Episódica
ou anedoticamente no dia em que deixou o Vice-almirante Gouveia e Melo, em
cerimónia solene, a direção de taskforce das vacinas contra a covid-19, estalou
a polémica da esperada exoneração de Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) e a nomeação de novo
CEMA, que recairia (creio que recairá) sobre o oficial-general que regressou do mar
da pandemia para o mar da Armada. E a opinião pública foi prendada por uma fuga
de informação que, num processo destes (nomeação), não é desejável nem era expectável.
Como
é natural, um Governo desgastado pelo exercício atribulado pela pandemia e
crises inerentes, pela inépcia (sobretudo comunicativa) de alguns dos seus membros – ministros e
secretários de Estado – e agora pelo decréscimo de resultados eleitorais por
parte do partido que suporta o Governo, é presentemente apontado como
desestabilizador, desrespeitador do prestígio das forças armadas, indelicado
para com o CEMA em funções e obnubilador do mérito do ex-diretor da taskforce
das vacinas. E chamam a Gouveia e Melo um independente que veio a conseguir o
que os boys do PS não conseguem.
São
de registar, como tem sido assaz difundido, o mérito, a capacidade de liderança
e postura humilde e realista do Vice-almirante em causa. Porém, chamar-lhe
independente é redundância no que se refere aos militares no ativo; e destinar-lhe
necessariamente um papel político de relevo ou a chefia do Estado-Maior do seu
ramo militar é abstruso para quem está para servir.
Adiantar
que o atual CEMA e o Ministro da Defesa Nacional já andavam de candeias às
avessas há uns tempos pode não corresponder totalmente à verdade; dizer que
este governo desrespeita as forças armadas (FA) é esquecer que todos os têm feito desde 1982;
pedir a demissão de quem procedeu à aludida fuga de informação contradiz o
silêncio feito aquando das quebras do segredo de justiça com intenções de
agenda política ou a postura de vista grossa e lágrimas de crocodilo pela fuga
de condenados da justiça para o estrangeiro; dizer que o Governo beliscou o
prestígio do Vice-almirante ou que Marcelo desautorizou drasticamente o Governo
não passa de análise superficial e talvez enviesada; e aduzir inocentemente que
o almirantado arrasou a proposta de nomeação de Gouveia e Melo é não conhecer o
meio militar.
Reza
a alínea p) do art.º 133.º da Constituição, no quadro da competência do
Presidente da República quanto a outros órgãos, que lhe compete:
“Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas, o Vice-Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os Chefes de
Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos
casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas”.
Por seu
turno, o n.º 3 do art.º 193.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), estabelece que os
oficiais-generais titulares dos cargos previstos nos números anteriores –
CEMGFA (Chefe
do Estado-Maior General das Forças Armadas), CEM (Chefe do Estado-Maior) do ramo, Vice-Chefe do
Estado-Maior do ramo – são nomeados e exonerados nos termos previstos na LDN (Lei da Defesa Nacional) e na LOBOFA (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas).
A LDN
estabelece, no n.º 1 do seu art.º 12.º, que “o Governo é o órgão de condução da política
de defesa nacional e das Forças Armadas e o órgão superior de administração da
defesa nacional e das Forças Armadas”.
Já
o art.º 19.º da LOBOFA é mais claro no atinente aos procedimentos ao estipular:
“1 - Os Chefes de Estado-Maior dos ramos são
nomeados e exonerados pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, a
qual deve ser precedida de audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do
CEMGFA.
“2 - O CEMGFA pronuncia-se, nos termos do número
anterior, após audição do Conselho Superior do respetivo ramo.
“3 - O Governo deve iniciar o processo de
nomeação dos Chefes de Estado-Maior dos ramos, sempre que possível, pelo menos
um mês antes da vacatura do cargo, por forma a permitir a substituição imediata
do respetivo titular.
“4 - Se o Presidente da República discordar do
nome proposto, o Governo apresentar-lhe-á nova proposta.”.
Segundo o que percebi, o Ministro
da Defesa Nacional quis ouvir, antes de mais, o CEMA em exercício para, depois
dar execução ao estipulado no n.º 3. Se o não fizesse, seria acusado de
indelicadeza. Como o fez, é acusado de falta de respeito, desvalorização e
prepotência.
As más-línguas vieram
particularizar o caso do CEMA que expôs corajosamente o seu ponto de vista sobre
a reforma das FA, esquecendo que os outros chefes dos respetivos ramos também o
fizeram e que, aprovada a lei, a ela se submeteram como é apanágio das FA em
situação normal.
Dizem que o PR chamou a Belém o
Primeiro-Ministro e o Ministro da Defesa Nacional para lhes puxar as orelhas,
quando, pelos vistos, foi Costa quem solicitou a audiência.
