Francisco presidiu à celebração penitencial na Basílica de São Pedro, no
final da qual recitou a oração de Consagração da humanidade a Nossa Senhora, em
particular a Rússia e a Ucrânia, no que estiveram unidas a si as Igrejas no mundo.
À mesma hora que em Roma, decorreu no Santuário de Fátima idêntica
cerimónia, presidida pelo cardeal polaco Konrad Krajeweski, enviado do Papa.
E, apesar de a oração só ter sido divulgada no dia 23, o convite, do dia 21,
tinha já sido dirigido com antecedência a todos os bispos do mundo católico, através
de carta que incluía o texto da predita oração. Nos Estados Unidos da América,
por exemplo, o episcopado, que não costuma ser entusiasta das iniciativas do
atual Papa, mobilizou-se para a consagração, estando registadas até ao dia 23 cerimónias
de consagração em perto da centena de dioceses.
Não é por acaso que alguns advertiam para a tentação de o ato papal
poder vir a ser apropriado por adeptos de ideologias fortemente conservadoras e
excessivamente pró-ocidentais, o que não é legítimo e contraria o desígnio de
paz e fraternidade assumido e preconizado pelo Pontífice.
O texto deve ser rezado, hoje e partir de hoje, na perspetiva em que o
Papa o concebeu e o pronunciou: da parte duma Igreja que, em hora de
tribulação, recorre à Mãe, que nos conhece e ama e, sempre presente, nos guia
sempre para Jesus.
Importa que reconheçamos os erros e desvios pessoais e coletivos nos
âmbitos indicados pelo Papa (apoio à vida, fraternidade, cuidado da casa comum, reconhecimento
do outro, diálogo, paz…) e peçamos o necessário e disponível perdão; que percebamos e
acolhamos o papel materno de Maria, que apressou, em Caná, a hora de Jesus,
para que Ele socorresse uma jovem família em necessidade (“não têm vinho); e que sintamos a
necessidade urgente da sua intervenção materna.
Depois, é
urgente que cesse a guerra e se passe à reconciliação e ao perdão, rumo à paz e
à fraternidade. Por isso, temos de nos colocar junto à cruz como a Virgem e
acolhê-La como a Mãe dos discípulos, confiando-nos a Ela e consagrando-nos a
Cristo por intermédio da Mãe, com o abraço fraterno ao povo ucraniano e ao povo russo, que A veneram com amor,
recorrem a Ela, enquanto o coração da Mãe “palpita
por eles e por todos os povos ceifados pela guerra, a fome, a injustiça e a
miséria”. Mas o Papa não descura a consagração a Maria do futuro da família
humana inteira, das necessidades e os anseios dos povos, das angústias e as
esperanças do mundo.
E é forçoso
rezar: “Tecestes a humanidade para Jesus,
fazei de nós artesãos de comunhão. Caminhastes pelas nossas estradas, guiai-nos
pelas sendas da paz.”.
A
ótica de Francisco está desde logo espelhada na carta de 21 de março a cada
bispo do mundo inteiro: a guerra na Ucrânia, há mais de um mês “está a causar
sofrimentos cada dia mais terríveis àquela atormentada população, ameaçando
mesmo a paz mundial”, pelo que “a Igreja é fortemente chamada a interceder
junto do Príncipe da Paz e a fazer-se próxima de quantos pagam na própria pele
as consequências do conflito”. Obviamente o Papa sabe que sofre o povo invadido
e sofre o povo invasor, que também não quer a guerra, que a faz por imposição dos
decisores e sofre as consequências. Por outro lado, o Pontífice quer responder aos
numerosos pedidos do Povo de Deus, pelo que pretendeu “realizar um Ato solene de Consagração da humanidade, particularmente da Rússia e da Ucrânia,
ao Imaculado Coração de Maria”, o qual postula uma predisposição para invocar a
paz, renovados pelo perdão de Deus. Assim o Ato aconteceu na Celebração da
Penitência e é “um gesto da Igreja universal, que neste momento dramático leva
a Deus, através da Mãe d’Ele e nossa, o grito de dor de quantos sofrem e
imploram o fim da violência, e confia o futuro da humanidade à Rainha da Paz”.
Na sua homilia, o Papa, comentando
o excerto do Evangelho se Lucas (Lc 1,26-38), recorda que o Anjo diz a Maria
que Se alegre porque o Senhor está com Ela. Também o Senhor está com cada um
que Lhe dá a alegria de se levantar pelo arrependimento, sabendo que no centro
não estão os pecados, mas o Senhor que perdoa com alegria e cura com a “ternura materna” do Espírito
Santo.
O Anjo também
pede a Maria que não tenha medo. E é a recomendação que faz a cada um, pois “cada
vez que a vida se abre para Deus, o medo não pode mais manter-nos reféns”. Se
os pecados nos assustam e o passado nos preocupa, não podemos perder a esperança,
porque Deus é muito maior que os nossos pecados; e só pede que Lhe dêmos os
nossos pecados.
