sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Em 2021, Pendilhe fará bem se comemorar dois factos eclesiais

 

A vida, apesar da sua normalidade, traz surpresas e a História, que tantas vezes fica por fazer, não perdoa se não honrarmos as prendas com que nos brinda.

O primeiro facto que me apraz referir é o centenário do nascimento do Cónego António Clara Ângelo, pois o “Anuário Católico(1995-1998), no atinente à diocese de Lamego, refere que nasceu em 1921, foi ordenado em 1946 e, como todos sabemos, foi pároco de Pendilhe e de São Joaninho durante quase 41 anos – desde outubro de 1953 até aos primeiros meses de 1996. Já lá vão 25 anos sobre o seu recolhimento ao Touro, sua terra natal.

Em Pendilhe, celebrou em grandes festas as bodas decenais (10 anos, em 1956) e as bodas de prata (25 anos, em 1971) da ordenação sacerdotal; testemunhou o nascimento para a fé incipiente (Batismo e 1.ª Comunhão) e para a fé adulta (Profissão de Fé e Comunhão Solene, bem como Confirmação ou Crisma) de muitíssimas pessoas, oficiou em inúmeros matrimónios e acompanhou muita gente à sepultura; zelou a preservação, restauração e ampliação do património conexo com a Igreja e incrementou a edificação de mais unidades patrimoniais; criou, estruturou e fortaleceu a catequese e outros movimentos e estruturas de apostolado a nível paroquial, destacando-se, além do Apostolado da Oração, da Cruzada Eucarística e da Ação Católica, a Mensagem de Fátima, a Liga Eucarística os Homens, os Coros Eucarísticos, os Cursos de Cristandade, as sessões de catequese de adultos e as missões paroquiais; e adaptou o templo às exigências da nova forma da liturgia.

Não fui batizado por ele, pois, a 31 de março de 1951, dia do meu Batismo, ministrado pelo Padre Evaristo Carneiro, o Padre Clara Ângelo paroquiava, desde 1957, Fonte Longa e Poço do Canto, duas paróquias do concelho de Meda. Porém, foi com o Cónego Clara Ângelo que me abeirei da vida eclesial pela catequese, que bem supervisionava e que, muitas vezes, ministrava pessoalmente, embora, regra geral, a confiasse a boas catequistas a quem proporcionava sólida formação, em sintonia com a estruturação operada pelo Cónego José Cardoso de Almeida, de quem era muito próximo colaborador, e com o Padre José Tavares, de Lamelas, cuja paróquia dispunha de salão para reuniões e tinha o sótão da igreja como dormitório. Foi com o Cónego Clara Ângelo que fiz a Primeira Comunhão e o Crisma, ambos em 1956, quando tinha apenas 5 ano de idade (dizem que me habituaram a persignar e benzer com o auxílio dos bolsos do casaquinho tipo blusa). Foi ele que me encaminhou para os seminários e, nas férias, me ocupava com algumas lides paroquiais, como transcrição de batismos, casamentos e óbitos para remessa à Curia Diocesana, ajuda à missa, procissões e horas santas, participação na catequese, reuniões da Ação Católica, acolitação em festas, canto do Ofício de Defuntos. Apoiou-nos, ao Alfredo Lacerda Ângelo e a mim, na criação e consolidação do grupo “Cantinho da Juventude” incluindo a celebração de missa especial para jovens e a encenação de várias peças teatrais tanto no velho salão paroquial como, depois, no Centro Paroquial. Várias vezes nos levava a Lamego e iniciou-nos na familiarização com o jornal. Encarregou-me da catequese e cânticos de preparação para a visita pastoral em São Joaninho no tempo do Bispo Dom Américo Henriques e no de Dom António de Castro Xavier Monteiro. E sempre se discutiram as diversas matérias com natural liberdade.

