sábado, 2 de outubro de 2021

PR tem a última palavra na exoneração e nomeação do CEMA

 

Episódica ou anedoticamente no dia em que deixou o Vice-almirante Gouveia e Melo, em cerimónia solene, a direção de taskforce das vacinas contra a covid-19, estalou a polémica da esperada exoneração de Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) e a nomeação de novo CEMA, que recairia (creio que recairá) sobre o oficial-general que regressou do mar da pandemia para o mar da Armada. E a opinião pública foi prendada por uma fuga de informação que, num processo destes (nomeação), não é desejável nem era expectável.

Como é natural, um Governo desgastado pelo exercício atribulado pela pandemia e crises inerentes, pela inépcia (sobretudo comunicativa) de alguns dos seus membros – ministros e secretários de Estado – e agora pelo decréscimo de resultados eleitorais por parte do partido que suporta o Governo, é presentemente apontado como desestabilizador, desrespeitador do prestígio das forças armadas, indelicado para com o CEMA em funções e obnubilador do mérito do ex-diretor da taskforce das vacinas. E chamam a Gouveia e Melo um independente que veio a conseguir o que os boys do PS não conseguem.

São de registar, como tem sido assaz difundido, o mérito, a capacidade de liderança e postura humilde e realista do Vice-almirante em causa. Porém, chamar-lhe independente é redundância no que se refere aos militares no ativo; e destinar-lhe necessariamente um papel político de relevo ou a chefia do Estado-Maior do seu ramo militar é abstruso para quem está para servir.

Adiantar que o atual CEMA e o Ministro da Defesa Nacional já andavam de candeias às avessas há uns tempos pode não corresponder totalmente à verdade; dizer que este governo desrespeita as forças armadas (FA) é esquecer que todos os têm feito desde 1982; pedir a demissão de quem procedeu à aludida fuga de informação contradiz o silêncio feito aquando das quebras do segredo de justiça com intenções de agenda política ou a postura de vista grossa e lágrimas de crocodilo pela fuga de condenados da justiça para o estrangeiro; dizer que o Governo beliscou o prestígio do Vice-almirante ou que Marcelo desautorizou drasticamente o Governo não passa de análise superficial e talvez enviesada; e aduzir inocentemente que o almirantado arrasou a proposta de nomeação de Gouveia e Melo é não conhecer o meio militar.   

Reza a alínea p) do art.º 133.º da Constituição, no quadro da competência do Presidente da República quanto a outros órgãos, que lhe compete:

Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas”.

Por seu turno, o n.º 3 do art.º 193.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), estabelece que os oficiais-generais titulares dos cargos previstos nos números anteriores – CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas), CEM (Chefe do Estado-Maior) do ramo, Vice-Chefe do Estado-Maior do ramo – são nomeados e exonerados nos termos previstos na LDN (Lei da Defesa Nacional) e na LOBOFA (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas).

A LDN estabelece, no n.º 1 do seu art.º 12.º, que “o Governo é o órgão de condução da política de defesa nacional e das Forças Armadas e o órgão superior de administração da defesa nacional e das Forças Armadas”.

Já o art.º 19.º da LOBOFA é mais claro no atinente aos procedimentos ao estipular:

“1 - Os Chefes de Estado-Maior dos ramos são nomeados e exonerados pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, a qual deve ser precedida de audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do CEMGFA.

“2 - O CEMGFA pronuncia-se, nos termos do número anterior, após audição do Conselho Superior do respetivo ramo.

“3 - O Governo deve iniciar o processo de nomeação dos Chefes de Estado-Maior dos ramos, sempre que possível, pelo menos um mês antes da vacatura do cargo, por forma a permitir a substituição imediata do respetivo titular.

“4 - Se o Presidente da República discordar do nome proposto, o Governo apresentar-lhe-á nova proposta.”.

Segundo o que percebi, o Ministro da Defesa Nacional quis ouvir, antes de mais, o CEMA em exercício para, depois dar execução ao estipulado no n.º 3. Se o não fizesse, seria acusado de indelicadeza. Como o fez, é acusado de falta de respeito, desvalorização e prepotência. 

As más-línguas vieram particularizar o caso do CEMA que expôs corajosamente o seu ponto de vista sobre a reforma das FA, esquecendo que os outros chefes dos respetivos ramos também o fizeram e que, aprovada a lei, a ela se submeteram como é apanágio das FA em situação normal.

Dizem que o PR chamou a Belém o Primeiro-Ministro e o Ministro da Defesa Nacional para lhes puxar as orelhas, quando, pelos vistos, foi Costa quem solicitou a audiência.

