sábado, 23 de outubro de 2021

Construir um mundo mais justo não é ‘política’, mas “dar corpo à fé”

 

Disse-o o Papa no encontro, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, com os membros da Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice e com os participantes da Conferência internacional “Solidariedade, cooperação e responsabilidade, os antídotos para combater as injustiças, desigualdades e exclusões”, realizada no Vaticano nos passados dias 21 a 22, e reiterando que ser “irmãos de todos” não é “utopia inatingível”, mas “um sonho possível, o mesmo de Deus”.

Nesse encontro com Francisco, o cerne da mensagem papal foi que a construção de um mundo “mais solidário, justo e equitativo” não é “questão política”, mas “dar corpo à fé” em Deus, o “amante do homem” e da vida. E sermos todos verdadeiramente “irmãos”, podendo parecer “utopia inatingível”, é mesmo “um sonho possível”, porque é o mesmo sonho de Deus. É, pois, urgente acreditar nisto e ser coerente com esta crença bem vincada.

Os temas da conferência “são grandes e essenciais”, no dizer do Pontífice, que agradeceu à presidente da Fundação, Anna Maria Tarantola, pelas suas palavras de saudação “sempre claras” e aos membros da Fundação, junto com os cientistas, economistas, ministros, cardeais e bispos que participaram dos dois dias de trabalho, e reafirmou que são reflexões importantes, vincando:

Numa época em que as incertezas e precariedades que marcam a existência de tantas pessoas e comunidades são agravadas por um ‘sistema económico que continua a descartar vidas’ em nome do deus dinheiro, incutindo comportamentos vorazes em relação aos recursos da Terra e alimentando muitas formas de iniquidade”.

Esclareceu o Santo Padre que não podemos ficar indiferentes ante a injustiça e a exploração, mas que não basta como resposta a denúncia; exige-se, antes de mais, a promoção ativa do bem”. Portanto, é preciso, não só “denunciar o mal”, mas também e sobretudo “promover o bem”. Neste sentido, exprimiu o seu apreço pela atividade da Fundação, especialmente no campo da educação e formação, bem como no “compromisso de financiar estudos e pesquisas para os jovens sobre novos modelos de desenvolvimento econômico e social, inspirados na Doutrina Social da Igreja”. E, porque se trata de algo importante, comentou:

No terreno poluído pelo predomínio das finanças, temos necessidade de muitas pequenas sementes que façam brotar uma ‘economia equitativa e benéfica’, à medida do homem e digna do homem. Temos necessidade de possibilidades que se tornem realidades, de realidades que deem esperança. Isso significa colocar em prática a Doutrina Social da Igreja.”.

No atinente ao “predomínio das finanças”, que emerge como “algo de inutilizável”, “de líquido, gasoso”, e que acaba “como a corrente de Santo António”, o Papa, deixando de lado o discurso preparado, falou dum encontro de há 4 anos com uma “grande” economista que trabalhava para um governo:

Ela disse-me que tentou criar um diálogo entre economia, humanismo e fé, e religião, e que deu certo, e que deu certo e continua indo bem, em um grupo de reflexão. Tentou o mesmo – disse-me – com as finanças, o humanismo e a religião, e não puderam nem mesmo começar. Interessante. Isso faz-me pensar.”.

Entretanto, Francisco elegeu as três palavras – solidariedade, cooperação e responsabilidade – como “três pedras angulares da Doutrina Social da Igreja”, que vê a pessoa humana “naturalmente aberta às relações”, como “o vértice da criação e o centro da ordem social, económica e política”, e contribui, com este olhar, atento ao ser humano e sensível às dinâmicas da história, para uma visão de mundo oposta à individualista, porque se alicerça na interligação entre as pessoas e tem por fim o bem comum. Ao mesmo tempo, opõe-se à visão coletivista, que ressurge em nova versão, oculta em projetos de homologação tecnocrática. E o Papa avisou:

Mas não se trata de uma ‘questão política’: a Doutrina Social está ancorada na Palavra de Deus para orientar processos de promoção humana a partir da fé no Deus feito homem. Por isso, deve ser seguida, amada e desenvolvida: apaixonemo-nos novamente pela Doutrina Social, tornemo-la conhecida: é um tesouro da tradição eclesial!”.

