O Santo Padre
Francisco, neste dia 3, apareceu na janela do estúdio do Palácio Apostólico do
Vaticano para recitar o Angelus com
os fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro. E, antes da recitação
desta oração mariana, comentou o passo do evangélico proclamado na liturgia
deste XXVII domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 10,2-16).
Começou por vincar uma reação bastante incomum de Jesus: a indignação. E
o surpreendente é que a indignação não é causada pelos fariseus que O provocam
com perguntas sobre o divórcio, mas pelos discípulos que, para O protegerem da
multidão, repreendem as crianças que Lhe são levadas. Em suma, não se indigna
com os que discutem com Ele, mas com os que, para O pouparem ao cansaço, Lhe
tiram os filhos.
Para explicar
a cena, Francisco recorda anterior passagem do Evangelho em que Jesus abraça
uma criança, revelando a sua identificação de Mestre com os mais pequenos e
ensinando que são estes, os que dependem dos outros, os que precisam e não
podem retribuir, a quem devemos atender primeiro (cf Mc 9,35-37). Na verdade, quem busca Deus encontra-O
nos pequenos, nos necessitados: carentes de bens, cuidados e conforto, como os
enfermos, os humilhados, os presos, os imigrantes, os presos. Por isso, Jesus
indigna-Se: toda a afronta feita a indefeso, pobre ou criança é feita a Ele.
Agora, o Mestre retoma e completa o ensinamento acrescentando: “Quem não acolhe o reino de Deus como
criança, não entrará nele” (Mc 10,15). Está nisto a novidade: o
discípulo, além de servir os pequenos, deve “reconhecer-se como pequeno”.
Com efeito, é
imprescindível saber que somos pequenos e precisamos de salvação, sendo este o
primeiro passo para nos abrirmos ao Senhor e O acolhermos. Na
prosperidade, temos a ilusão de ser autossuficientes, de não precisarmos de
Deus. Ora, como adverte o Papa, isso é um engano, porque cada um de nós é um
ser necessitado, pelo que, procurando e reconhecendo a nossa pequenez, aí
encontraremos Jesus. Efetivamente reconhecer-se pequeno “é um ponto de partida
para o crescimento”, pois não crescemos tanto com os sucessos ou com o que temos,
mas sobretudo na luta, na pequenez e na fragilidade, que nos amadurecem e fazem
abrir o coração “a Deus, aos outros, ao sentido da vida”. Perante o
problema, a cruz, a doença, o cansaço, a solidão, cai a máscara da
superficialidade e ressurge “a nossa fragilidade radical”. Todavia, para Deus, diz o Pontífice, “as fragilidades
não são obstáculos, mas oportunidades”. E “é na fragilidade que
descobrimos quanto Deus cuida de nós”.
O Papa
Francisco sublinha que Jesus é muito terno com os pequenos, pois, “tomando-os
nos braços, abençoou-os, impondo-lhes as mãos” (Mc 10,16). De facto, quando somos pequenos, sentimos mais a ternura
de Deus, ternura que nos dá paz, nos faz crescer, porque “Deus Se
aproxima com o seu caminho, que é proximidade, compaixão e ternura”. E
Francisco salienta que, “na oração, o Senhor nos abraça, como um pai ao filho”,
tornando-nos grandes, “não na pretensão ilusória da nossa autossuficiência” – (que não torna ninguém grande), “mas na força de pôr toda a
esperança no Pai”, e quer que peçamos a Maria a graça da pequenez, a de “filhos
que confiam no Pai, certos de que Ele não deixa de cuidar de nós”.
***
O episódio
relatado no passo evangélico em referência – sigo em parte a reflexão de Dom
António Couto – situa-se após a saída de Cafarnaum por parte de Jesus e dos
discípulos, a caminho da Judeia e de Jerusalém, viajando, não pela Samaria, mas
pela margem oriental do Jordão, onde a comunidade judaica era considerável (Mc 10,1a). E o evangelista frisa que as multidões (“ókhloi”) vieram ter com Jesus, que, segundo costumava (“hôs
eiôthei”), os ensinava (Mc 10,1b). E, mais uma vez, vêm os fariseus e, “para O provocarem”
(verbo “peirázô”), perguntam se é lícito (“éxestin”) ao homem repudiar (“apolysai”, verbo “apolýô”) a mulher (Mc 10,2).
