domingo, 31 de outubro de 2021

A Palavra de Deus tem que ser “ruminada”

 

A asserção é do Papa Francisco ao comentar a perícopa evangélica da liturgia deste XXXI domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 12,28-34).

Um dos escribas (“eis tôn grammatéon”) aproxima-se de Jesus e pergunta-lhe “qual é o primeiro de todos os mandamentos”. Jesus, citando as Escrituras, responde que o primeiro é amar a Deus…, donde deriva naturalmente o preceito de amar o próximo como a si mesmo.

Ora, como sublinha o Pontífice, ao ouvir a resposta, o escriba reconhece que ela é justa, mas repete quase as mesmas palavras de Jesus: “Muito bem, Mestre; tens razão em dizer que [...] amá-Lo de todo o coração, com toda a sua inteligência e com todas as suas forças, e amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios”. E, para Francisco, tal repetição da parte do escriba torna-se mais surpreendente considerando a concisão típica do Evangelho de Marcos. Por isso, essa repetição constitui “um ensinamento para todos nós que ouvimos”, pois a Palavra de Deus não pode ser recebida como uma notícia qualquer; deve, antes, “ser repetida, assumida e guardada”. Enfim, como diz a tradição monástica, a Palavra de Deus tem que ser “ruminada”. Com efeito, “ruminar” a Palavra é, segundo o Papa, “tão nutritivo que deve atingir todas as áreas da vida”, isto é, envolver “todo o coração, toda a alma, toda a inteligência, todas as forças”. Enfim, a Palavra deve ressoar dentro de nós. E, quando esse eco interno se repete, “o Senhor habita em nosso coração e diz-nos como ao bom escriba do Evangelho”: “Não estás longe do Reino de Deus”.

Todavia, como assegura o Santo Padre, “o Senhor não procura tanto comentadores hábeis das Escrituras, mas corações dóceis que, acolhendo a Palavra, se deixem transformar por dentro”, pelo que importa “familiarizar-se com o Evangelho para tê-lo sempre ao alcance”, lendo e relendo. De facto, há que dar a oportunidade a que Jesus, Palavra do Pai, entre em nossos corações, Se torne íntimo, para que dêmos fruto Nele. Assim, não basta ler a perícopa evangélica em referência e compreender que devemos amar a Deus e ao nosso próximo; é preciso que o “grande mandamento” ressoe em nós, seja assimilado, se torne a voz da nossa consciência. Se assim acontecer, não fica letra morta, na gaveta do coração, porque o Espírito Santo faz brotar em nós a semente da Palavra. E a Palavra age, está sempre em movimento, é viva e eficaz (cf Heb 4,12); e cada um de nós pode tornar-se, não repetição, mas “tradução” viva, diferente e original. É o que sucede na vida dos santos: nenhum é igual ao outro, todos são diferentes, mas todos com a mesma Palavra de Deus.

Por fim, o Papa Francisco exorta a que tomemos como exemplo o escriba conhecedor das coisas de Deus, repetindo as palavras de Jesus, fazendo-as ecoar em nós: “Ama a Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças; e ao teu próximo como a ti mesmo”. E quer que este mandamento realmente nos oriente e se reflita na nossa vida diária. Por conseguinte, aconselha-nos o exame de consciência sobre esta Palavra de Deus, “para ver se hoje amamos o Senhor e demos um pouco bem aos outros que encontramos”, pois é mister que todo o encontro “seja para dar um pouco de bem, um pouco de amor, que vem desta Palavra”. Depois, há que rogar à Virgem Maria, em quem o Verbo de Deus Se fez carne, que nos ensine a acolher a palavra evangélica em nossos corações.

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A perícopa evangélica em referência tem lastro num trecho do Deuteronómio (vd Dt 6,2-6), que se inicia com uma exortação a “temer” o Senhor e a cumprir todas as suas leis e mandamentos.

“Temer o Senhor” – expressão frequente no AT (Antigo Testamento) – traduz a reverência e o respeito por Deus, bem como a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível no Deus que não falha, a humilde renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional ao desígnio de Deus, a plena aceitação das suas propostas e mandamentos. Na ótica do catequista deuteronomista, o crente ideal (o que “teme o Senhor”) é o que está disposto a renunciar à qualquer laivo de autossuficiência e não procura a felicidade à margem de Deus; é o que, totalmente confiado em Deus, é capaz de se entregar nas mãos de Deus e tomar os seus mandamentos como caminho seguro para a vida em plenitude. A esse o Senhor promete vida em abundância.

Depois, temos (Dt 6,4-6) o conhecido “Shemaʽ Yisraʼel(assim designado por causa da primeiras palavras hebraicas de Dt 6,4: “Escuta Israel”), que é um texto central do judaísmo e que, desde finais do século I, é rezado diariamente, de manhã e à tarde, por todos os judeus piedosos. Aqui, o verbo “escutar” define uma tripla ação: “ouvir” com os ouvidos, “acolher” no coração e “transformar em atuação concreta” o que se ouviu e se acolheu.

O “Shemaʽ Yisraʼel ” começa com a afirmação solene da unicidade de Deus (“o Senhor é único”). Por consequência, o crente deve ouvir e interiorizar esta realidade e agir em conformidade, ficando afastada do seu horizonte qualquer possibilidade de adesão a outros deuses ou a outras propostas de salvação.

Por último, mas não em nível secundário, vem a exigência de amar este Deus único com um amor sem divisão, um amor que implique a totalidade do homem (“amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças”), amor que, interiorizado no coração e na alma (“As palavras que hoje te prescrevo ficarão gravadas no teu coração”), deve traduzir-se na observância fiel dos mandamentos e preceitos da Aliança.  

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Dom António Couto, ao comentar o passo do Evangelho em referência, anota que a discussão antes havida, no Templo, entre Jesus e os saduceus (Mc 12,18-27) teve mais audiência que a dos diretamente envolvidos. Tanto assim é que o escriba que Marcos põe agora em cena tinha presenciado essa discussão e ficado satisfeito com a resposta de Jesus. Com efeito, este escriba, não carregado de malícia, “é um homem atento, aberto, bem-intencionado e bem-disposto”. Não faz a Jesus uma pergunta armadilhada, como sucede nos lugares paralelos (Mt 22,35-36; Lc 12,25), mas uma pergunta baseada no facto de considerar boa a resposta aos saduceus.

Na verdade, os mestres judeus, lendo minuciosamente a Lei, ou seja, os cinco primeiros Livros da Bíblia (o Pentateuco: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio), e reduzindo-a a preceitos, tinham contado 613 preceitos, sendo 365 (quantos os dias do ano) negativos e 248 (quantos, assim se pensava, os membros do corpo) positivos. Assim, a grande questão para os mestres e para as suas escolas era a determinação duma ordem nesses preceitos, dizendo qual era o primeiro ou o mais importante ou o maior, e assim por diante. A discussão era interminável e geradora de conflitos, pois, como se diz habitualmente, “cada cabeça sua sentença”, sendo que “onde está um hebreu, há duas opiniões”. Portanto, era oportuno saber o pensamento de Jesus sobre esta matéria.

Jesus, percebendo a boa-fé do escriba, responde, de forma amigável, começando por recitar o “Shemaʽ Yisraʼel, a mais importante afirmação de fé hebraica: “O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua inteligência e com todas as tuas forças’.(“prôtê estín: ákoue, Israêl: Kýrios hô Theòs hêmôn eis estin, kaì agapêseis Kýrion tòn Theón sou ex hólês tês kardías sou kaì ex hólês tês psykhês sou kaì ex hólês tês dianoías sou kaì ex hólês tês iskhýos sou”: Mc 12,29-30). Porém, Jesus não dá por terminada a resposta, pois continua citando o Livro do Levítico: “O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (“deutéra haútê: agapêseis tòn plêsíon sou hôs seautón”: Mc 12,31a; cf Lv 19,18). E fecha a resposta com os dizeres: “Não há outro mandamento maior do que este(“meídzon toútôn állê entolê ouk éstin”: Mc 12,31b). O escriba perguntou pelo primeiro mandamento, mas Jesus expõe o primeiro e acopla-lhe o segundo, concluindo que os dois são um único: “Não há outro mandamento maior do que este”.