O PR, à margem da sua presença num evento, esclareceu que houve três equívocos: que o CEMA aceitou a recondução no cargo nos primeiros meses deste ano e se disponibilizara para interromper o exercício de modo a que outros camaradas pudessem desempenhar o cargo, não havendo aqui prepotência de ninguém; que efetivamente o CEMA se manifestou contra a predita reforma no Conselho Superior de Defesa Nacional e no Parlamento, como é seu direito e como os outros chefes fizeram, sendo que todos, aprovada a lei, a acataram; e que foi indevida e desnecessariamente envolvido na polémica o Vice-almirante Gouveia e Melo.

Por fim, disse duas coisas: tudo irá acontecer num tempo que não é o presente; e que a última palavra é do PR, sendo sua a decisão.

Ora, segundo a edição online do “Nascer do SOL”, deste dia 2 de outubro, “o Presidente da República estava a par de todo o processo” que levará à nomeação de Gouveia e Melo como CEMA e que “os ‘equívocos’ foram criados pela Casa Militar do PR, mas estão ultrapassados”. E a dita publicação explicita:

Não era segredo que o Governo queria promover Gouveia e Melo a Chefe do Estado-Maior da Armada e o Presidente da República estava a par de todo o processo. O que aconteceu esta semana na cúpula da Marinha é descrito por fontes militares ao ‘Nascer do SOL’ como um conluio para travar a nomeação, com Marcelo Rebelo de Sousa a ser ‘manipulado’ pelo seu chefe da Casa Militar em algo que poderia ter resolvido com um simples telefonema ao Ministro da Defesa ou ao Primeiro-Ministro.”.

Só 24 horas depois, após audiência com António Costa e Gomes Cravinho, já com  a crise política instalada, o PR tinha negado qualquer exoneração, falado de equívocos e dado um puxão de orelhas público ao Governo, dizendo que “A palavra final é do Presidente”. Ora isso não estava em causa, pois o Governo não demitira Mendes Calado, nem o podia fazer. Cabe-lhe a proposta, sendo a nomeação da competência de Marcelo, que estava informado dessa intenção de proposta. Tanto assim é que Marcelo falou da disponibilidade do Almirante CEMA.

O Ministro, entretanto, ouviu o conselho superior do ramo, que é, neste caso, o almirantado. E este, segundo consta, arrasou a indigitação de Gouveia e Melo. É mais que normal um certo conservadorismo num grupo institucional que se sentiu ultrapassado por uma notícia passada à comunicação social antes de ser discutida no grupo; e, como os militares, também não são de pau, é normal que haja mais pretendentes ao cargo.  

Mais: a questão parece não ser só de agora. Segundo o “Nascer do SOL,  a proposta de Gouveia e Melo para CEMA estava fechada por parte do Governo na altura em que o mandato de António Mendes Calado foi prolongado em março por um prazo máximo de dois anos. Na altura, aliás, a proposta foi feita nessa base ao almirante por se pensar que o processo de vacinação poderia ser mais prolongado. Aliás, o PR deixou-o entender na sua declaração. O que fora dito ao almirante foi que ficaria no cargo no máximo até ao verão de 2022.

Ora, anunciado o fim da taskforce, o Governo iniciou o processo tendente à substituição, cumprindo os trâmites legais acima referenciados. Começou por chamar Mendes Calado, avisando-o de que iria propor a sua exoneração e a nomeação de Gouveia e Melo, como estava apalavrado; depois, o Ministro pediu parecer, não vinculativo, ao Conselho do Almirantado, que é presidido pelo CEMA, e um parecer, não vinculativo, ao CEMGFA, Silva Ribeiro. Só com estes pareceres, não vinculativos (ouvir não implica seguir), é que o Governo poderia fechar a proposta em Conselho de Ministros, remetendo-a para Belém.

No entanto, horas depois do primeiro telefonema do Ministro ao CEMA e da reunião entre Calado e Gomes, surgem notícias a dar conta de que o CEMA tinha sido demitido, associando a demissão às opiniões críticas que o Almirante manifestara em relação à reorganização da estrutura superior das FA. Segundo fontes militares, houve adulteração do que fora dito na reunião. A informação chegou a Marcelo enviesada, num conluio que fonte da Defesa diz ter sido manobra para eliminar o candidato, movida por outros dois militares que estavam na linha de sucessão ao cargo, dada a sua antiguidade: o Vice-almirante Luís Carlos de Sousa Pereira, nomeado em março chefe da Casa Militar, e o Vice-almirante Jorge Novo Palma, Vice-Chefe do Estado-Maior da Armada. 

Sem tentar desfazer o primeiro dos equívocos, Marcelo falou aos jornalistas na manhã do dia 29, no momento em que o Conselho do Almirantado se reunia para se pronunciar sobre a proposta de exoneração dada a conhecer pelo Governo no dia anterior, seguindo o trâmite normal e evidenciando que não havia qualquer exoneração consumada. E, pelos visto, quando se iniciou tal reunião, já Calado estava confortado com a promessa do PR de que não seria exonerado para já.