Se nem sempre o nosso relacionamento foi impecável, sobretudo quando lecionávamos na Escola Secundária de Vila Nova de Paiva e, depois, na Escola Preparatória, não obstante, devo reconhecer que sempre foi apoiante do ensino público no concelho, na linha adotada pelo Professor Eduardo Antunes Brás e pelo Padre Acácio Nunes. E, no aspeto eclesial, após a minha ordenação de diácono (15 de agosto de 1979), sempre nos encontrávamos e colaborávamos fraternalmente. E, apos a ordenação presbiteral (29 de setembro), celebrei missa em Pendilhe (7 de outubro). Fez questão de me enviar carta-convite, em 1996, para a participação nas suas bodas de ouro sacerdotais aduzindo que o meu sacerdócio estava de algum modo relacionado com o dele. Obviamente, participei no dia 5 de agosto desse ano, tal como tinha participado na celebração de despedida de Pendilhe, em que o discurso de despedida que redigira foi lido pelo Padre José Justino Lopes, dado que o Parkinson naquela circunstância lhe dificultava a voz. Fora esta a razão por que me pediu para presidir às exéquias do seu compadre, o senhor Mário Marques, e me pediu, em 1989, desculpa por não poder oficiar, presidindo, nas exéquias de minha mãe.     

Não resisto a contar dois episódios caricatos que se passaram entre nós. Pelo menos nos primeiros tempos, o Padre António era muito afável para com as crianças. Ora, em terra pobre, ficávamos contentes por recebermos tostões (em Pendilhe, dizíamos “testões”). E o abade (teria eu 4 anos) encontrou-me ao pé dum casal que estava a compor guarda-chuvas e peças de louça e perguntou-me se eu gostava mais dos tostões brancos, se dos pretos. Eu respondi: “Dos pretos”. E o abade rematou dizendo que me dava dos tostões brancos, que tinham mais valor. O outro episódio sucedeu um dia à tarde quando eu ia para a catequese. Em vez de descer sempre pela rua principal, junto à eira, virei para o caminho que dava para o carreiro que desembocava na aba lateral do adro. Entretanto, ao passar junto dum curral, ouvi um porco a roncar. Com medo, voltei para trás. Porém, o senhor Abade, que vinha da igreja para o Alto, vendo-me voltar para trás, perguntou-me porque não ia à catequese. E eu respondi: “Vou pela Latada”. E ele inquiriu: “Porque vais pela Latada”? E eu retorqui: “Não que ronca ali”! Todavia, o abade pôs-se do lado do porco e eu passei muito devagar pelo lado oposto. E fui à catequese pelo carreiro!

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Quem traça bem o perfil de Clara Ângelo é o Padre José Justino Lopes no seu livro “Estrelas no meu caminho”, que vale a pena ler e reler e de que respigo o seguinte, com vénia:                 

À primeira sugestão que um seminarista adiantado lhe faz de ir para o Seminário respondeu que não, “porque sou muito maroto”. Porém, “a 30 de julho de 1946, subia os degraus do altar, para celebrar a sua Missa Nova”. Na viagem para Resende, os mais seguros meios de transporte “eram os morosos burricos” para a bagagem enquanto as pernas, “desacostumadas daquelas longas distâncias, venciam dezenas de quilómetros por serras inóspitas e agrestes”. E, no Seminário, “as saudades, as praxes dos mais velhos e as aulas” – situação que “não melhorou com a passagem para Lamego”, pois tiveram de atravessar as privações da guerra de 1939/45, “com faltas de todo o género, racionamento alimentar, o sistema de senhas…”. Ordenado sacerdote, em julho de 1946, foi, durante um ano, coadjutor do Padre Ilídio Fernandes (natural de Pendilhe), na Penajoia, “onde se familiarizou com o Movimento da Ação Católica, com o jornalismo, nos ‘Ecos, e as demarches para a construção da igreja de Molães”. Depois, partiu para Fonte Longa e Poço do Canto. E, na Quaresma, promoveu a pregação geral, como referiu:

No ardor apostólico de uma pujante, viçosa e irrequieta juventude sacerdotal, nesses tempos áureos da Ação Católica, com o seu método ‘Ver, Julgar e Agir’, pensamos levar tudo de vencida e levar o Evangelho a todos os recantos das paróquias (…), ir ao encontro das ovelhas carecidas do pão da Palavra Divina; promoveu-se uma campanha de pregação geral que atingisse até os lugares mais distantes e inacessíveis.”.

