O Presidente
da República afirmou aos jornalistas, no domingo, dia 20, num hotel de Maputo (Moçambique), que a participação de portugueses na guerra na
Ucrânia “é uma realidade em que o Estado não se imiscui”, pois, “no momento em
que se imiscuísse haveria logo a especulação sobre se havia ou não da parte do
Estado português, que é um Estado da NATO, uma intervenção no terreno na
Ucrânia”.
***
Como
escreveu Hugo Franco no “Expresso” a
18 de março, um cidadão português, que é arguido num processo de incitamento ao ódio racial e
violência nas redes sociais, estando indiciado pelo crime de posse de arma
proibida, anunciara que iria partir para a Ucrânia com um grupo de portugueses
para se juntar a uma milícia de extrema-direita, ficando desobrigado, por
decisão judicial, de cumprir a
medida de coação de apresentações quinzenais numa esquadra de polícia, pelo
menos enquanto se encontrar na Ucrânia a combater.
Para a
competente juíza do TCIC (Tribunal
Central de Instrução Criminal), tendo em conta “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as
finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão”, poderá “deixar de
cumprir a referida medida de coação enquanto estiver ausente no estrangeiro”.
O advogado
de defesa tinha enviado um pedido ao tribunal no início do mês, aduzindo que “a
grave crise internacional despoletada pela invasão da Rússia à Ucrânia tem
mobilizado o esforço de milhares de pessoas, principalmente no campo
humanitário” e que “o arguido não é indiferente a este movimento”, pelo que, “mobilizou
um grupo de pessoas de diversas nacionalidades que se propõe ir para a Ucrânia
prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas
ucranianas”. Assim, um grupo de 8 nacionalistas liderados pelo arguido, agendada
a partida de Lisboa para dia o 20 e acertados os pormenores da viagem através
de mensagens encriptadas no Surespot e no Wickr Me, junta-se às tropas de
Zelensky, integrando uma milícia da extrema-direita ucraniana que se encontra
em Lviv e que não é o Batalhão Azov, o mais poderoso grupo armado ucraniano de
cariz neonazi.
O
arguido em causa esteve preso por crimes de ódio racial, ofensa à integridade
física ou posse de arma ilegal: em 1997, foi condenado a 4 anos e 3 meses de
prisão por envolvimento na morte dum cidadão português nascido em Cabo Verde,
morto em 11 de junho de 1995, no Bairro Alto por agressão dum grupo de
skinheads que integrava; em 2007, foi condenado a 7 meses de prisão por posse
ilegal de arma e 3 meses de prisão por posse de arma proibida, com pena
suspensa; em 2008, foi condenado a 4 anos e 10 meses de prisão efetiva por
alguns desses crimes; e, em 2009, foi condenado em 7 anos e 2 meses de prisão
por crimes de sequestro, roubo e coação.
Em
2012, o Tribunal Criminal de Loures fixou-lhe em 10 anos o cúmulo jurídico das
penas de prisão aplicadas. Já a cumprir pena de prisão em Alcoentre, foi
acusado e mais tarde condenado por tentativa de extorsão agravada, a partir da
cadeia, tendo-o, em 2016, o tribunal condenado a mais 2 anos e 9 meses de
prisão.
Entretanto, o arguido “foi em 12.11.2021 sujeito à medida de coação
de obrigação de se apresentar quinzenalmente (...), considerando-se indiciada a
prática pelo mesmo de um crime de detenção de arma proibida, (...) e verificados
os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e
tranquilidade públicas”. Porém, “considerando a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades
invocadas pelo arguido para a sua pretensão, o arguido pode deixar
de cumprir a medida de coação enquanto estiver no estrangeiro,
designadamente naquele país, verificando-se, nessas circunstâncias, uma
atenuação das exigências cautelares que determinaram a referida aplicação”. Não obstante, “enquanto permanecer
em Portugal, o arguido será sujeito às duas mencionadas medidas de coação.”.
O Ministério Público (MP) recorrerá da decisão que autoriza o cadastrado a
combater na Ucrânia (até
porque o quer em prisão preventiva) – decisão da juíza Catarina Vasco Pires que deferiu o pedido
do militante nazi que foi já condenado a mais de 10 anos de prisão por diversos
crimes (incluindo ofensas
à integridade física no contexto do ataque racista da noite de 10 de junho de
1995, que resultaria em vários negros feridos e num homicídio de) e é agora arguido por posse de arma
proibida, para deixar de se apresentar às autoridades de 15 em 15 dias.