Trata-se, para António Couto, de dois amores entrelaçados – amar Deus e amar o próximo –, que fazem o “amor entrelaçado”, pois são mandamentos da mesma génese, em Deus. Por isso, basta dizer amar a Deus ou amar o próximo (“toda a Lei se resume num só mandamento: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” – pâs nómos en enì lógôi peplêrotai, en tôi: agapêseis tòn plêsíon sou hôs seautón – Gl 5,14; cf Tg 2,8). Ora, tanto alguém que tenta amar a Deus e se afasta dos homens como alguém que, para lutar ao lado dos homens, esquece Deus entra “no terreno da mentira, da falsidade e da idolatria”. Com efeito, quando alguém diz que ama a Deus, mas não se importa com o próximo, não reage à injustiça e não luta contra a opressão, terá como referência um Deus que não é o Pai de Jesus Cristo. Na verdade, quem diz que ama a Deus e odeia o seu irmão é mentiroso e o amor de Deus não está nele (cf 1Jo 4,20). De igual modo, quem diz amar e servir o próximo, mas recusa entregar-se a Deus, cairá facilmente nas mãos dos ídolos (ideologia, modelo de libertação próprio, ambição política). Mais: pensando que ama o próximo, nem se apercebe de que o está a instrumentalizar ou a colonizar, pois quer libertá-lo, impondo-lhe umas ideias, uma cosmovisão, uma certa justiça; e querendo ajudar o homem a ser mais homem, está a afastá-lo da sua busca essencial, que é o próprio Deus.

Cada um destes amores propalados no Evangelho leva à verificação do outro. Porém, têm diferença. Amar a Deus requer totalidade (“com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua inteligência e com todas as tuas forças”). É um amor indivisível. Só chegamos a Deus se formos inteiros. Ora, sucede que, atolados nos quotidianos afazeres e preocupações, nem chegamos sequer a pensar n’Ele. Já a bitola do amor ao próximo é diferente: somos nós (“como a ti mesmo”: hôs seautón). Todavia, mais tarde, Jesus reorienta a bitola: amar como Ele amou os discípulos, fazer como Ele fez, que os amou até ao fim (“eis télos êgápêsen”), dando a vida por nós (cf Jo 13,1).  

O escriba (“hô grammateús”) confirma o dizer de Jesus: “Muito bem, Mestre…(“kalôs, didáskale”: Mc 12,32-33). E Jesus corrobora o dizer do escriba: “Não estás longe do Reino de Deus(“ou makràn eî apò tês basileías toû Theoû”: Mc 12,34). Entre os dois há uma recíproca admiração. E, porque o Evangelho trata os escribas com duras críticas, desta feita diz-nos que, também entre os escribas, há pessoas “não longe” do Reino. Portanto, para o Evangelho, não há categorias de pessoas excluídas à partida. E é o amor a Deus e ao próximo a chave da porta do Reino.

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Por fim, o trecho da Carta aos Hebreus lido nesta dominga (Heb 7,23-28) mostra a superioridade do sacerdócio de Cristo em contraponto ao sacerdócio veterotestamentário. Desde logo, a sua duração eterna contrasta com a efemeridade e a contínua mudança das gerações do sacerdócio levítico. Com efeito, a multiplicidade e a alternância são sinónimos de imperfeição. Porém, como o sacerdócio de Cristo é eterno, a sua intercessão junto de Deus é contínua e Ele assegura, de modo definitivo, a salvação do crente (cf Heb 7,23-25). E, como Jesus é inocente, não precisa de andar a oferecer sacrifícios diários ou com outra periodicidade, porque não tem pecados e obviamente não precisa de perdão. E, porque o seu sacrifício é perfeito e tem valor infinito e indizível, bastou que de uma vez por todas Se tivesse imolado pelos pecadores para pagar por eles a culpa que os tornou devedores, o que postula, por motivos de gratidão e comunhão, que o seu sacrifício seja presentificado e assumido por nós como também nosso.  

Por tudo isto, o hagiógrafo termina a sua reflexão em hino (cf Heb 7,26-28), que sintetiza toda a exposição anterior e exalta as caraterísticas do sacerdócio de Cristo. Ele é o sumo sacerdote que nos convinha: “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos céus”, porque pertence à esfera do Deus santo. Além disso, não tem necessidade de oferecer todos os dias sacrifícios pelos pecados próprios e alheios, porque se ofereceu a Si próprio, de uma vez por todas, em sacrifício perfeito. E, à laia de conclusão, reitera o contraste entre a ordem imperfeita – a da Lei e do levítico – e a ordem perfeita, prometida por Deus e realizada por Jesus: lá, havia homens marcados pela fragilidade e debilidade; aqui, está o sumo sacerdote eterno, que é Filho de Deus, está junto de Deus e intercede permanentemente pelos homens.

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Talvez devamos, a sério, seguir a orientação do Papa: “ruminar” a Palavra de Deus. Vamos a isso?

2021.10.31 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de outubro de 2021

Vem aí “Philip Roth – A Biografia”, de Blake Bailey

 

Anuncia Pedro Mexia, na mais recente edição da “Revista” do Expresso, que chegará às livrarias portuguesas a 23 de novembro, a obra indicada em epígrafe, “um roteiro mais pessoal do que literário pela vida de um homem contraditório e brilhante”.

Philip Milton Roth, nascido em Newark (Nova Jersey)a 19 de março de 1933 e falecido s 22 de maio de 2018, em Nova Iorque, foi um romancista norte-americano, considerado um dos mais importantes romancistas judeus de língua inglesa e, segundo o crítico Harald Bloom, o maior contador de histórias americano depois de Faulkner. Para Bloom, “Roth é o culminar de um quebra-cabeça não resolvido na literatura judaica dos séculos XX e XXI”, tendo as influências complexas de Kafka e Freud, Kafka e Freud no mal-estar da vida judaico-americana produzido um novo tipo de síntese em Philip”.

Filho dum mediador de seguros de origem austro-húngara, tornou-se um grande entusiasta de baseball aos 7 anos de idade e descobriu a literatura tardiamente, aos 18 anos.

Após ter concluído o ensino secundário, ingressou na Universidade de Rutgers mas, ao fim de um ano, transferiu-se para a Universidade de Bucknell. Interrompeu os estudos em 1955, ao alistar-se no exército mas, lesionando-se durante a recruta, foi desmobilizado. Decidiu, pois, retomar os estudos, trabalhando simultaneamente como professor para prover ao seu sustento, tendo-se licenciado em 1957, em Estudos Ingleses.

Inscreveu-se, depois, num seminário com o intuito de apresentar uma tese de doutoramento, e perdeu o entusiasmo, desistindo deste seu projeto em 1959.

Preferindo iniciar um esforço literário, passou a colaborar com o periódico New Republic na qualidade de crítico de cinema, ao mesmo tempo que se debruçava na escrita do primeiro livro, que veio a ser publicado nesse mesmo ano, com o título Goodbye, Columbus (1959), uma autêntica revelação, comprovada pela atribuição do prémio literário National Book Award. Mereceu também uma adaptação para o cinema pela mão do realizador Larry Peece.

Seguiram-se Letting Go (1962)When She Was Good (1967), até que, em 1969, consolidou a posição como romancista com “Portnoy’s Complaint (1969), a história de um monomaníaco obcecado por sexo. E passou a fazer reaparecer muitas das suas personagens em diversas narrativas. Depois de The Breast (1972), romance que aludia à Metamorfose de Franz Kafka, David Kepesh, o protagonista que se via transformado num enorme seio, figura em The Professor Of Desire (1977) e “The Dying Animal (2001). Outro exemplo de ressurgência é Nathan Zuckermann, presente em obras como My Life As A Man (1975)Zuckermann Unbound(1981)I Married A Communist (1998)The Human Stain (2000).

Tendo iniciado uma carreira docente em meados da década de 60, que incluiu a passagem por instituições como as universidades de Princeton e Nova Iorque, Roth encontrou muita da sua inspiração em incidentes e ambientes académicos. Em 1991 publicou um volume dedicado à história da sua própria família, “Patrimony, trabalho galardoado com o National Critics Circle Award no ano seguinte, uma entre as muitas honrarias concedidas ao autor. Em 1997, ganhou Prémio Pulitzer com “Pastoral Americana. Em 1998, recebeu a Medalha Nacional de Artes da Casa Branca; e, em 2002, o mais alto galardão da Academia de Artes e Letras, a medalha de Ouro da Ficção, antes atribuída a John dos Passos, William Faulkner e Saul Bellow, entre outros. Ganhou duas vezes o National Book Critics Award.

Em 2005, A Conspiração contra a América recebeu o prémio da Sociedade de Historiadores Americanos pelo “excecional romance histórico sobre um tema americano, relativo a 2003-2004”, considerado Melhor Livro do Ano por inúmeras publicações, entre elas: New York Times Book Review, San Francisco Chronicle, Boston Globe, Chicago Sun-Times, Los Angeles Times Book Review, Washington Post Book World, Time e Newsweek.

No Reino Unido, Recebeu ainda o W.H. Smith Award para Melhor Livro do Ano.