A pergunta
inútil é uma cilada, pois o divórcio era um procedimento usual entre os judeus.
Ora, se Jesus respondesse negativamente, arriscava um alvoroço nos homens que O
ouviam e poderia acentuar o conflito com Herodes Antipas, que mandara prender
João Batista por ter denunciado a sua relação irregular com Herodíades (Mc 6,18); por outro lado, se respondesse positivamente,
arriscava a entrada numa tertúlia infinda e inútil, pois eram sobejamente conhecidas
as diversas interpretações sobre a matéria: do rigorismo ao laxismo. Assim, a
escola de Shammai opinava que a separação só devia ser permitida em caso de
adultério, ao passo que a escola de Hillel entendia que a separação era
permitida por motivos triviais.
Porém, hábil
em escapar da cilada, pergunta: “O que vos ordenou (“eneteílato”, verbo “entéllomai”) Moisés?” (Mc 10,3). Eles
responderam: “Moisés permitiu (“epétrepsen”,
verbo “epitrépô”) escrever um libelo de divórcio e repudiar” (“biblíon apostasíou grápsai kaì apolýsai”:
Mc 10,4; cf DT 24,1). Os
fariseus, citando o Livro do Deuteronómio, liam a permissão do divórcio,
inferindo que o homem (só o homem) tem direito
a repudiar a esposa, direito que a mulher não tem, não podendo, em caso algum,
separar-se do marido. Face a tal resposta, Jesus repõe-lhes a verdade da Lei,
referindo que Moisés não permitiu o divórcio, mas quis apenas pôr ordem e
humanidade numa situação que os homens criaram e que azava muitas complicações.
Com efeito, a repudiada, se o divórcio não fosse documentado, continuava ligada
ao marido, não ficando livre para voltar a casar; podia ser tratada como uma casada
prófuga e, se viesse a unir-se a outro homem, podia ser acusada de adultério e
condenada à morte por lapidação (cf Dt 22,22).
Esclarecido
este ponto, Jesus declara que esta prescrição moisaica não visa permitir o
divórcio, mas pôr limites à “dureza do coração” ou “esclerose do coração”, a “sklêrokardía” do homem, a única responsável
pelo divórcio (Mc 10,5) e que, nas
palavras do Bispo de Lamego, “significa o fechamento do homem a Deus, à sua
bondade, à sua grandeza e à sua vontade” (vd Dt 10,16; Jr 4,4). E Jesus passa a expor (Mc 10,6-8) a vontade de Deus sobre o casal humano, como se pode
ver nos relatos da criação: “Deus os fez
homem e mulher” (Gn 1,27); “o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se
unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24). E conclui: “Não
separe o homem o que Deus uniu” (“Hò oûn ho Theòs synézeuxen, ánthrôpos mê khôrizétô”: Mc 10,9).
A seguir, em
casa (Mc 10,10), em ambiente de intimidade, Jesus explica aos discípulos
que incorre em adultério homem ou mulher que abandone o respetivo cônjuge e
case com outro (Mc 10,11-12). Aos
fariseus Jesus só falou do homem que repudia a esposa e casa com outra mulher
porque, entre os judeus, não era lícito à mulher repudiar o marido e casar com
outro, mas era-o no mundo grego, e os destinatários do Evangelho de Marcos
viviam no mundo greco-romano.
Embora não
tão abundantemente como o Papa, António Couto releva o gesto de Jesus de
engrandecimento das criancinhas (“paidía”), vincando que reitera aos discípulos a necessidade de
“rompermos a crosta da nossa importância, que nos separa de Deus e dos pequeninos”
(Mc
10,13-16) e referindo que é a “sklêrokardía”
que está em causa, pois, encasulados na crosta da nossa importância, não
sabemos receber. E o reino de Deus não é para comprar ou conquistar, mas para
receber. Não é a candura da criança que sobressai, mas a sua dependência e
confiança, a sua abertura à novidade.