A considerar ilegal tal decisão
judicial, uma procuradora, citada pelo DN,
aduz que “a lei penal aplica-se-lhe [ao arguido] em qualquer circunstância, as
medidas de coação valem para qualquer país” e “não há medidas de coação
para Portugal e outras para o estrangeiro”. Ademais, um arguido
que foi detido por ter arma proibida é a pessoa menos indicada para ação
humanitária.
Um outro procurador, também citado pelo DN, sustenta decisão que o
tribunal deveria “ponderar a natureza, a personalidade violenta do arguido, os
crimes de ódio e de sangue anteriormente por ele cometidos e indeferir a sua
pretensão”.
Para os aludidos procuradores, é evidente
que o MP deve recorrer, pois a finalidade invocada com a cobertura dum despacho
judicial choca a consciência jurídica. Explicam:
“A
aplicação de uma medida de coação obedece antes de mais aos requisitos gerais
do artigo 204.º do Código de Processo Penal. Se ao arguido, além do Termo de
Identidade e Residência, foi aplicada cumulativamente outra medida, no caso a
obrigação de apresentação periódica, isso significa que havia um perigo
acrescido, por exemplo o perigo de fuga ou de continuação da atividade
criminosa, entre outros. Pretende-se com essa medida de alguma forma um controlo
sobre os passos do arguido.”.
E apontam uma contradição absoluta: o
tribunal, ao conceder ao arguido licença para matar ao abrigo de razões
humanitárias, abre a porta ao incumprimento de obrigação anteriormente imposta;
e, não havendo fundamento para a sua alteração, pois não são razões
intraprocessuais que devam alterar para menos a medida de coação, afigura-se
que houve violação dos artigos 198.º e 212.º do Código de Processo Penal (CPP) e se legitima uma fuga do arguido.
O artigo 198.º do CPP estabelece as
circunstâncias em que pode ser imposta a obrigação de apresentação periódica e
o 212.º aquelas em que se pode proceder à revogação e substituição das medidas
cautelares, ou seja, se “tiverem sido aplicadas fora das hipóteses ou das
condições previstas na lei” ou deixarem de “subsistir as circunstâncias que
justificaram a sua aplicação”.
Também o advogado penalista Paulo
Saragoça da Matta manifesta o seu espanto:
“A
decisão é tudo menos ‘jurídica’, a meu sentir! Como é compatível um juiz achar
que as apresentações periódicas são necessárias (o que significa por regra
perigo de fuga) e, um tempo depois, acha ‘lógico’ e ‘justo’ deixar alguém ir
para um teatro de guerra, em que a localização é por definição muito difícil ou
impossível?”.
Como os dois procuradores, vê o
despacho como “absolutamente ilegal”. Efetivamente os juízes são
independentes nas suas decisões, mas não podem violar a lei conscientemente. Há
infração disciplinar, o Conselho Superior de Magistratura (CSM) tem de atuar. E não sabe se não há
crime, pois, quando um funcionário age conscientemente contra Direito comete o
crime de prevaricação. Além do mais, argumenta, cria-se assim um precedente: agora vem um
arguido também com estas medidas de coação e diz que quer ir combater para a
Ucrânia e pergunta-se como é que lhe dizem que não. E não se manda um
criminoso com um longuíssimo cadastro para a guerra, pois um homem como ele nunca seria
admitido no exército, não tem perfil.
Está no Tribunal da Relação um
recurso do MP relativo a este processo, no sentido da apreciação da decisão de
novembro do Tribunal de Instrução Criminal que afastou a imputação
ao arguido do crime de autoria de mensagens de ódio no âmbito da atividade de
uma organização racista, que pode valer até 8 anos de prisão, e subsistindo apenas o
crime de posse de arma proibida (pena até 5 anos). O MP queria, com base na imputação
do crime com moldura penal mais elevada, que fosse aplicada a medida de coação
de prisão preventiva; e a detenção de arma proibida não a permite.