Em 2011 recebe o Man Booker International Prize, prémio que procura destacar a influência de um escritor no campo da literatura. Trata-se de um reconhecimento do trabalho pessoal, e não de uma obra sua em particular. No ano seguinte, recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias, a maior distinção de Espanha.

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Morreu em glória, diz Pedro Mexia, mas sem a consagração sueca, ostensivamente negada. As suas obras foram editadas pelas canónicas Library of America e Plêiade. Logrou prémios americanos e estrangeiros, homenagens, condecorações, milhões de livros vendidos em várias línguas, e 5 ou 6 títulos muito citados entre os melhores romances do pós-guerra.

Em 2010, deu por concluída a carreira e passou a ajudar o seu biógrafo, o autor de livros sobre Richard Yates e John Cheever. Roth sabia de ideias feitas acerca da sua personalidade e seus romances, pelo que forneceu os elementos necessários à correção da imagem infamante ou distorcida que dele se formara, pedindo a Bailey, não que o reabilitasse, mas que o tornasse interessante. Entrementes, o biógrafo caiu em desgraça sob a acusação de abusos sexuais, o que levou a que a edição americana fosse retirada das livrarias.

Dado à estampa em abril e com versão portuguesa prevista para novembro, “Philip Roth: The Biography” é uma viagem às contradições de Roth, atento e indiferente, dedicado e rancoroso, generoso e mesquinho, divertido e colérico.

Bailey, que não o reabilita inteiramente, defende-o das acusações de judeu antissemita, misógino e egotista. Todavia, o inesquecível Roth, no dizer de Mexia, usava nos romances vidas, cartas, conversas e confissões dos outros, mas “negando, depois, que se tivesse aproveitado disso”, pois os romances são ‘ficção’ e qualquer semelhança com a realidade é simples coincidência. Em contraponto, não faz sentido acusá-lo de antissemitismo, visto que, sendo verdade que “os romances mostram judeus com mau comportamento ou mau carácter”, como lembrou Zadie Smith, “só falando dos nossos como iguais aos outros, com defeitos, sem idealizações, é que a identidade não descamba em chauvinismo”. Já, no atinente à suposta misoginia, é de referir que o biografado era “um mulherengo maníaco, um adúltero compulsivo, um heterossexual à moda antiga, condescendente ou grosseiro, sem problemas com objetificações, diferenças etárias ou interditos deontológicos”, muito embora haja odiado mulheres, nomeadamente aquelas com quem casou, por via de diferenças de personalidades, priorizações, desavenças e mesmo fraudes, a par de “raivas, boicotes, ciúmes e actos tresloucados”, o que, se corresponder à verdade, no todo ou em parte, “terá contribuído para que Roth se mostrasse tão esquivo às relações longas e à paternidade”.

Neste aspeto, os livros, a par da classificação das mulheres “como megeras ou desejáveis”, apresentam personagens femininas como “algumas das personagens mais fascinantes e mais complexas”. Assim, com base “em centenas de conversas e numa infinidade de documentos”, Bailey dedica muitas páginas a assuntos como “o relacionamento com os pais, os problemas cardíacos e osteopáticos, as depressões, as zangas com amigos, as minudências financeiras”, mas interessam-lhe imenso “os microperfis de namoradas ou aventuras fugazes”, para lá duma “avalanche de escritoras, jornalistas, alunas, fãs e enfermeiras”. De tais conquistas Roth guardou “um álbum fotográfico onde as identificava e imortalizava, como se fossem tão importantes como os 31 livros que escreveu”.

Mais que biografia literária, Bailey dá-nos a biografia de um escritor, o que não significa que a literatura fique de fora. Começando por entre os contemporâneos, é de referir que Roth idolatrava Saul Bellow, talvez por ser, como ele, um judeu malcomportado e um coloquial sofisticado, e gostava de Bernard Malamud, outro judeu americano. E regressava a Kafka ou aos mestres oitocentistas. Era ambíguo em relação a John Updike, adversário de Norman Mailer e detestava muita gente, como Harold Brodkey. Teve, desde os tempos de “O Complexo de Portnoy” e antes disso, inimigos ou detratores fiéis: de Irving Howe, um crítico socialista, a Gershom Scholem, um estudioso do misticismo, de Norman Podhoretz, um jornalista e futuro neoconservador, a Michiko Kakutani, uma destacada crítica do “New York Times”, além de rabis indignados, académicos e feministas.

A proximidade a Roth e ao seu círculo íntimo permitiu a Bailey o acesso a boas anedotas. É o caso do comentário de Roth aos manuscritos dos seus protegidos; da vontade de retoma do contacto, décadas depois, com pessoas que nem sempre estavam pelos ajustes; da máquina de escrever com o “i” de “I” (eu) gasto; das inconfidências do psicanalista; da mulher que tentou seduzir e que fugiu dele quando leu o “Teatro de Sabbath”; ou de Herman Roth, orgulhoso, a assinar exemplares dum livro do filho, “Portnoy”, ode à neurastenia e à masturbação.

Roth detestava que se prestasse mais atenção aos escritores que à escrita, mas as “autoficções” dificultavam tal separação. Bailey faz questão de lembrar, contra os alegados solipsismo e ressentimento, os gestos decentes do seu biografado, as visitas a doentes, o dinheiro que dava a amigos que precisassem, a tentativa de promover gente jovem talentosa ou o apoio a autores checos dissidentes. Contudo, é incontornável a tendência do romancista para ser tomado por um “furor”, como nas tragédias gregas, em registo de zombaria ou vingança, quer em livros sobre o judaísmo, o casamento, a política, a libido ou as devastações da velhice, quer na resposta (não publicada, mas acedida por Bailey) às memórias de Claire Bloom – fúria coexistente com a nostalgia pela Newark da sua infância e adolescência, cidade a que voltou em obras tardias e a cuja biblioteca pública deixou um legado de milhares de livros e milhões de dólares.

Nesta biografia tão extensa e exaustiva, Bailey consegue ainda mostrar que a fúria e a nostalgia podem ser a mesma coisa. Por isso, “Roth inventou ficções históricas, metaficções e narrativas contrafactuais, com duplos e alter-egos”, de modo que se lembrava mal de certos factos na conversa com o biógrafo”, antes se lembrando da versão dos livros. Por isso, atirou que a imaginação “é um carniceiro: atira-se aos factos até os tornar irreconhecíveis”.

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Aos 79 anos, Philip Roth foi agraciado com o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras 2012, pelo júri reunido em Oviedo, Espanha, com elogios à sua “escrita fluída e incisiva”, derrotando, na última fase de votações, o outro finalista, o japonês Haruki Murakami.

O júri decidiu por maioria atribuir o galardão a Roth, por considerar que a sua obra literária faz parte do “grande romance norte-americano”, na esteira de John Dos Passos, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Saul Bellow ou William Faulkner. Com efeito, como sublinha a respetiva ata, através duma “escrita fluída e incisiva”, o escritor revela uma “complexa visão da realidade, que se debate entre a razão e o sentimento, como sinal dos tempos e do desassossego do presente”. De facto, Roth é considerado um dos melhores escritores norte-americanos dos últimos 35 anos. Como ficou dito, em 1998, obteve o Pulitzer com o romance “Pastoral Americana” e tem uma obra que reflete a sua curiosidade pela identidade pessoal, cultural e étnica e pela criação artística. E, em 2011, foi distinguido com o “Man Booker International Prize” para ficção, pelo conjunto da sua obra literária.

“Durante mais de 50 anos, os livros de Philip Roth estimularam, provocaram e divertiram um público imenso, que continua a aumentar”, afirmou Rick Gekoski, presidente do júri do Prémio “Man Booker International Prize”, que acrescentou:

A sua imaginação não só refundou a nossa ideia de identidade judaica, como reanimou a ficção, não apenas norte-americana, mas em geral”.

Philip Roth escreveu duas dezenas de romances como “Adeus Colombo(1959), “A Pastoral Americana(1997), pelo qual recebeu o prémio Pulitzer em 1998, “O Complexo de Portnoy(1969), “Casei com um comunista(1998)A marca humana(2000) e “A conspiração contra a América(2004). O último livro “Nemesis” foi publicado em 2010.

A sua obra foi particularmente dedicada à sua personagem fetiche e duplo literário Nathan Zuckerman, cujo ciclo começou com “O Escritor Fantasma”, em 1979 e terminou com o “O Fantasma Sai de Cena”, em 2007.

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É um norte-americano judeu cuja vida e obra vale a pena revisitar.