“Em outubro de 1953 foi transferido para Pendilhe e São Joaninho, que paroquiou durante 41 anos e, devido ao Parkinson que o limitava, foi convidado a sair, duma forma seca e própria de amanuenses inveterados!. E o Padre Justino escreveu sobre o perfil de Clara Ângelo:

Dinâmico na promoção das gentes e povos, estruturador de vértebras pastorais, criador de movimentos paroquiais que melhor servissem os povos, ainda tinha tempo para calcorrear a Diocese e não só, realizando cursos de catequese, orientando a ‘Revista Catequística’, mantendo programas, ousados para a época, na Rádio Alto Douro, fundando e mantendo um jornal paroquial – ‘A Voz do Centro Paroquial’, viajando para visitar emigrantes, ajudando sempre os colegas, enfim, um Andarilho de Deus.”.

Na celebração da despedida, declarou que os seus haveres eram “do conhecimento de todos”, se habituara “a viver modestamente” e a contentar-se com pouco e que nunca o ouviram queixar-se “sobre aspetos de subsistência”. E, como Samuel ousou dizer ‘insenui et incanui inter vos’.

Em 26 de janeiro de 2006, ouviu em definitivo a voz do Pai. E o Padre Justino, que lhe chamou “andarilho de Deus”, acaba a elogiar-lhe a voz de “rouxinol do Paiva”, já sem a rouquidão do Parkinson, e a querer que ela cante “a santidade de Deus”.

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O outro facto que merece a comemoração dos pendilhenses é o cinquentenário do Centro Paroquial de Nossa Senhora da Assunção, que foi inaugurado no mesmo dia em que Pendilhe celebrou as bodas de prata do seu pároco e dos companheiros de ordenação presbiteral, num belo dia de julho de 1971.

A obra, concebida em termos exigidos ao tempo, foi ideia de Clara Ângelo, pela qual apostou quase tudo, incluindo uma digressão pelo Brasil de aproximadamente um mês, em que foi substituído por um recém-ordenado sacerdote, o Padre Bouça Pires. O objetivo da digressão, além do contacto do pároco com pendilhenses residentes no Brasil, era a angariação de fundos para a construção e apetrechamento do Centro Paroquial, o que, na paróquia, era replicado com algumas iniciativas do Cantinho da Juventude, um informal grupo de reflexão e apostolado.

No seu regresso do Brasil, foi recebido em apoteose pela gente de Pendilhe numa noite fresca e húmida, entre cânticos e discursos e com promessa do boletim paroquial noticioso e formativo.

Não sei se a obra correspondeu aos ditames propalados: apoio às novenas de Nossa Senhora da Assunção e/ou eventual residência de férias de emigrantes pendilhenses no Brasil. Em todo o caso, o edifício, instalado num terreno comprado pelo Padre João Pereira Gonçalves quando foi transitoriamente pároco de Pendilhe, passou a oferecer um cómodo salão de reuniões e um salão de espetáculos, além de estar equipado com cozinha, sala de jantar, escritório e quartos.

Como disse, a inauguração foi conjunta com as bodas de prata sacerdotais de Clara Ângelo. E o evento foi precedido de um tríduo em que pregou o Padre Adérito dos Santos Carvalho. A festa constou, da parte da manhã, de solene concelebração da campal da Missa, no adro, sob a presidência do Bispo emérito, Dom João da Silva Campos Neves, concelebrada pelos sacerdotes em bodas de prata e pelos naturais de Pendilhe: João Pereira Gonçalves, Ilídio Augusto Fernandes (ou Ilídio Fernandes dos Santos) e Adérito dos Santos Carvalho. Pregou o Cónego Simão Morais Botelho, então Vice-reitor do Seminário de Lamego. Como era de esperar, o povo acorreu em massa. O Alfredo orientou o coro e eu servi de cerimoniário e fiz as admonições da Missa. A Casa Ferreira (antiga “Sótécnica”), de Lamego, encarregou-se da boa qualidade do som.

À tarde, o Bispo diocesano, Dom Américo Henriques, procedeu à bênção e inauguração do imóvel; e, à noite, o Cantinho da Juventude inaugurou o salão de espetáculos levando à cena duas peças de teatro, sendo uma delas um drama, cujo nome não recordo e em que fiz de ponto, e a tragicomédia “Festa na Aldeia”, escrita pelo Padre Dr. Rui Morais Botelho.

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Se recordar é viver, celebrar é graça e gratidão da memória que não esquece quem a ilustra!

2021.10.01 – Louro de Carvalho

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