A Virgem
Maria lançou a sua perturbação em Deus, pois o anúncio do Anjo deu-lhe sérias
razões de temor. Propôs-Lhe algo impensável, para lá das suas forças, que não
poderia administrar sozinha: haveria muitas dificuldades, problemas com a lei mosaica,
José e o povo do seu país. Porém, Maria não levanta objeções: apega-Se ao
Senhor, como também devemos fazer, em vez de nos apegarmos às nossas certezas. E
Ele convida-nos a ir à fonte, a Ele mesmo, que é “o remédio radical contra o
medo e o mal de viver”.
Ora, perante “a
guerra brutal, que se abateu sobre muitos e fez todos sofrer, causa medo e
consternação em cada um”, precisamos de que nos digam que não temamos. Contudo,
vinca o Papa que “não basta a segurança humana: é necessária a presença de
Deus, a certeza do perdão divino, o único que anula o mal, desfaz o rancor,
devolve a paz ao coração”.
Por fim, o
Anjo diz a Nossa Senhora: “O Espírito
Santo virá sobre ti”. E Francisco desenvolve:
“É
assim que Deus intervém na história: dando o seu próprio Espírito. Porque
no que importa a nossa força não é suficiente. Sós nós somos incapazes de
resolver as contradições da história ou mesmo as do nosso coração. Precisamos
da força sábia e mansa de Deus, que é o Espírito Santo. Precisamos do
Espírito de amor, que dissolve o ódio, extingue o ressentimento, extingue a
ganância, desperta-nos da indiferença. Aquele Espírito que nos dá
harmonia, porque Ele é harmonia.”
E hoje,
renovados pelo perdão, batemos no Coração da Mãe. Em união com os Bispos e
os fiéis do mundo, desejamos solenemente levar ao Imaculado Coração de Maria
tudo o que vivemos: “renovar-lhe a
consagração da Igreja e de toda a humanidade e consagrar-lhe, num maneira
particular, o povo ucraniano e o povo russo, que com filial afeição a veneram
como Mãe” – não “uma fórmula
mágica”, mas “um ato espiritual”, “o gesto da entrega plena dos filhos” que, na
tribulação desta guerra cruel e sem sentido que ameaça o mundo, recorrem à Mãe.
Dos seus lábios
saiu a pronúncia mais bela e eficaz: “Faça-se
em mim segundo a tua palavra”. Não é uma aceitação passiva ou
resignada, mas “o desejo vivo de aderir a Deus, que tem projetos de paz, e não
de infortúnio”; “a participação mais próxima em seu plano de paz mundial”.
Consagramo-nos,
pois, a Maria para entrarmos neste plano, colocando-nos à inteira disposição
dos planos de Deus, confiando que Maria “leve pela mão o nosso caminho”, “o
guie pelos caminhos íngremes e cansativos da fraternidade e do diálogo, o guie
pelo caminho da paz”.
***
Aqui fica o
texto pronunciado pelo Papa, que bem pode servir de oração pessoal ou grupal,
devendo ser assumido na perspetiva do Papa, uma perspetiva da Igreja samaritana,
num mundo retratado como atingido até à medula pelas consequências da guerra –
morte, destruição, fome, esfacelamento, deslocações, miséria, inadaptação, medo:
ATO DE CONSAGRAÇÃO AO IMACULADO CORAÇÃO DE MARIA
Ó Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe,
recorremos a Vós nesta hora de tribulação. Vós sois Mãe, amais-nos e conheceis-nos:
de quanto temos no coração, nada Vos é oculto. Mãe de misericórdia, muitas
vezes experimentamos a vossa ternura providente, a vossa presença que faz
voltar a paz, porque sempre nos guiais para Jesus, Príncipe da paz.
Mas perdemos o caminho da paz. Esquecemos a lição das
tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras
mundiais. Descuidamos os compromissos assumidos como Comunidade das Nações e
estamos a atraiçoar os sonhos de paz dos povos e as esperanças dos jovens. Adoecemos
de ganância, fechamo-nos em interesses nacionalistas, deixamo-nos ressequir
pela indiferença e paralisar pelo egoísmo. Preferimos ignorar Deus, conviver
com as nossas falsidades, alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular
armas, esquecendo-nos de que somos guardiões do nosso próximo e da própria casa
comum. Dilaceramos com a guerra o jardim da Terra, ferimos com o pecado o
coração do nosso Pai, que nos quer irmãos e irmãs. Tornamo-nos indiferentes a
todos e a tudo, exceto a nós mesmos. E, com vergonha, dizemos: perdoai-nos,
Senhor!