2021.10.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O Papa do Sorriso será proclamado beato

 

A 13 de outubro do corrente ano, durante a audiência concedida ao Cardeal Marcello Semeraro, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, o Papa Francisco autorizou, de acordo com o respetivo comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé, a mesma Congregação a promulgar, entre outros, o decreto relativo ao milagre atribuído à intercessão do Venerável Servo de Deus João Paulo I (Albino Luciani), Sumo Pontífice, nascido a 17 de outubro de 1912 em Forno di Canale (hoje Canale d’Agordo, Itália) e falecido a 28 de setembro de 1978 no Palácio Apostólico, do Estado da Cidade do Vaticano.

Trata-se de um Pontífice que ficou no coração do povo pela simplicidade de linguagem e estilo e pelo expressivo, mas contido sorriso evangélico.

Na verdade, a Congregação para as Causas dos Santos reconhece como atribuído à intercessão do Venerável João Paulo I o milagre da cura duma menina de 11 anos em Buenos Aires (Argentina) no dia 23 de julho de 2011, que sofria de “encefalopatia inflamatória aguda grave, doença epilética refratária maligna, choque séptico” e que estava em fim de vida. O quadro clínico era muito grave, caraterizado por numerosas crises epiléticas diárias e um estado séptico causado por broncopneumonia. A iniciativa de invocar o Papa Luciani foi tomada pelo pároco da paróquia a que pertencia o hospital, o Venerável de quem o sacerdote era muito devoto. 

Segundo a “Agência Brasil”, no fim de novembro de 2017, terminou a investigação diocesana argentina de Buenos Aires. Agora, está aberto o caminho para a beatificação do Papa Albino Luciani e o próximo passo é aguardar a data, que será fixada por Francisco.

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Nascido em 17 de outubro de 1912 em Forno di Canale (hoje Canale d'Agordo), na província de Belluno, norte da Itália, e falecido a 28 de setembro de 1978 no Vaticano, Albino Luciani foi Papa apenas por 33 dias, um dos pontificados mais breves da história.

Era filho de um operário socialista que trabalhava há muito tempo como emigrante na Suíça. No bilhete escrito pelo pai, dando-lhe o consentimento para entrar no seminário, lê-se: “Espero que quando fores padre, fiques ao lado dos pobres, porque Cristo estava ao lado deles” – palavras que Albino Luciani colocaria em prática durante toda sua vida.

Luciani foi ordenado sacerdote em 1935 e, em 1958, logo após a eleição de João XXIII, que o havia conhecido como Patriarca de Veneza, foi nomeado Bispo de Vittorio Veneto.

Filho de uma terra pobre caraterizada pela emigração, mas também muito viva do ponto de vista social, e de uma Igreja caraterizada por grandes sacerdotes, Albino Luciani participou em todo o Concílio Ecuménico Vaticano II e aplicou com entusiasmo as suas diretrizes. Passou muito tempo no confessionário e foi um pastor próximo do seu povo.

Durante os anos em que se discutia a legalidade da pílula anticoncecional, pronunciou-se repetidamente a favor da abertura da Igreja ao seu uso, tendo escutado muitas famílias jovens. Todavia, após a publicação da encíclica “Humanae Vitae, em que São Paulo VI declarou a pílula moralmente ilícita em 1968, o Bispo de Vittorio Veneto emitiu um documento m que manifestava total adesão ao magistério do Pontífice. Paulo VI, que teve a oportunidade de o apreciar, nomeou-o patriarca de Veneza no final de 1969 e criou-o cardeal em março de 1973.

Luciani, que escolheu a palavra latina “humilitas” para o seu brasão episcopal, foi um pastor que viveu sobriamente, firme no essencial da fé, aberto do ponto de vista social, próximo dos pobres e aos trabalhadores. Era intransigente no atinente ao uso inescrupuloso do dinheiro em detrimento do povo, como foi demonstrado pela sua firmeza durante um escândalo económico em Vittorio Veneto envolvendo um sacerdote. E, no seu magistério, insistiu particularmente no tema da misericórdia. Grande comunicador, escreveu o “Illustrissimi”, livro de sucesso intitulado com cartas escritas e virtualmente enviadas aos grandes do passado com julgamentos sobre o presente. Deu particular importância à catequese e à necessidade de clareza para os que transmitem o conteúdo da fé.

Após a morte de São Paulo VI, foi eleito Sumo Pontífice em 26 de agosto de 1978 num conclave que durou apenas um dia.

Escolheu o duplo nome João Paulo com um propósito programático: ao unir João e Paulo, não só ofereceu uma homenagem de gratidão aos Papas que o quiseram como bispo e cardeal, mas também marcou um caminho de continuidade na aplicação do Concílio, barrando o caminho tanto aos nostálgicos pela volta ao passado como para saltos descontrolados para futuro. Foi o Papa que abandonou o uso do “nós”, plural majestático, sobretudo quando se intitulava Bispo de Roma, e recusou, nos primeiros dias, o uso da sedes gestatoria (liteira para carregar os Papas), curvando-se ao pedido dos seus colaboradores somente quando percebeu que ao proceder a pé as pessoas que não estavam nas primeiras filas tinham dificuldade em vê-lo.

As audiências gerais das quartas-feiras durante o seu brevíssimo pontificado foram encontros de catequese: o Papa falava sem texto escrito, citava poemas de cor, convidou um menino e um acólito a aproximarem-se dele e falou com eles. Em discurso improvisado, recordou ter passado fome quando criança e repetiu as palavras corajosas do seu predecessor sobre os “povos da fome” que interpelam os “povos da opulência”.

A revista italiana 30 Giorni” revela, com base em declarações de um dos quatro irmãos de João Paulo I, que a Irmã Lúcia, durante a visita que o então Patriarca de Veneza lhe fez no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, sempre o tratou por “Santo Padre”. O Cardeal Luciani fica impressionado e pergunta: “Porquê?”. E a religiosa explica: “Vossa Eminência um dia será eleito Papa”. E ele disse: “Sabe-se lá, irmã…”. E a Irmã retorquiu: “Será sim, mas o seu pontificado será muito breve”.

Conta-se que João Paulo I teria feito uma premonição sobre sua morte, ao afirmar a conhecidos que “alguém mais forte que eu, e que merece estar neste lugar, estava sentado à minha frente durante o conclave”. Um cardeal presente na ocasião – que preferiu escudar-se no anonimato – confirmou que esse homem era, de facto, o polaco Karol Wojtyla. “Ele virá, porque eu me vou”, prosseguiu o “Papa Breve”. Wojtyla realmente votara em Luciani naquele conclave e, logo depois, tornou-se João Paulo II. João Paulo I teria falado ao Bispo John Magee a respeito da sua morte um dia antes de ela ocorrer.

Faleceu repentinamente na noite de 28 de setembro de 1978. O Papa foi encontrado sem vida pela irmã que levava café ao seu quarto todas as manhãs. Em apenas algumas semanas de pontificado, entrou no coração de milhões de pessoas, pela simplicidade, humildade, palavras em defesa dos pobres e sorriso evangélico. Muitas teorias foram construídas em torno da sua morte súbita e inesperada, com supostas conspirações para venda de livros e produção de filmes.

A versão oficial é a de que João Paulo I tinha estado a beber um chá durante a tarde do dia 27 de setembro de 1978. E, quando rezava na capela papal acompanhado padre irlandês John Magee, seu secretário, teve uma forte dor no peito, mas recusou chamar o médico. Jantou, deitou-se e acabaria por morrer essa noite, tendo sido encontrado morto na manhã seguinte.

Embora João Paulo I tenha sido encontrado morto por uma freira que trabalhava para ele e o acordava havia muitos anos, a versão oficial divulgada pelo Vaticano, contudo, diz que o corpo de João Paulo I teria sido encontrado pelo Padre Diego Lorenzi, um dos seus secretários, anunciando a morte como “possivelmente associada com enfarte do miocárdio”. Para alguns, João Paulo I teria sido vítima das terríveis pressões caraterísticas de seu cargo, e que não as tendo suportado, veio a perecer. A citada freira, após a morte deste, fez voto de silêncio.

Outra hipótese levantada foi a de que o Papa “Sorriso de Deus” teria sido vítima de embolia pulmonar. De qualquer maneira, a sua morte provocou enorme consternação entre os católicos: mesmo sob chuva torrencial, a Praça de São Pedro esteve totalmente lotada quando dos seus funerais. Em sua homenagem, Karol Wojtyła, seu sucessor, adotaria seu nome papal ao ser eleito, em 16 de outubro de 1978, tornando-se o Papa João Paulo II.