Francisco, dirigindo-se aos presentes, apontou que foi precisamente estudando a Doutrina Social que também eles se sentiram chamados “a comprometer-se contra as desigualdades, que ferem em particular os mais frágeis, e a trabalhar por uma fraternidade real e eficaz”.

As três palavras da Conferência, “solidariedade, cooperação, responsabilidade”, recordam, segundo o Pontífice, o mistério trinitário de Deus, que a partir da “comunhão de Pessoas” nos convida “à abertura generosa aos outros (solidariedade) por meio da colaboração com os outros (cooperação) e por meio do compromisso com os outros (responsabilidade)”. E é preciso fazer isto “em todas as expressões da vida social, por meio das relações, do trabalho, do empenho civil, da relação com a criação, a política” – disse o Santo Padre, que explanou:

Em todos os âmbitos, hoje somos mais do que nunca obrigados a testemunhar a atenção pelos outros, a sair de nós mesmos, a comprometer-nos gratuitamente com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equitativa, onde não prevaleçam o egoísmo e os interesses de parte. E, ao mesmo tempo, somos chamados a zelar pelo respeito da pessoa humana, pela sua liberdade, pela proteção da sua inviolável dignidade.”.

Esta é, para o Papa, é “a missão de pôr em prática a Doutrina Social da Igreja”. Mas, ao fazê-lo, recordou, “muitas vezes vai-se contra a corrente”, mesmo que “não estejamos sozinhos”. Porém, “Deus fez-Se próximo de nós”, não em palavras, mas encarnando-Se em Jesus. Com Ele, nosso irmão, “reconhecemos em cada homem um irmão, em cada mulher uma irmã”. Assim, como crentes, “animados por esta comunhão universal”, colaboramos, “sem medo, com cada um para o bem de todos”, sem fechamentos, visões excludentes e preconceitos. E o Papa explanou:

Como cristãos, somos chamados a um amor sem fronteiras e sem limites, sinal e testemunho de que é possível superar os muros do egoísmo e dos interesses pessoais e nacionais; superar o poder do dinheiro que muitas vezes decide as causas dos povos; superar as cercas das ideologias, que dividem e amplificam o ódio; superar cada barreira histórica e cultural e, sobretudo, superar a indiferença: aquela cultura da indiferença que, infelizmente, é quotidiana. Todos podemos ser irmãos e, portanto, podemos e devemos pensar e trabalhar como irmãos de todos.”.

A fraternidade universal “pode parecer uma utopia inatingível”, admitiu o Papa, que, porém, nos convidou a acreditar “que é um sonho possível, porque é o mesmo sonho do Deus trino”. Com a sua ajuda, o sonho “pode ​​começar a tornar-se realidade também neste mundo”. E o Papa vincou:

Para um crente, não é algo de prático desvinculado da doutrina, mas é dar corpo à fé, para o louvor de Deus, amante do homem, amante da vida. Sim, queridos irmãos e irmãs, o bem que vós fazeis a cada homem na terra alegra o coração de Deus no céu.”.

Enfim, uma grande tarefa, a de “construir um mundo mais unido, justo e equitativo”!

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Por sua vez, a presidente da Fundação Centesimus Annus pro Pontifice, que apresentou a predita conferência internacional sobre a luta contra as injustiças, as desigualdades e exclusões, garantiu que “a cooperação é a chave da vitória num mundo em mudança”. Com efeito, “levantar muros não ajuda” e “a única forma de avançar é a cooperação fraterna”.

Solidariedade, cooperação e responsabilidade” é o título da conferência internacional em referência, que se realizou Sala Nova do Sínodo, nos dias 21 e 22, como se disse. Trata-se de três nomes substantivos imbuídos de esperança que a Fundação Centesimus Annus pro Pontifice, organizadora do evento, quis dar seguimento com o subtítulo: “Antídotos para combater as injustiças, as desigualdades e as exclusões”.

