixe (ou equivalente vegetariano), manteve-se estável nos últimos três anos, com uma ligeira melhoria em 2020 (de 1,9% para 1,8%).”.

E, quanto à escolaridade, sobressai o seu papel na mitigação da transmissão intergeracional da pobreza, salientando que nos anos anteriores à escolaridade obrigatória, o rendimento das famílias está relacionado com a frequência da creche e da educação pré-escolar e revelando que quase 7 em 10 crianças pobres não tem acesso a creche e, entre os 4 e os 7 anos, as mais pobres são as que menos frequentam a educação pré-escolar. Na escolaridade obrigatória, são as crianças com piores resultados que as de meios socioeconómicos menos desfavorecidos, no Estudo Diagnóstico para os alunos do 3.º ano, do IAVE em janeiro de 2021, para apurar os atrasos na aquisição de competências em virtude da crise pandémica.

Três crianças em 10 estavam em situação de pobreza em pelo menos um ano do tempo em análise (2016 e 2019), valor que baixa a 10,5% considerando um ano, embora 8,9% das crianças tenham sido pobres nos 4 anos (em 2019 a taxa de risco de pobreza era de 9,8%, mas o valor em crianças chegava 30,3%).

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Tem o Governo e o país gigantesco trabalho pela frente. Apesar da guerra, é preciso cumprir!

2022.03.16 – Louro de Carvalho

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