O momento da sua morte, apenas 33 dias depois da sua eleição para o Sumo Pontificado, e alegadas dificuldades do Vaticano com os procedimentos cerimoniais e legais, juntamente com declarações inconsistentes feitas após a morte, fomentaram várias teorias da conspiração. O autor britânico David Yallop escreveu extensivamente sobre crimes não resolvidos e teorias da conspiração e, no livro de 1984 “In God’s Name sugeriu que João Paulo I morreu porque estava prestes a descobrir escândalos financeiros supostamente envolvendo o Vaticano. John Cornwell respondeu às acusações de Yallop em 1987, com um “A Thief In The Night, em que analisou as várias alegações e negou a conspiração. De acordo com Eugene Kennedy, escrevendo para o “The New York Times”, o livro de Cornwell “ajuda a purificar o ar de paranoia e de teorias da conspiração, mostrando como a verdade, cuidadosamente escavada por um jornalista num volume pode nos refrescar, faz-nos livres”.

Passados 40 anos, o mafioso Antoni Raimondi vem contar nas suas memórias ter sido ele o assassino.

Porém, uma pesquisa documentada sobre a morte, que encerra o caso, foi assinada por Stefania Falasca, vice-postuladora do processo de beatificação, em “Cronaca di una morte, Libreria Editrice Vaticana.

A fama de santidade de Luciani se espalhou rapidamente. Muitas pessoas rezaram e rezam por ele. Muitas pessoas simples e até um episcopado inteiro – o do Brasil – pediram a abertura do processo que agora, após um procedimento ponderado e bem pensado, chegou à sua conclusão.

***

Há muito se esperava pela notícia da autorização papal da beatificação de Luciani. Aliás, o próprio Papa Francisco a antecipou, há anos, num encontro com o clero de Roma.

A fama da sua santidade está presente no mundo inteiro, mormente no Brasil. O facto de todo o episcopado brasileiro ter pedido a abertura da sua causa de beatificação é a expressão eloquente da fama de santidade deste grande pastor que escolhera a palavra “humilitas” para o seu brasão episcopal. É conhecida a amizade de Albino Luciani com o cardeal Lorscheider e a proximidade do futuro beato com o Brasil, tendo-o visitado em 1975.

A notícia da autorização do Papa Francisco à Congregação das Causas dos Santos para promulgar o decreto sobre o milagre atribuído à intercessão de João Paulo I enche de alegria toda a Igreja e, em especial, a Igreja do Brasil. Este gesto do Santo Padre abre caminho para a beatificação do “Papa Sorriso”, falta agora aguardar a respetiva data, que será estabelecida pelo próprio Santo Padre.

Como se referiu, é conhecida a proximidade de Albino Luciani com o Brasil, a amizade que teve com o Cardeal Aloísio Lorscheider. Este acompanhou o futuro Papa João Paulo I quando da sua ida a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em novembro de 1975, ocasião em que recebeu o diploma honoris causa da Universidade Federal gaúcha.

Em artigo publicado na Revista “30Dias” em memória do cardeal Lorscheider, falecido em 2007, a vice-postuladora do processo de beatificação de João Paulo I deixa alguns detalhes daquela visita do futuro Papa, contados por dom Aloísio, segundo o qual Luciani se sentiu em casa em Santa Maria, pois tanto ele como o povo falavam veneto. É de salientar que do Veneto – região italiana de origem de Luciani – partiram milhares italianos para o Brasil, sobretudo entre os anos 1880 e 1950. Daí, a forte presença de italianos e descendentes de italianos também no Rio Grande do Sul.

Dom Aloísio lembrou a grande multidão que se reuniu na ocasião para ouvir o então patriarca de Veneza e as muitas pessoas que viu chorar quando Luciani, com simplicidade, se lhes dirigiu falando em dialeto.

Muitas reconstruções acerca da eleição de Albino Luciani à Cátedra de Pedro apontam o cardeal Aloísio Lorscheider – junto com o cardeal Paulo Evaristo Arns – como articulador da eleição de João Paulo I. Dom Aloísio, então Arcebispo de Fortaleza e vice-presidente do CELM (Conselho Episcopal Latino-Americano), era o mais jovem dos 111 cardeais que participaram no Conclave de agosto de 1978, tinha 53 anos. Na última votação, Dom Aloísio recebeu um voto, o de Albino Luciani, como o próprio Luciani revelou: tal era a estima e o apreço de João Paulo I pela densidade humana e pastoral do então Arcebispo de Fortaleza. Uma estima recíproca. Luciani e Lorscheider tinham sido padres conciliares. Juntos, como jovens bispos, tinham participado nas quatro sessões do Concílio Ecuménico Vaticano II.

Dom Aloísio contou que, no momento de cumprimentar o novo Papa, na Capela Sistina, após a eleição, Luciani lhe disse. “Vem-me ver, fico à espera”, mas Lorscheider acrescentou: “Não cheguei a poder fazer isso”.

De facto, João Paulo I faleceu apenas 33 dias após a sua eleição para a Cátedra de Pedro. Deixou como marca indelével no coração de milhões de pessoas no mundo inteiro a sua simplicidade, humildade, humanidade e sorriso evangélico. A notícia da sua próxima beatificação traz-nos a alegria eclesial por este grande pastor que governou a Barca de Pedro no breve espaço de um sorriso.

2021.10.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Depois da rejeição da proposta governamental de Orçamento…

As esquerdas que, em 2015, possibilitaram um Governo minoritário do Partido Socialista, possibilidade estribada em acordos reduzidos a escrito entre o PS e cada um dos partidos à sua esquerda – o que alguns denominaram de geringonça e que terminou em 2019 na sequência de eleições legislativas em que o PS logrou o maio número de mandatos, mas não a maioria absoluta – agora fizeram coligação negativa com toda a direita para deitarem abaixo a proposta do Governo, não propriamente o Orçamento do Estado, que esse só existiria depois de convertido em lei, após a aprovação global final e a promulgação, a referenda e a publicação.

PCP, PEV e BE tiveram exatamente a mesma postura que em 2011, quando se juntaram à direita para o derrube do PEC-4, que tinha sido negociado com Bruxelas pelo Governo minoritário do PS, o que leva a crer que estes partidos estejam mais confortáveis como forças de protesto do que a sentir corresponsabilidade na condução da governação e na construção das possíveis políticas de esquerda no contexto dos compromissos internacionais assumidos pelo país. De resto, não se prevê que venham a obter ganhos eleitorais significativos, antes poderão obter menos ganhos que em 2011. E não faz sentido terem colaborado na rejeição da proposta do Governo para, a seguir, virem dizer ao povo que não queriam eleições, sugerindo que o Governo trabalhasse outra proposta de orçamento, o que os governantes rejeitaram de imediato, remetendo para a avaliação que o Presidente da República faça da situação e para a tomada de medidas que entender nos termos constitucionais, aproveitando a margem disponível.

Na história da democracia, só uma vez um Governo apresentou nova proposta de Orçamento do Estado depois de a primeira ter sido rejeitada pela Assembleia da República (AR). Foi em 1979 sendo Primeiro-Ministro Carlos Alberto da Mota Pinto e Ministro das Finanças Manuel Jacinto Nunes (4.º Governo Constitucional e 2.º dito de iniciativa presidencial). E o Governo apresentou em simultâneo a proposta de Orçamento e a da Grandes Opções do Plano, vindo a AR a aprovar o Orçamento e a rejeitar as Grandes Opções do Plano, após o que o Governo se demitiu.      

É sabido que o Presidente da República assumira previamente que, mal fosse rejeitada a proposta de Orçamento do Estado para 2022, partiria para a dissolução da AR, o que não devia ter feito, segundo alguns, pois condicionou publicamente o debate. Quem desejava eleições antecipadas – eventualmente PS, PSD ou outros (estão em causa os fundos europeus!) – segurou-se nas suas posições, com mais arrogância.

Com a queda da Proposta do Orçamento, que os partidos esperavam que viesse a acontecer, está o caminho aberto ao desencadeamento do processo conducente à dissolução do Parlamento. Contudo, constitucionalmente não é obrigatório que o Governo caia ou que a AR seja dissolvida por isto. Aliás, tal nunca aconteceu. Essa é prerrogativa do Presidente da República que já assumiu, por duas vezes, que se o OE 2022 fosse chumbado, a via seria a da dissolução da AR.