Título e subtítulo foram, pois, a guia do debate entre eminentes oradores de várias disciplinas de todo o mundo, tais como o Prémio Nobel da Física 2018, Gérard Albert Mourou, e os responsáveis pela Cúria Romana, incluindo o Cardeal Secretário de Estado, o Secretário para as Relações com os Estados e o prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Discussões e mesas redondas gravitaram em torno das encíclicas Fratelli tutti e Laudato sì, que, segundo os organizadores, “representam a continuidade da Doutrina Social da Igreja na história”.

No dizer de Anna Maria Tarantola, este evento visava “analisar como concretamente os valores da solidariedade, cooperação e responsabilidade podem ser postos em prática”, pois, como disse, “para nós, estes valores são fundamentais para afrontar eficazmente todos os desafios que enfrentamos hoje: de saúde, económicos, digitais e de ecologia global”.

Questionada sobre se os desafios que destacou exigem que façamos mudanças, frisou o que designa de “mudanças epocais”, ou seja, “nos modelos empresariais e de liderança, na governance, nos paradigmas educativos e de comunicação”. Porém, advertiu:

Mas estas são mudanças que não podem ser alcançadas sem antes nos ancorarmos nos princípios da solidariedade, cooperação e responsabilidade. A pandemia mostrou-nos que só quando conseguimos pôr em prática estes três valores é que as coisas melhoraram e foram alcançados resultados notáveis.”.

Reconheceu que fechar-se e erguer muros “não produziu resultados”. Ao invés, foi pela solidariedade que “conseguimos superar as primeiras ondas da pandemia”. Agora o desafio de saúde (como o Papa recordou) “é obter uma distribuição justa de vacinas, para ajudar os países mais pobres a ultrapassar a crise”; o desafio ecológico global e o desafio digital não podem ser vencidos sem cooperação e solidariedade. De facto, a tecnologia deve ser guiada pela ética e não pela ganância, como infelizmente está a acontecer.

Do trabalho da Fundação neste ano disse que tem sido orientado neste sentido. E explicou:

E isso é feito através do trabalho dos nossos 28 grupos que operam em 12 países. Por exemplo, alguns deles apoiaram, num hospital católico, uma campanha de vacinação que deu excelentes resultados graças à presença de gestores e pessoal de saúde inspirados e motivados pela solidariedade. Assim, com esta conferência, queremos compreender como tais resultados podem ser alcançados na prática: como melhorar as condições de vida dos povos e da natureza, como cooperar realmente economicamente, como ajudar os líderes a serem verdadeiramente responsáveis.”.

Por fim, sustentou que a mudança não virá apenas de cima, dos líderes; “tem de haver também um movimento a partir de baixo”. E exemplificou com o fenómeno de Greta Thunberg, que mostra que “os jovens começaram de baixo e estão conseguindo um impacto muito grande”. Contudo, é realmente necessária “uma consciência de cima, dos líderes”.

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A 16 de outubro, o “Vatican News” anunciava a Conferência tendo como pano de fundo o convite de Francisco “a construir um mundo novo através de um processo de regeneração”.

Efetivamente é preciso cuidar do mundo que está a sair da pandemia. E as três encíclicas “Laudato sí”, “Fratelli tutti” e “Caritas in Veritate” podem ser uma bússola-guia para o caminho em direção à saída de tantas pandemias globais: pobreza, injustiça, desigualdade e guerras. Na verdade, “é possível tornar mais justa a comunidade em que se vive, enfrentando as emergências sanitárias, ecológicas e socioeconómicas, somente tomando plena consciência, em todos os níveis, da necessidade de ancorar as ações aos valores da solidariedade, da cooperação e senso de responsabilidade” – garantia-se.