***
O trecho evangélico
em referência tem o seu lastro, para o qual Jesus remete os discípulos, no
desígnio divino expresso na Criação e a que Jesus faz referência explícita (Gn 2,18-24). E aqui António Couto obriga-me a evocar a memória as
lições do Padre Dr. Manuel Teixeira Borges, que foi nosso professor de Sagrada
Escritura no Seminário Maior de Lamego, bem como Arnaldo Pinto Cardoso, mais
tarde.
Deus enfatiza
a verificação da solidão do homem como coisa má e grave problema que pode induzir
a morte do homem, o que o Padre Armindo passionista bem sublinhou em Santa Maria
da Feira. Assim, Deus reconhece: “Não é bom (“lo’-tôb”) que o homem (“ha’adam”) esteja só (“lebaddô”)” (Gn 2,18a). Este “não é bom” colide com o “bom” reiteradamente expresso
e com o “sim” ou termo equivalente, que perpassam Génesis 1,1-2,4a, sendo que, após
a criação de homem e mulher, Deus viu que o seu produto era “muito bom”.
Verificado o
perigo que ameaça o homem, Deus, para remediar de imediato a situação, resolve “fazer”
(“‘asah”) um auxílio (“‘ezer”) a ele correspondente ou semelhante (“kenegdô”) (Gn 2,18b). Dom António Couto adverte para o emprego do
masculino “‘ezer”, que designará a mulher, e não do feminino “‘ezrah”. O uso do masculino terá sido fruto
duma escolha premeditada, sendo, por isso, de lhe atribuir especial relevância.
Com efeito, prossegue o académico prelado, “a exegese moderna mostrou que o
título ‘auxílio’ (“‘ezer”), que aparece no Antigo Testamento por 21 vezes (Gn 2,18.20;
Ex 18,4; Dt 33,7.26.29; Sl 20,3; 33,20; 70,6; 89,19; 115,9.10.11; 121,1.2;
124,8; 146,5; Is 30,5; Ez 12,14; Os 13,9; Dn 11,34), é, na maioria dos casos, excetuadas as duas menções
do Génesis, um título dado direta ou indiretamente a Deus, que é o verdadeiro ‘auxílio’
do homem”. Mais diz que se trata, em todos os casos, dum auxílio pessoal, não
instrumental, sendo indispensável em situações de extremo perigo, a raiar a
fronteira da vida com a morte. E esse perigo que ameaça o homem (vd Gn 2,18) é a solidão, que, no limite, se reduz à coisificação.
A este considerando sobre a coisificação neste contexto não chegava então o ensinamento
de Teixeira Borges e de Pinto Cardoso. Entretanto, António Couto prossegue para
alertar:
“O homem pode perder-se no meio de
objetos, coisificando também Deus e os outros. É Deus normalmente o auxílio do
homem. A mulher surge na mente de Deus com o título grande de “auxílio” do
varão, assim como o varão é o “auxílio” da mulher, e qualquer ser humano deve
ser o “auxílio” de outro ser humano. Está assim desvendado o estranho uso,
neste contexto, do masculino ‘ezer.”.
Depois, “kenegdô” assenta na preposição “neged” (ao lado de, diante de, contra) e remete para o hiphil higgîd (narrar), para um sujeito de palavra, fazendo entrever que o “auxílio”
que Deus faz será alguém que saiba estar ao lado de alguém, não de forma prepotente,
mas com aptidão para a doçura da palavra. Assim, tal como Teixeira Borges,
avisar que o autor sagrado remava contra a corrente que tendia a colocar a
mulher como inferior ao homem, reabilitando-a, agora António Couto explana que,
dum lado (tsela‘) do ser humano, já criado, Deus “constrói” (“banah”) a mulher (’ishshah) (Gn 2,22). Ora,’ishshah, é apenas o feminino de ’îsh (feito do
barro). Sendo feita a mulher dum lado – se
fosse do pé, seria inferior ao homem; se fosse da cabeça, ser-lhe-ia superior –,
fica dito que “a mulher e o homem, juntos, são dois lados, que formam uma
unidade, como os dois lados duma porta ou duma janela”, não se podendo destruir
um sem destruir o outro. E o uso do verbo construir “banah” (construir) para a mulher pressupõe, por assimilação, o mundo da
mulher: “filhos” (“banîm”), “casa” (bêt). A mulher surge, pois, como o cume da criação.