Antes das audiências formais obrigatórias pela Constituição, o Chefe de Estado mediu o pulso ao que achavam os partidos, via Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República. Ferro Rodrigues ouviu os partidos no dia 26, tendo a maioria de esquerda defendido que não é inevitável ir para eleições e que deveria ser dada oportunidade ao Governo de apresentar nova proposta de Orçamento do Estado. Aliás, essa é uma possibilidade aberta pela legislação. Contudo, não é expectável que Marcelo voltar atrás no que defendeu e terá, de acordo com a Constituição, de ouvir, em primeiro lugar, os partidos (previsivelmente a 30 de outubro) e o Conselho de Estado (a 3 de novembro). De acordo com a alínea e) do art.º 133.º da Constituição, o Presidente da República tem o poder de dissolver a AR, mas só depois de fazer tais audiências e tendo em conta o art.º 172.º. É, entretanto, de referir que ter de ouvir não significa obrigação de seguir o que lhe é defendido pela maioria. Além disso, propõe-se ouvir os parceiros sociais. E lembro-me de que houve um caso em que o Presidente Eanes ouviu o Banco de Portugal sobre a situação financeira do país antes de decretar a dissolução da AR e marcar eleições legislativas.  

Em relação ao momento, o Presidente pode dissolver a AR no tempo que julgar oportuno, sendo que o prazo constitucional de 60 dias para a convocação de eleições antecipadas só começa a contar depois de assinado o decreto presidencial da dissolução da AR. Na verdade, o n.º 6 do art.º 113.º da Constituição estabelece que “no ato de dissolução de órgãos colegiais baseados no sufrágio direto, tem de ser marcada a data das novas eleições, que se realizarão nos sessenta dias seguintes e pela lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica daquele ato”. Não obstante, o n.º 1 do art.º 19.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (aprovada pela Lei n.º 14/79, de 16 de maio, e cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 4/2020, de 11 de novembro) estipula um encurtamento da antecedência mínima no caso de dissolução:

O Presidente da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da República com a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a antecedência mínima de 55 dias”.

E Marcelo, que anda há semanas a dizer que se o Orçamento chumbar, inicia “logo, logo” os procedimentos para dissolver a Assembleia, poderá querer esgotar todas as possibilidades antes de o fazer, o que pode levar tempo. Até podia, em tese, decidir dar mais tempo ao Governo para apresentar segunda proposta de Orçamento, o que os partidos à esquerda mostraram querer. Porém, não se vê grande probabilidade de o Chefe de Estado voltar atrás, a não ser que reconheça que se precipitou, facto que alguns críticos lhe apontam. Por seu turno, o Governo tanto parece disponível para aceitar eleições de imediato, observados os prazos constitucionais e legais, como para governar durante algum tempo no regime de duodécimos, mas não abriu a porta nem à autorização para da proposta de Orçamento baixar à Comissão sem votação para discussão na especialidade, nem para trabalhar nova proposta de Orçamento, pois, em qualquer dos casos arriscava perda de tempo e de energia. Em todo o caso, seguirá a indicação do PR.

No entanto, o Presidente, acusado de ingerência na vida interna de partido por ter recebido um militante do PSD e candidato à sua liderança, antes de receber as direções dos partidos, até pode dar mais tempo aos partidos, nomeadamente ao do Governo e aos que, no momento, têm a liderança em disputa PSD e CDS-PP, para se reorganizarem. Isto cria obviamente engulhos ao atual líder socialdemocrata que anda de candeias às avessas porque pretendia adiar as diretas e o Congresso para depois da resolução da crise política nacional que julgava iminente, o que acabou por se verificar. E, até que haja outro Governo, o atual ficará a governar em duodécimos, isto é, de acordo com as regras e tetos de despesa definidos para cada parcela mensal deste ano de 2021, com a correção prevista na lei. A isto, Costa apontou:

Pela nossa parte, não viramos a cara ao país, às nossas responsabilidades, estamos aqui para exercer as nossas funções e governar o país de acordo com as circunstâncias, sejam elas quais forem. (…) Já tivemos de enfrentar o Procedimento por Défice Excessivo, o diabo, as sanções, uma pandemia, quem sabe se teremos de gerir em duodécimos. Não o desejo.”.

Se o Presidente da República decidir mesmo por eleições, os prazos começam a contar, como se disse, a partir do momento em que assinar o decreto de dissolução da AR. E essa data é uma decisão sua. Ora, segundo o calendário traçado por Marcelo, assim, as eleições seriam em janeiro. Porém, considerando a discussão interna no PSD e no CDS, há pedidos para as eleições serem atrasadas as novas lideranças terem tempo para se instalarem. Contudo, Rio e Rodrigues dos Santos são contra e dizem que é do interesse do país marcar rapidamente o ato eleitoral.  

Entretanto, o Governo não tem de se demitir nem o vai fazer. Com efeito, a rejeição duma proposta de Orçamento do Estado não implica a queda do Governo. O Presidente da República tem o poder de demitir o Governo apenas se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas (art.º 195.º/2 da Constituição), mas neste caso, Marcelo não quer deixar o Governo em gestão, pelo que não está em cima da mesa a demissão do Executivo de Costa até às eleições. E do lado do Primeiro-Ministro, já veio a público o propósito de não demissão. Disse-o no primeiro dia do debate do Orçamento do Estado: “Eu não me demito”. Assim, em plenitude de funções, Costa garante o financiamento e a gestão dos fundos europeus, uma das principais preocupações do Presidente da República. Na verdade, de acordo com o n.º 5 do art.º 186.º da Constituição, o Governo entra em gestão, limitando-se “à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” antes da apreciação do programa pela AR (o que só acontecerá ao Governo recém-nomeado) ou após a sua demissão (o que não acontecer).

Havia outra forma de o Governo cair sem ser por sua vontade ou do Presidente da República. Contudo, para isso acontecer, era preciso que algum dos partidos presentes apresentasse uma moção de censura ou o Governo apresentasse uma moção de confiança. Ora nenhuma das vias se apresenta politicamente viável. Do lado do Governo ninguém quer ficar com a culpa pela queda do executivo – por isso esperou que fosse a esquerda a chumbar o Orçamento – e a direita não ganharia em fazer cair o Governo, pois é a esquerda que agora se defronta na praça pública.

***

Ainda a ‘geringonça’ jazia quente na sala do plenário e Costa avisava querer pescar para o PS os votos da esquerda “frustrada” com este “inesperado” fim. Nas eleições, o PS dará tudo por tudo na pesca do voto útil para obter uma maioria “reforçada, estável e duradoura”. As eleições antecipadas começaram agora.

À saída do plenário, Costa esperou pelos ministros e ministras antes de falar aos jornalistas. Saíram como nunca tinham saído após a votação dum Orçamento: desiludidos com os antigos parceiros. Esta queda do Governo, provocada pelo chumbo do Orçamento do Estado ficará para a história. Mas os protagonistas, a começar por Costa, já pensam em como poderão ter ganhos em eleições pré-anunciadas antecipadas. O Primeiro-Ministro não tinha discurso escrito, mas nada foi improvisado. A linha estava traçada e tinha começado a sê-lo no dia anterior. Se nos discursos e respostas do dia 26 preparou terreno, dizendo que era com o PS e com a esquerda que havia estabilidade governativa, no discurso de encerramento, acabou a pedir uma “maioria reforçada, estável e duradoura numa próxima sessão legislativa”. Não proferiu a expressão “maioria absoluta”. E, quando se referiu ao pedido de maioria alargada, fê-lo evocando todos os votos que a esquerda teve junta em 2019: “dois milhões, setecentos e quarenta mil”. A leitura é que está a fazer a caça ao voto útil em busca da maioria absoluta que lhe fugiu há dois anos. E o resultado prático do apelo é: ao pedir a concentração do voto da esquerda no PS, a consequência é reduzir o peso dos partidos à esquerda, em especial do BE, a quem dedicou parte do discurso, praticamente não falando do PCP. Todo o discurso foi atirar ao voto da esquerda moderada e não ao centrão (apesar de, a dada altura, fazer a diferença para a direita). E porfiou que “a esquerda pode ser muito mais do que a não direita ou a mera oposição à direita”, pois “a esquerda tem todo o potencial para construir futuro e levar o nosso país mais além, não está condenada ao protesto e pode ser o governo equilibrado, responsável que é capaz de transformar o país”.

Parece estar a abrir a porta a uma futura ‘geringonça’, podendo ter uma configuração diferente da original: com o PCP ou com o PAN. Irá chamá-los para os retirar do “protesto” e serem também partidos de solução para os problemas nacionais”.

E, se a mensagem se podia ter perdido mercê do pedido de uma maioria maior do que a que tem atualmente, à noite, na TVI, Santos Silva explicava que, para governar, o PS admite três cenários: maioria do PS com ou sem PAN, maioria de direita ou uma nova ‘geringonça’. “É possível, porque todos os partidos aceitarão os resultados eleitorais”.