O PR, à margem da sua presença
num evento, esclareceu que houve três equívocos: que o CEMA aceitou a
recondução no cargo nos primeiros meses deste ano e se disponibilizara para
interromper o exercício de modo a que outros camaradas pudessem desempenhar o
cargo, não havendo aqui prepotência de ninguém; que efetivamente o CEMA se
manifestou contra a predita reforma no Conselho Superior de Defesa Nacional e
no Parlamento, como é seu direito e como os outros chefes fizeram, sendo que
todos, aprovada a lei, a acataram; e que foi indevida e desnecessariamente
envolvido na polémica o Vice-almirante Gouveia e Melo.
Por fim, disse duas coisas: tudo
irá acontecer num tempo que não é o presente; e que a última palavra é do PR,
sendo sua a decisão.
Ora, segundo a edição online do “Nascer do SOL”, deste dia 2 de outubro,
“o Presidente da República estava a
par de todo o processo” que levará à nomeação de Gouveia e Melo como CEMA e que
“os ‘equívocos’ foram criados pela Casa Militar do PR, mas estão ultrapassados”.
E a dita publicação explicita:
“Não era segredo que o Governo queria promover Gouveia e Melo a Chefe do
Estado-Maior da Armada e o Presidente da República estava a par de todo o
processo. O que aconteceu esta semana na cúpula da Marinha é descrito por
fontes militares ao ‘Nascer do SOL’
como um conluio para travar a nomeação, com Marcelo Rebelo de Sousa a ser
‘manipulado’ pelo seu chefe da Casa Militar em algo que poderia ter resolvido
com um simples telefonema ao Ministro da Defesa ou ao Primeiro-Ministro.”.
Só
24 horas depois, após audiência com António Costa e Gomes Cravinho, já
com a crise política instalada, o PR tinha negado qualquer exoneração,
falado de equívocos e dado um puxão de orelhas público ao Governo, dizendo que
“A palavra final é do Presidente”.
Ora isso não estava em causa, pois o Governo não demitira Mendes Calado, nem o
podia fazer. Cabe-lhe a proposta, sendo a nomeação da competência de Marcelo,
que estava informado dessa intenção de proposta. Tanto assim é que Marcelo
falou da disponibilidade do Almirante CEMA.
O
Ministro, entretanto, ouviu o conselho superior do ramo, que é, neste caso, o
almirantado. E este, segundo consta, arrasou a indigitação de Gouveia e Melo. É
mais que normal um certo conservadorismo num grupo institucional que se sentiu
ultrapassado por uma notícia passada à comunicação social antes de ser
discutida no grupo; e, como os militares, também não são de pau, é normal que
haja mais pretendentes ao cargo.
Mais:
a questão parece não ser só de agora. Segundo o “Nascer do SOL”, a proposta de Gouveia e Melo para CEMA estava
fechada por parte do Governo na altura em que o mandato de António Mendes
Calado foi prolongado em março por um prazo máximo de dois anos. Na altura,
aliás, a proposta foi feita nessa base ao almirante por se pensar que o
processo de vacinação poderia ser mais prolongado. Aliás, o PR deixou-o
entender na sua declaração. O que fora dito ao almirante foi que ficaria no cargo
no máximo até ao verão de 2022.
Ora,
anunciado o fim da taskforce, o Governo iniciou o processo tendente à
substituição, cumprindo os trâmites legais acima referenciados. Começou por
chamar Mendes Calado, avisando-o de que iria propor a sua exoneração e a
nomeação de Gouveia e Melo, como estava apalavrado; depois, o Ministro pediu
parecer, não vinculativo, ao Conselho do Almirantado, que é presidido pelo
CEMA, e um parecer, não vinculativo, ao CEMGFA, Silva Ribeiro. Só com estes
pareceres, não vinculativos (ouvir não implica seguir), é que o Governo poderia fechar a proposta em
Conselho de Ministros, remetendo-a para Belém.
No
entanto, horas depois do primeiro telefonema do Ministro ao CEMA e da reunião
entre Calado e Gomes, surgem notícias a dar conta de que o CEMA tinha sido
demitido, associando a demissão às opiniões críticas que o Almirante
manifestara em relação à reorganização da estrutura superior das FA. Segundo
fontes militares, houve adulteração do que fora dito na reunião. A informação
chegou a Marcelo enviesada, num conluio que fonte da Defesa diz ter sido
manobra para eliminar o candidato, movida por outros dois militares que estavam
na linha de sucessão ao cargo, dada a sua antiguidade: o Vice-almirante Luís
Carlos de Sousa Pereira, nomeado em março chefe da Casa Militar, e o Vice-almirante
Jorge Novo Palma, Vice-Chefe do Estado-Maior da Armada.
Sem
tentar desfazer o primeiro dos equívocos, Marcelo falou aos jornalistas na
manhã do dia 29, no momento em que o Conselho do Almirantado se reunia para se
pronunciar sobre a proposta de exoneração dada a conhecer pelo Governo no dia
anterior, seguindo o trâmite normal e evidenciando que não havia qualquer
exoneração consumada. E, pelos visto, quando se iniciou tal reunião, já Calado
estava confortado com a promessa do PR de que não seria exonerado para já.