Na miséria do pecado, das nossas fadigas e fragilidades, no
mistério de iniquidade do mal e da guerra, Vós, Mãe Santa, lembrai-nos que Deus
não nos abandona, mas continua a olhar-nos com amor, desejoso de nos perdoar e levantar
novamente. Foi Ele que Vos deu a nós e colocou no vosso Imaculado Coração um
refúgio para a Igreja e para a humanidade. Por bondade divina, estais connosco
e conduzis-nos com ternura mesmo nos transes mais apertados da história.
Por isso recorremos a Vós, batemos à porta do vosso Coração,
nós os vossos queridos filhos que não Vos cansais de visitar em todo o tempo e
convidar à conversão. Nesta hora escura, vinde socorrer-nos e consolar-nos.
Repeti a cada um de nós: «Não estou porventura aqui Eu, que sou tua mãe?» Vós
sabeis como desfazer os emaranhados do nosso coração e desatar os nós do nosso
tempo. Repomos a nossa confiança em Vós. Temos a certeza de que Vós,
especialmente no momento da prova, não desprezais as nossas súplicas e vindes
em nosso auxílio.
Assim fizestes em Caná da Galileia, quando apressastes a hora
da intervenção de Jesus e introduzistes no mundo o seu primeiro sinal. Quando a
festa se mudara em tristeza, dissestes-Lhe: «Não têm vinho!» (Jo 2,3). Ó Mãe, repeti-o mais
uma vez a Deus, porque hoje esgotamos o vinho da esperança, desvaneceu-se a
alegria, diluiu-se a fraternidade. Perdemos a humanidade, malbaratamos a paz.
Tornamo-nos capazes de toda a violência e destruição. Temos necessidade urgente
da vossa intervenção materna.
Por isso acolhei, ó Mãe, esta nossa súplica:
Vós, estrela do mar, não nos deixeis naufragar na tempestade
da guerra;
Vós, arca da nova aliança, inspirai projetos e caminhos de
reconciliação;
Vós, «terra do Céu», trazei de volta ao mundo a concórdia de
Deus;
Apagai o ódio, acalmai a vingança, ensinai-nos o perdão;
Libertai-nos da guerra, preservai o mundo da ameaça nuclear;
Rainha do Rosário, despertai em nós a necessidade de rezar e
amar;
Rainha da família humana, mostrai aos povos o caminho da
fraternidade;
Rainha da paz, alcançai a paz para o mundo.
O vosso pranto, ó Mãe, comova os nossos corações endurecidos.
As lágrimas, que por nós derramastes, façam reflorescer este vale que o nosso
ódio secou. E, enquanto o rumor das armas não se cala, que a vossa oração nos
predisponha para a paz. As vossas mãos maternas acariciem quantos sofrem e
fogem sob o peso das bombas. O vosso abraço materno console quantos são
obrigados a deixar as suas casas e o seu país. Que o vosso doloroso Coração nos
mova à compaixão e estimule a abrir as portas e cuidar da humanidade ferida e
descartada.
Santa Mãe de Deus, enquanto estáveis ao pé da cruz, Jesus, ao
ver o discípulo junto de Vós, disse-Vos: «Eis o teu filho!» (Jo 19,26). Assim Vos confiou
cada um de nós. Depois disse ao discípulo, a cada um de nós: «Eis a tua mãe!»
(19,27). Mãe, agora queremos acolher-Vos na nossa vida e na nossa história.
Nesta hora, a humanidade, exausta e transtornada, está ao pé da cruz convosco.
E tem necessidade de se confiar a Vós, de se consagrar a Cristo por vosso
intermédio. O povo ucraniano e o povo russo, que Vos veneram com amor, recorrem
a Vós, enquanto o vosso Coração palpita por eles e por todos os povos ceifados
pela guerra, a fome, a injustiça e a miséria.
Por isso nós, ó Mãe de Deus e nossa, solenemente confiamos e
consagramos ao vosso Imaculado Coração nós mesmos, a Igreja e a humanidade
inteira, de modo especial a Rússia e a Ucrânia. Acolhei este nosso ato que
realizamos com confiança e amor, fazei que cesse a guerra, providenciai ao mundo
a paz. O sim que brotou do vosso Coração abriu as portas da história ao
Príncipe da Paz; confiamos que mais uma vez, por meio do vosso Coração, virá a
paz. Assim a Vós consagramos o futuro da família humana inteira, as
necessidades e os anseios dos povos, as angústias e as esperanças do mundo.
Por vosso intermédio, derrame-se sobre a Terra a Misericórdia
divina e o doce palpitar da paz volte a marcar as nossas jornadas. Mulher do
sim, sobre Quem desceu o Espírito Santo, trazei de volta ao nosso meio a harmonia
de Deus. Dessedentai a aridez do nosso coração, Vós que «sois fonte viva de
esperança». Tecestes a humanidade para Jesus, fazei de nós artesãos de
comunhão. Caminhastes pelas nossas estradas, guiai-nos pelas sendas da paz. Ámen.
***
Prosit!
2022.03.25 – Louro de Carvalho
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