Dizia-se que o evento era organizado pela Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, quase 30 anos após a sua criação (5 de junho de 1993), e seria dedicado à “Solidariedade, cooperação e responsabilidade: os antídotos para combater a injustiça, a desigualdade e a exclusão”. Nestes dias, reconhecidos oradores se revezariam para refletir e dialogar sobre os valores delineados por aquelas encíclicas, textos que juntos representam a continuidade da Doutrina Social da Igreja na história e que oferecem uma chave para enfrentar o impacto devastador da covid-19 e das tantas outras pandemias que afligem o planeta: pobreza, injustiça, desigualdade e guerras. De facto, como a pandemia do coronavírus deixou claro, 30 anos após a encíclica “Centesimus Annus (1 de maio de 1991), 12 anos após a “Caritas in Veritate (29 de junho de 2009) e 6 anos após a “Laudato sí”, a situação global não mudou, antes piorou em alguns contextos.

O evento seria aberto pela presidente da Centesimus Annus. Seguir-se-iam os pronunciamentos de Gérard Mourou, Prémio Nobel de Física; Fabiola Gianotti, Diretora-Geral do CERN, Genebra; Roberto Cingolani, Ministro de Transição Ecológica; Piero Cipollone, Diretor-Geral Adjunto do Banco da Itália; Elisa Ferreira, Comissária Europeia para a Reforma e a Coesão; Monsenhor Nunzio Galantino, presidente da Administração do Património da Santa Sé (APSA); Cardeal Luis Antonio G. Tagle, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos; Arcebispo Paul Richard Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados.

E Tarantola sublinhava:

O Papa Francisco convida-nos a não voltar ao passado, mas a construir um novo mundo por meio de um processo de regeneração. Uma regeneração que deve partir do indivíduo, de comportamentos responsáveis orientados para o bem comum e guiados pela solidariedade, caridade e verdade.”.

Era referido que a Conferência de 2021 – que tem como media parceiras o Corriere della Sera, L'Osservatore Romano, Rádio Vaticano, Vatican News – era a 3.ª etapa dum percurso iniciado em 2019 como resposta ao convite do Papa à Fundação, na audiência privada em 2019, para trabalhar pela afirmação de um desenvolvimento sustentável e integral para proteger a nossa casa comum. Depois de ter tratado a urgência de mudar os comportamentos e estilos de vida, abandonando o paradigma individualista e relativista do consumo, do desperdício e do lucro a curto prazo para lutar por uma economia com rosto humano (2019), foram analisados os novos modelos empresariais, de governança e educacionais que podem e devem ser adotados para buscar um desenvolvimento econômico e social inclusivo e sustentável (2020).

Mas os novos modelos não são concretizáveis se o comportamento das empresas, instituições, governos e indivíduos não for orientado pela solidariedade, cooperação e responsabilidade, como demonstrou a pandemia. A Conferência concentrar-se-ia nestes três valores, ouvindo as vozes de cientistas, académicos, responsáveis pelas instituições, governantes, empresas e jovens que diriam como é possível operar enquanto ancorados nestes princípios, quais pedras angulares da Doutrina Social da Igreja, e equilibrar eficiência e bem comum.

As empresas desempenham um papel importante no caminho para o desenvolvimento solidário, inclusivo e sustentável, sendo necessário olhar o novo modelo de negócios indicado pelo Papa e ter empresas conscientes das suas responsabilidades para com todos e o meio ambiente, que produzem renda com impacto positivo no território e nas pessoas que interagem com elas, criando trabalho diversificado e conhecimento, ajudando assim a superar a pobreza.

Este modelo de empresa está a aparecer timidamente no cenário empresarial. São empresas circulares, empresas que adotam os critérios Meio Ambiente, Social, Governança (ESG) e Sociedades Beneficentes. “São todos modelos – conclui Tarantola – que se aproximam do perfil indicado pelo Papa e têm bons resultados e são apreciados pelos mercados e consumidores”.

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O programa cumpriu-se como previsto. Espera-se que os resultados aflorem a médio prazo.

2021.10.23 – Louro de Carvalho

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