Segundo
o “Nascer do SOL”, no conselho,
Mendes Calado, que nunca dissera aos colegas que tinha combinado com o Governo
que sairia no máximo até ao verão de 2022 para dar lugar a Gouveia e Melo, instigou
os oficiais-generais contra o Executivo: “Pensam
que mandam nos militares mas nós temos que resistir”. Assim, a reunião
terminou com o parecer negativo à exoneração de Calado, sendo que o próprio,
que presidiu à sessão, votou contra a sua exoneração. O chefe da Casa Militar,
que integra o conselho, também votou contra. Eram seis almirantes os presentes
e votaram por unanimidade contra a exoneração.
Então
o ‘ambiente de PREC’ de que falavam os jornais é dos militares, não do Governo.
E foi quando Costa e Cravinho foram recebidos em Belém que Marcelo percebeu que
fora enganado. Por isso, “ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a
propósito da Chefia do Estado-Maior da Armada”, como reza uma curta nota da
Presidência da República, sem clarificar que equívocos. O Governo deu nota ao
PR de que o processo estava a seguir os trâmites normais e que a proposta de
exoneração e a de nomeação seriam entregues em Belém a seu tempo, recusando
qualquer demissão à margem do que está previsto na lei, o que não poderia fazer.
Quem
conhece processo diz que o parecer do Almirantado pode conter irregularidades,
dado que o CEMA não pediu escusa de participar na discussão e votação da
própria exoneração. Com efeito, segundo o Código do Procedimento Administrativo
(art.º 69.º), não podem estar
presentes no momento da discussão nem da votação membros do órgão que se
encontrem ou se considerem impedidos. A lei determina, entre motivos de
impedimento, ter interesse para si ou familiares, admitindo algumas exceções,
que estão lá expressas.
E diz-se que Mendes Calado não tinha a
confiança política do Governo há muito tempo e que é alvo de críticas na
Armada. Polémicas recentes são, por exemplo: ter mandado construir, em plena
pandemia, um campo de golfe no Alfeite; ter decidido abater o NRP Bérrio, navio
de abastecimento, sem uma alternativa, colocando um problema às fragatas que se
abastecem no mar; e ter adjudicado a reparação de três fragatas a uma empresa
holandesa por 300 milhões, o que levantou críticas entre militares por terem
sido preteridos os estaleiros nacionais.
***
Ora,
sendo verdade o que refere o “Nascer do
Sol”, o PR deveria deixar publicamente claro, em nome a solidariedade entre
órgãos de soberania, que tem apregoado, que o Governo não falhou e fazer
regressar à sua guarnição o seu Chefe da Casa Militar. Dizer que este não é o
tempo da substituição é empurrar a questão com a barriga e garantir ao CEMA a
sua não substituição pode ser indício de que não gostou muito da popularidade
granjeada por Gouveia e Melo e o Almirantado não fica bem na fotografia:
resistir a quem manda, por alma de quem?
Por
fim, é verdade que o PR tem a última palavra. A Constituição não põe a hipótese
de que Marcelo rejeite a proposta do Governo nem a proíbe, mas a LOBOFA prevê
que o PR possa rejeitar o nome proposto, devendo o Governo fazer nova proposta.
Porém, é impensável fazê-lo indefinidamente, pelo que o mais aconselhável é a
concertação, que tem sido até usual.
Ter
a palavra final e decidir em última instância, sim, mas não ter a palavra em
público no início do processo e no meio, muito menos ao virar da esquina e
dando a ideia de que puxa as orelhas a quem quer que seja. Além disso, quem tem
a última palavra deve ter a humildade de que ela possa vir a ser um mero “Sim”.
Fazer da última palavra o “não” ou “eu é que decido” ou “eu é que sei” pode ser
mal avisado.
É
certo que o PR é o comandante supremo das FA. Mas já imaginaram um general vir
dar voz de comando a um batalhão, uma companhia ou um pelotão? O comando
supremo é, sobretudo, civil, honorífico, protocolar e de presidência; não de
tática, de operação, arma ou quezília…
O
povo cristão – e Marcelo afirma-se católico – também tem a última palavra, que
é habitualmente “Ámen”; e, no fim da missa, a última palavra do povo, que é
quem mais ordena, é: “Graças a Deus!”.
Termino
referindo um caso que sucedeu comigo. Vi, em determinada paróquia, uns cartazes
que referiam que “O POVO DIZ NÃO” a
uma série de coisas. Passei casualmente pelo chefe de partido e, na brincadeira,
referi:
“Que pena! O Povo não diz ‘não’. Quando rezo com o Povo, costuma
responder ‘Ámen’ e ‘Graças a Deus’. Não é lícito caluniar o Povo.”.
Não
sei lá porquê, minutos depois, não havia qualquer cartaz afixado. O interlocutor
levou sério a brincadeira.
***
Só
peço ao PR que diga mesmo a última palavra, mas como última palavra, não banalizável,
e não como a palavra de cada dia ao virar da esquina, mesmo que seja à saída da
Casa do Artista.
2021.10.02 – Louro de
Carvalho
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