Por outro
lado, é de anotar que, só após a construção da mulher, é que se ouve a voz
humana no quadro da criação. E isso acontece na euforia do primeiro canto de
amor do homem-noivo que saúda a mulher-noiva com a expressão “osso dos meus
ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23). Além disso,
a aparição da mulher é relatada em paralelismo com a aparição da linguagem.
E por ’îsh e ’ishshah
serem o auxílio um do outro, o lado um do outro, “o homem (’îsh) deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher (’ishshah); e serão uma só carne” (Gn 2,24). O versículo reza o inverso do sistema patriarcal, em
que é a mulher, e não o homem, que deixa a sua família para se unir ao seu
marido. Vinca António Couto que este insólito “serve aqui talvez para realçar a
grande força do amor e para mostrar que é só outro amor, e só ele, que pode
separar do primeiro amor, o amor dos pais” – não pretendendo certamente o texto
fazer referência a um sentido matriarcal, mas acentuar que são os dois a deixar
um amor anterior, porque toparam um amor mais forte, “forte como a morte” (cf Ct 8,6) e inegociável (Não separe o homem o que Deus uniu).
Também o
Bispo de Lamego faz uma abordagem que Teixeira Borges não fazia a partir daqui.
Vê também “a temática do único eleito, abençoado e portador de bênção para
todos os povos, peregrino da liberdade, chamado a deixar-se transformar em outro homem. O relato de Abraão
inicia-se com a ordem do Senhor para a viagem (lek-leka) que implica deixar a terra e a parentela e ir… (Gn 12,1-3). É nessa rota que é colocado Adam, o pai
da humanidade e toda a humanidade consigo; e agora o pai do povo escolhido. Também
os primeiros reis pisam tal estrada: Saul vai da casa do pai à procura das
jumentas perdidas (1Sm 9,3) e é ungido
rei (1Sm 10,1), sendo transformado num “homem outro” (’îsh
’aher) (1Sm 10,6) e com um “coração outro” (leb
’aher) (1Sm 10,9). David anda fora de casa, quando Samuel o procura
para o fazer rei (1Sm 16,11-13). E a amada
do Cântico dos Cânticos, símbolo de Israel e da humanidade desposada por Deus,
é mandada entrar na estrada de Abraão, mediante aquele “Vai para ti” (lekî-lak) (Ct 2,10). É a vocação-missão
de alteridade, que postula outro modo de compreender, outro coração. Esta é –
diz António Couto – a grande temática instalada no texto fundacional de Génesis
2,24. Doutro modo, o texto não faz sentido, pois não se vê como é que o
primeiro homem, modelado da terra, pode deixar o pai e a mãe.
É o amor,
firmado na semelhança e na mutualidade do auxílio, auxílio que Deus construiu,
e alimentado pela linguagem doce e construtora de comunicação e proximidade de dois
seres que se atraem e unem, sem anular a identidade e personalidade de cada um.
É este amor que ensina a abrir o coração a Deus e aos irmãos. E é a negação
desta linguagem e deste amor que torna os corações esclerosados e empedernidos.
Mas é esta linguagem verdadeiramente comunicacional e aproximante e este amor inegociável
e forte como a morte que, aliados à ternura divina, hão de britar a dureza do coração humano (“sklêrokardía”).
E é assim com
Aquele que incarnou no nosso mundo, que deu a vida por nós e sacerdotalmente
nos santifica, não se envergonhando de nos chamar seus irmãos (vd Heb 2,9-11).
2021.10.03 – Louro de Carvalho
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