Deverá agora dar entrada mais um
recurso em relação a este despacho da juíza Catarina Vasco Pires, mas não terá
efeito suspensivo da decisão – o que significa que o arguido pôde sair do país.
***
Ora, para Marcelo,
Presidente da República 24 horas sobre 24 horas, que se escusou a comentar tal
decisão judicial, disse que não tem de me pronunciar sobre isso. E, instado a
pronunciar-se se o Estado não se está a
imiscuir quando há decisões judiciais como essa, respondeu:
“Isso é o poder judicial, não é propriamente o Estado. Nem o
Presidente, nem a Assembleia da República, nem o Governo, nem a Administração
[Pública], nem naturalmente as atividades da Defesa”.
E, em termos
gerais sobre a participação de cidadãos portugueses, por sua iniciativa, em
conflitos como o da Ucrânia, o Presidente da República não quis dar a sua
opinião, justificando:
“Eu não queria pronunciar-me sobre isso. Isso significa estar a
discutir a questão dos chamados voluntários ou grupos de cidadãos que intervêm
por sua iniciativa e com enquadramentos diversos. Como compreendem, é uma
realidade em que o Estado não se imiscui.”.
Ora, é aqui que temos o busílis. O Presidente, que é perito em direito
público, não pode considerar uma decisão judicial como não comprometendo o
Estado, pois, segundo o nosso ordenamento jurídico-constitucional, a organização
do poder político, ou seja, do Estado, compreende os órgãos de soberania –
Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais –, bem
como órgãos do poder político, que também reside no povo, portanto, do Estado,
embora não poder soberano, designadamente as autarquias locais e as regiões
administrativas.
É certo que os órgãos de soberania não comprometeram formalmente o Estado
com a guerra espoletada pela Federação
Russa na madrugada de 24 de fevereiro com uma ofensiva militar na Ucrânia com
invasão por forças terrestres e bombardeamentos, que causou cerca de 900 mortos
e perto de 1500 feridos entre a população civil e provocou a fuga de mais de 10
milhões de pessoas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, nesse
dia, o Presidente condenou a invasão e convocou de urgência o Conselho Superior
de Defesa Nacional, que deu parecer favorável, por unanimidade, a propostas do
Governo para a participação de meios militares portugueses em forças de
prontidão da NATO. E, a 2 de março, a
Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condena a agressão russa
contra a Ucrânia e apela a um cessar-fogo efetivo e imediato, com 141 votos a
favor, 5 votos contra e 35 abstenções. Posteriormente, Marcelo convocou o
Conselho de Estado, que por unanimidade condenou a guerra.
Há efetivamente
da parte do poder judicial uma interferência, uma interferência do Estado – os juízes
administram a justiça em nome do povo (até os conservadores declaram o
casamento dos nubentes em nome da República) – com beneplácito à participação de particulares na guerra, o que é
abstruso.
É verdade
que portugueses integraram forças estrangeiras nos dois lados na guerra civil
de Espanha e, do lado da Alemanha, na II Guerra Mundial, mas o Estado como um
todo manteve o silêncio sob a capa da neutralidade ativa, o que deu lugar a
duplo negócio e acolhimento da espionagem dos dois lados.
Confrontado com
o facto em causa, o Presidente não podia deixar de remeter a resposta para os
competentes órgãos de investigação e pura e simplesmente recusar pronunciar-se
sobre facto de que não tem conhecimento formal, mas apenas pela comunicação social.
Desvincular os tribunais duma responsabilidade do Estado é que não. Mas é a
sina do Presidente comentador, que não se sai bem quando a matéria é penosa. Não
lhe cabe retirar o Estado de nenhum problema nem de o sobrecarregar com mais
algum.
Fez bem em
condenar a guerra e faz bem em secundar as opções do Governo quanto à mesma,
porém, escusava de, por exemplo, encarecer as cores negras do futuro que a
guerra pode trazer a todos: deixava isso para o Primeiro-Ministro, Ministro da
Defesa e Ministro dos Negócios Estrangeiros. Em tempo de crise o excesso de
comentários presidenciais nada resolve, só satura. Do Presidente espera-se,
nestes tempos, a palavra oportuna na hora certa, palavra contida e firme.
***
Sobre a idoneidade
ou não do arguido para combater não discorro, pois não sou psicólogo.
2022.03.21 – Louro de Carvalho
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