Foi nesse limbo, entre saber que pode ter de vir a negociar com a esquerda, não querendo deitar por terra a sua cooperação e tentar pescar de arrasto os votos desses partidos tentando almejar a segunda maioria absoluta do PS que se fez o debate do dia 27 no Parlamento. E, na intervenção de encerramento, Costa nunca apontou diretamente o PCP, mas para o BE não lhe falhou a voz. Das suas 9 famosas propostas, disse Costa, há “uma única” que deve ser discutida no OE. E essa foi aquela a que “o Governo já deu inequívoco e irrevogável” apoio.

A bancada bloquista retorquia com vaias e protestos. Todavia, Costa carregou no que julga o erro de chumbar um OE sem regressões e criticou 8 das 9 propostas do BE dizendo que está na hora de os partidos à esquerda deixarem de ser só de protesto, no que teve até o apoio reforçado pelo PAN, que chamou irresponsáveis aos partidos à esquerda.

Entretanto, Catarina Martins fez a defesa das medidas do BE e atacou as incongruências do PS nas leis laborais (criticou-as no tempo da troika e agora segura-as); depois, lançou a crítica direta a Costa pela recusa de acordo escrito nesta legislatura: “a geringonça foi morta pela obsessão pela maioria absoluta”. E, dois anos depois desse desejo, num momento que “devia ser mesmo de mudança”, o Governo escolheu um caminho “que não tem nada de esquerda”.

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Agora, enquanto o PR prepara soberanamente a dissolução da AR, embora conceda algum tempo à direita (pouco para não dar nas vistas) para se reorganizar e aglutinar em torno de alguém – com ou sem carisma – o PS já inaugurou a período eleitoral, num misto de vitimização e proselitismo; as esquerdas radicais vão deixar o deslumbramento pela queda épico-picaresca do Governo para cuidar dos resultados eleitorais (com sucesso ou não); e as direitas entretêm-se na disputa das lideranças (“guerras do alecrim e da manjerona), com necessidade ou sem ela, esperando que um novo Dom Sebastião lhes ponha a governação no colo.

Entretanto, os magros aumentos salariais na função pública, o ligeiro aumento das pensões de reforma e aposentação, o reforço dos abonos e a magra redução no IRS – mil milhões de euros (devem dar para as despesas eleitorais) – fazem uma pausa, esperamos que não seja perpétua; os milhões do PRR ficam em banho-maria (mesmo que o Governo se aplique a sério nisto, não há tempo útil até às eleições); o Portugal 2030 está em compasso de espera; porém, o custo de vida não para de subir e não se trava a pobreza. Famílias sofrem, empresas não recuperam, propostas e projetos de lei caducam e o país não sai da cepa torta. Virá uma solução à direita, à esquerda, ao centro, ou ao nim? É de esperar que não sejam a cantoria da “Pátria mãe” ou o uso da boina verde a transmitir o vírus do imobilismo e do atraso estrutural.

2021.10.28 – Louro de Carvalho 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Formas de cumprimento em todo o mundo sem toque físico

 O cumprimento é uma forma de saudação amigável (de confiança e respeito) entre duas pessoas ou entidades, geralmente com algum gesto e/ou fala. Obviamente as falas são próprias de cada língua e os gestos que simbolizam ou acompanham os cumprimento, muitas vezes expressos em toque físico (beijo/s, abraço, aperto de mão, junção de palmas da mão, junção de punhos…) variam de cultura para cultura.

Com o surgimento do novo coronavírus, que induziu o distanciamento físico, que alguns chamaram distanciamento social, deu-se relevo às formas de cumprimento ou saudação sem toque físico mútuo, para lá do simples aceno ou levantamento da mão.    

Do ‘wai’ tailandês às palmas com as mãos em forma de concha da Zâmbia, estas saudações sem contacto físico transmitem amizade, consideração, respeito, boas-vindas e pedido de desculpa.

O ‘namastê’, da Índia ao Nepal

Embora seja possível ouvir o termo “namastê” acompanhada dum “mudra(gesto) com as palmas das mãos unidas apontando para cima, na cultura ocidental, ele está não raro fora do seu contexto cultural e é usado inapropriadamente. Atualmente, não raro vem é estampado em sacolas e camisetas e é pronunciado no fim das aulas de beer yoga (ioga com cerveja).

Para Divya L. Selvakumar (indiana e norte-americana hindu descendente de familiares de Tamil Nadu, e fundadora da ONG American Hindu World Service), “a história do gesto remonta a milhares de anos”, sendo mencionado no Rig Veda, o mais antigo dos 4 Vedas (textos hindus importantes). O termo em sânscrito significa inclinar-se ou curvar-se perante o outro e, como diz Selvakumar, uma pessoa curva a cabeça discretamente ao fazer namastê para outra significando que “o Divino dentro de mim se curva ao mesmo Divino dentro de ti”. É sinal de respeito e gratidão. Há humildade e reverência na saudação e crê-se que o “mudra” protege quem o faça com veneração, pois, como refere Anjhula Mya Singh Bais (especialista em trauma e budismo de Nichiren), ao unir as mãos, a energia duma pessoa fica protegida e contida, em vez de absorver a energia da outra pessoa.

O ‘wai’ na Tailândia

O cumprimento convencional na Tailândia, o ‘wai’, envolve leve inclinação da cabeça com as mãos unidas na frente – uma mostra da influência do hinduísmo e do budismo na cultura tailandesa no passado e no presente. Assim, como afirma Amporn Marddent (professora do Curso de Estudos Culturais do Instituto de Artes Liberais da Universidade Walailak, em Nakhon Si Thammarat), muitos hindus e budistas rezam de mãos unidas, usando o ‘wai’, mas a história do ‘wai’ radica numa saudação que mostra que somos transparentes, não trazemos qualquer arma e vimos em paz.

Além do uso na prática espiritual e saudações, o ‘wai’ tem outras aplicações, como apresentação de dança, pedidos de desculpa e mesmo para evitar a ira de valentões.

Como frisa Marddent, o significado é bastante flexível, mas hoje, quando cumprimentamos com o ‘wai’, também dizemos ‘sawatdee kha’ ou ‘sawatdee krab(depende se for homem ou mulher). Assim, o ‘wai’ também significa ‘olá’ de uma forma muito educada. E, como não postula contacto físico, passou a saudação mais segura durante a pandemia. Até Sylvie Briand, diretora do departamento de doenças epidémicas e pandémicas da OMS (Organização Mundial da Saúde), recomendou o ‘wai’ tailandês como alternativa aceitável ao aperto de mão.

Para transmitir um nível maior de respeito, a pessoa curva-se mais e eleva as mãos um pouco mais: na altura do peito para uma saudação convencional; na altura do rosto ao cumprimentar um superior ou idoso; e com os polegares na altura da testa para demonstrar a mais fervorosa reverência, normalmente reservada para monges e para o rei.

Curvando-se no Japão

Reverência ou gesto de deferência, exclusivo da nobreza desde há mais de mil anos, é hoje a saudação não verbal mais conhecida do Japão. Afirma Yuko Kaifu, presidente da Japan House Los Angeles, iniciativa cultural do nipónico Ministério das Relações Exteriores, que o ato de se curvar foi introduzido no Japão pela China no século VII. Como ex-oficial de serviços estrangeiros, eram atribuições de Kaifu entender e executar adequadamente a etiqueta japonesa como intérprete para pessoas como a imperatriz japonesa Michiko e dignitários estrangeiros como o Presidente Ronald Reagan e a Princesa Diana.  

Diz Kaifu que este costume de se curvar era inicialmente restrito à nobreza, mas tornou-se comum entre a classe de guerreiros samurais por volta do século XII e chegou à plebe apenas após o período Edo, no século XVII. Esta saudação foi criada para distinguir classes: quem se curvasse dobrava o corpo a fim de parecer mais baixo, conta Mika White, presidente da Chapter White Inc, empresa publicitária de turismo com sede em Hiroshima, indicando que o gesto “evoluiu para a inclinação moderna utilizada como linguagem corporal para cumprimentar”. Atualmente, quando alguém se curva, pode manter os pés plantados no chão. No passado, os japoneses viviam em casas onde os ‘tatames’ eram a norma e essas reverências eram feitas da posição de sentado. A pessoa sentava-se com os joelhos dobrados (nos ‘tatames’ em baixo de si) e depois curvava-se sobre as pernas. Hoje, os japoneses raramente se sentam assim, exceto quando participam nas cerimónias do chá ou noutros rituais tradicionais. No entanto, permanece intacto o principal componente do cumprimento: abaixar a cabeça até um grau que corresponda à mensagem pretendida. Com efeito, segundo Kaifu, a curvatura do corpo e o abaixamento da cabeça transmitem respeito às outras pessoas. Assim, quando alguém se curva, fá-lo com a cabeça abaixada, sem intenção de agredir ou atacar. E os graus de inclinação transmitem diferentes mensagens: para dizer “olá”, o tronco do corpo dobra 15º a partir dos quadris; para demonstrar respeito a um superior ou cumprimentar um cliente, 30º; e, para demonstrar o mais profundo pesar, respeito ou pedir desculpas, 45º.