Segundo o “Nascer do SOL”, no conselho, Mendes Calado, que nunca dissera aos colegas que tinha combinado com o Governo que sairia no máximo até ao verão de 2022 para dar lugar a Gouveia e Melo, instigou os oficiais-generais contra o Executivo: “Pensam que mandam nos militares mas nós temos que resistir”. Assim, a reunião terminou com o parecer negativo à exoneração de Calado, sendo que o próprio, que presidiu à sessão, votou contra a sua exoneração. O chefe da Casa Militar, que integra o conselho, também votou contra. Eram seis almirantes os presentes e votaram por unanimidade contra a exoneração.

Então o ‘ambiente de PREC’ de que falavam os jornais é dos militares, não do Governo. E foi quando Costa e Cravinho foram recebidos em Belém que Marcelo percebeu que fora enganado. Por isso, “ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a propósito da Chefia do Estado-Maior da Armada”, como reza uma curta nota da Presidência da República, sem clarificar que equívocos. O Governo deu nota ao PR de que o processo estava a seguir os trâmites normais e que a proposta de exoneração e a de nomeação seriam entregues em Belém a seu tempo, recusando qualquer demissão à margem do que está previsto na lei, o que não poderia fazer.

Quem conhece processo diz que o parecer do Almirantado pode conter irregularidades, dado que o CEMA não pediu escusa de participar na discussão e votação da própria exoneração. Com efeito, segundo o Código do Procedimento Administrativo (art.º 69.º), não podem estar presentes no momento da discussão nem da votação membros do órgão que se encontrem ou se considerem impedidos. A lei determina, entre motivos de impedimento, ter interesse para si ou familiares, admitindo algumas exceções, que estão lá expressas. 

E diz-se que Mendes Calado não tinha a confiança política do Governo há muito tempo e que é alvo de críticas na Armada. Polémicas recentes são, por exemplo: ter mandado construir, em plena pandemia, um campo de golfe no Alfeite; ter decidido abater o NRP Bérrio, navio de abastecimento, sem uma alternativa, colocando um problema às fragatas que se abastecem no mar; e ter adjudicado a reparação de três fragatas a uma empresa holandesa por 300 milhões, o que levantou críticas entre militares por terem sido preteridos os estaleiros nacionais. 

***

Ora, sendo verdade o que refere o “Nascer do Sol”, o PR deveria deixar publicamente claro, em nome a solidariedade entre órgãos de soberania, que tem apregoado, que o Governo não falhou e fazer regressar à sua guarnição o seu Chefe da Casa Militar. Dizer que este não é o tempo da substituição é empurrar a questão com a barriga e garantir ao CEMA a sua não substituição pode ser indício de que não gostou muito da popularidade granjeada por Gouveia e Melo e o Almirantado não fica bem na fotografia: resistir a quem manda, por alma de quem?

Por fim, é verdade que o PR tem a última palavra. A Constituição não põe a hipótese de que Marcelo rejeite a proposta do Governo nem a proíbe, mas a LOBOFA prevê que o PR possa rejeitar o nome proposto, devendo o Governo fazer nova proposta. Porém, é impensável fazê-lo indefinidamente, pelo que o mais aconselhável é a concertação, que tem sido até usual.

Ter a palavra final e decidir em última instância, sim, mas não ter a palavra em público no início do processo e no meio, muito menos ao virar da esquina e dando a ideia de que puxa as orelhas a quem quer que seja. Além disso, quem tem a última palavra deve ter a humildade de que ela possa vir a ser um mero “Sim”. Fazer da última palavra o “não” ou “eu é que decido” ou “eu é que sei” pode ser mal avisado.

É certo que o PR é o comandante supremo das FA. Mas já imaginaram um general vir dar voz de comando a um batalhão, uma companhia ou um pelotão? O comando supremo é, sobretudo, civil, honorífico, protocolar e de presidência; não de tática, de operação, arma ou quezília…

O povo cristão – e Marcelo afirma-se católico – também tem a última palavra, que é habitualmente “Ámen”; e, no fim da missa, a última palavra do povo, que é quem mais ordena, é: “Graças a Deus!”.  

Termino referindo um caso que sucedeu comigo. Vi, em determinada paróquia, uns cartazes que referiam que “O POVO DIZ NÃO” a uma série de coisas. Passei casualmente pelo chefe de partido e, na brincadeira, referi:

Que pena! O Povo não diz ‘não’. Quando rezo com o Povo, costuma responder ‘Ámen’ e ‘Graças a Deus’. Não é lícito caluniar o Povo.”.   

Não sei lá porquê, minutos depois, não havia qualquer cartaz afixado. O interlocutor levou sério a brincadeira.

***

Só peço ao PR que diga mesmo a última palavra, mas como última palavra, não banalizável, e não como a palavra de cada dia ao virar da esquina, mesmo que seja à saída da Casa do Artista.

2021.10.02 – Louro de Carvalho

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