Apesar de Kaifu afirmar que o aperto de mão também se tornou popular no Japão e, antes da pandemia, os mais jovens se curvavam menos que os mais velhos, as preocupações atuais com a propagação do coronavírus podem trazer de volta e generalizar a saudação tradicional. Assim, aqueles que habitualmente cumprimentam mais com apertos de mão do que a curvar o tronco estão a mudar de postura. Era dito a quem planeava viajar para o Japão que não era necessário aprender como cumprimentar curvando-se porque os japoneses também costumam dar apertos de mão, mas agora é mais seguro e apropriado que os/as que ensinam etiqueta japonesa o façam ensinando a curvar-se, sem necessidade de toque físico.

Palmas com as mãos em forma de concha na Zâmbia

São comuns na Zâmbia os apertos de mão. Todavia, é possível que as pessoas se cumprimentem sem contacto físico, como asseguram William Banda, do grupo étnico Kunda, e Gerald Nyirenda, do grupo étnico Tumbuka, ambos membros da equipa de apoio de solo Zambia Ground Handlers. Assim, para expressar um simples “olá”, forma-se concha com as mãos e batem-se palmas algumas vezes enquanto se diz “mulibwanji(que significa “olá”, para qualquer hora do dia) ou “mwakabwanji(“bom dia”). Se uma pessoa estiver para se reunir com a família do cônjuge, precisará de ir mais além: enquanto coloca as mãos em forma de concha da mesma forma que para o “olá” normal, deve agachar-se e bater palmas nessa posição. De facto, abaixar o corpo enquanto se faz a saudação transmite maior respeito. Quando uma pessoa se encontra com outros idosos, pode dizer “olá” colocando uma das mãos no peito e na barriga e dobrando as pernas levemente, quase como uma reverência.

A Zâmbia abriga mais de 70 grupos étnicos, mas Banda e Nyirenda afirmam que esses gestos passaram de geração em geração e são compreendidos por todos os zambianos, desde moradores da área rural até empresários nas cidades.

Práticas evasivas do povo lakota

Para culturas como a dos lakotas, evitar intencionalmente contactos pode ser demonstração de respeito. Jennifer Weston, membro do povo lakota, tendo crescido na reserva de Standing Rock, em Dakota do Sul (EUA), afirma que, embora um aperto de mão leve com a ponta dos dedos seja cumprimento comum na sua cultura, lhe ensinaram a abster-se do contacto físico e visual na saudação a parentes do seu marido ou primos do sexo oposto e que sempre considerou essas práticas evasivas como demonstração de respeito, na linha das grandes redes familiares em que aquelas comunidades viviam. Na verdade, a família está no centro da cultura lakota e evitar o contacto físico e visual era uma forma de manter os limites adequados, o que fazia parte da ordem social para quem habitava em moradias próximas ou em famílias de várias gerações com espaços compartilhados (durante diferentes climas durante o inverno, por exemplo).

Por sua vez, Royal Lost His Blanket-Stone Jr., diretor do Departamento de Estudos de Lakota da Universidade Sinte Gleska em Rosebud (Dakota do Sul), afirma que tais protocolos familiares profundamente arraigados sobre como cada indivíduo se deve portar na estrutura familiar em relação ao contacto visual ou físico com o outro estão enraizados nas leis e valores tribais do povo lakota existentes antes do contacto euro-americano.

Para algumas famílias, tais protocolos são praxe ainda hoje. A Standing Rock é multicultural e multirreligiosa. Há, por exemplo, bastantes áreas com forte influência de tradições católicas, episcopalianas ou congregacionalistas, como há famílias mais voltadas para a espiritualidade e cerimónias tradicionais dos lakotas e famílias que misturam práticas espirituais do cristianismo e dos lakotas. Assim, as práticas religiosas e culturais variam conforme as famílias e dependem do que é passado a cada geração do núcleo familiar. E, como diz Weston, a falta de interação ou demonstração de afeto físico em relacionamentos especificados não significa falta de amor. Ao invés, os lakotas consideram que este tipo de relacionamento familiar é muito querido e apreciado, pelo que é preciso ter grande respeito por ele, devendo ser conservado e mantido, sobretudo entre pessoas de sexo diferente.

O ‘salaam’ do Islão

Com uma população estimada em 1,8 mil milhões de muçulmanos em todo o mundo, seria de se esperar a existência de variações nos gestos que acompanham a saudação tradicional “as-salaam ‘alaikum(“que a paz esteja convosco”). Efetivamente, a paz está no centro do Islão e a saudação faz parte da prática espiritual, como afirma Saifa T. Hussain, capelã associada e consultora da comunidade muçulmana e inter-religiosa da Faculdade de Middlebury, em Vermont, pelo que existe a noção de que se deve fazer uma saudação sagrada ao encontrar-se com um irmão ou irmã, categoria que os muçulmanos veem em todos os da sua comunidade. É nestes termos que Hussain diz que o muçulmano faz parte de um “ummah”, uma comunidade mundial que é quase como uma família, sendo que existem laços profundos nessa comunidade e a etiqueta e as saudações buscam promover essa atmosfera de união e amor”.

Em culturas árabes de lugares como a Jordânia e em comunidades muçulmanas do sudeste da Ásia, a pessoa simplesmente coloca a mão direita no coração ao cumprimentar.

Embora haja muitos “salaams(cumprimentos) com toque físico – é comum, nas comunidades muçulmanas, membros do mesmo sexo ou da mesma família cumprimentarem-se com aperto de mão, abraço e vários beijos na bochecha –, o contacto físico não é obrigatório. Aliás, há preocupação com o contacto físico inerente ao Islão que estipula como se devem cumprimentar as pessoas da comunidade muçulmana. E, segundo Hussain, há “Hadices(narrações proféticas) em que o profeta Maomé afirma ser proibido tocar no sexo oposto, mas observa que há outros “Hadices” que alguns estudiosos interpretam como aperto de mão entre o profeta e um círculo de novos muçulmanos que incluía mulheres. Depois, há também a questão de como devotos homossexuais e de sexualidade não binária aplicam os “Hadices” às suas vidas. Na verdade, humanos e culturas são temas complexos e o contacto físico é reflexo disso.

Diz Hussain que há “diferentes culturas e maneiras de ser” e, qualquer que seja a religião, “não há unanimidade sobre se todos se sentem confortáveis com um abraço. As pessoas também sentem desconforto com o contacto físico por outras razões. Num ambiente ou comunidade multicultural, devemos estar cientes de que existem diferentes etiquetas e diferentes níveis de conforto com o contato físico.

Uma “salaam” sem contacto físico pode ser a melhor forma de começar por respeito pelos limites pessoais ou valores religiosos ou culturais daquele/a a quem se cumprimenta, bem como pela saúde de todos em casos como durante a pandemia. Pode, de facto, fazer-se o que muitos muçulmanos fazem na própria comunidade muçulmano-americana de Hussain, em culturas árabes de lugares como a Jordânia e em comunidades muçulmanas do sudeste da Ásia: simplesmente colocar a mão direita no coração ao cumprimentar.

Na verdade, como recorda Hussain, “o coração é visto como um símbolo sagrado de grande importância na tradição islâmica, mais importante que o cérebro ou a mente”. O coração é considerado o lar da alma. Ali está sediada a vida espiritual. Por isso, tocar o coração é quase sagrado, significando ‘Que a paz esteja convosco’; e o braço direito no coração é gesto que reconhece a santidade no interlocutor.

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Há, pois, várias formas de cumprimento sem toque físico. Recordo que os militares, se uniformizados, devem fazer a continência aos superiores, a que estes devem responder. Porém, se levarem ambas as mãos ocupadas, param e olham de forma respeitosa, pedem licença e prosseguem. E, acima de tudo e com tudo, há a palavra. Já não falo da saudação romana, que foi “queimada” pelo uso nazi e fascista. Com efeito, estender a mão direita para a frente ao nível do ombro e de palma voltada para o solo era gesto de saudação de igual para igual (ainda se faz em juramento de bandeira); e fazê-lo levantando o braço à altura da cabeça significava deferência para com o superior. Porém, Hitler mostrava-se “hipersuperior” inclinando o braço para o solo.

Enfim, esta forma de saudação dispensa-se. Há as outras sem conotações negativas.

2021.10.27 – Louro de Carvalho