segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Resta saber se hoje teremos coragem de gritar por Jesus na multidão

 

Francisco, antes da oração do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro, comentou o Evangelho da liturgia do XXX domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 10,46-52), que fala do Senhor que, saindo de Jericó, dá vista a Bartimeu, mendigo cego que surge na estrada. Este importante encontro, o último antes da entrada de Jesus em Jerusalém para a Páscoa, destaca um homem que perdera a visão, mas não a voz. E, ao ouvir que Jesus passava, começou gritar: “Filho de David, Jesus, tem misericórdia de mim! (“hyiè Davíd, Iêsoû, eléêson me”: Mc 10,47).  Os discípulos e a multidão irritam-se com este grito e mandam-no calar. Mas ele grita de novo e mais alto. Jesus ouve e para de imediato, pois Deus escuta sempre o clamor dos pobres e não se incomoda com aquela voz, antes percebe que é cheia de fé, fé que não receia insistir, “bater no coração de Deus, apesar do mal-entendido e reprovações”. “Aqui está a raiz do milagre”, diz o Papa, já que Jesus lhe disse: “A tua fé te salvou(“hê pístis soû sésôké se”: Mc 10,52).

A fé do cego transparece na sua oração, que não é “tímida e convencional”. Chama ao Senhor “Filho de David”, reconhecendo-O como o Messias. Diz o nome d’Ele, “Jesus”, com confiança. Não tem medo, não se distancia. De coração, clama a Deus amigo todo o seu drama e roga só: “Tem misericórdia de mim!”. Não pede esmola como faz com os transeuntes. A Jesus que tudo pode pede tudo: “Tem misericórdia de mim, tende piedade de tudo o que eu sou ”. Não pede mercê, mas apresenta-se: pede misericórdia para a sua pessoa. Não é um pedido pequeno, mas é belo, porque invoca a misericórdia, a compaixão, a misericórdia de Deus, a sua ternura. Não usa muitas palavras. Diz o essencial e confia-se ao amor de Deus, que pode fazer a sua vida voltar a florescer realizando o que é impossível para o homem. Manifesta tudo, cegueira e sofrimento. A cegueira, diz o Pontífice, foi a ponta do iceberg , pois no seu coração terá havido feridas, humilhações, sonhos desfeitos, erros, remorsos. Por isso, orou com o coração. 

E Francisco põe-nos em questão: 

Quando pedimos a Deus uma graça, também colocamos em oração a nossa própria história, feridas, humilhações, sonhos desfeitos, erros, remorsos”?

Depois, face a este episódio protagonizado por Jesus e Bartimeu, sugere-nos uma espécie de exame de consciência ou alguns tópicos de revisão de vida:

Como vai a minha oração? (…) É corajosa, tem a boa insistência de Bartimeu, sabe ‘agarrar’ o Senhor que passa, ou fica satisfeita em cumprimentá-lo formalmente de vez em quando, quando me lembro? (…) A minha oração é ‘substancial’, expõe o meu coração diante do Senhor? Trago para Ele a história e os rostos da minha vida? Ou é anémica, superficial, feita de rituais sem afeto e sem coração?”. 

Sustenta que as “orações mornas não ajudam em nada”, mas, “quando a fé está viva, a oração é sincera, não pede pequenas mudanças, não se reduz às necessidades do momento”. Com efeito, “a Jesus, que tudo pode, tudo deve ser pedido.” Ao invés, lamenta que muitos de nós, quando oramos, não acreditemos que o Senhor pode operar o milagre.  E, considerando Bartimeu um grande mestre de oração, pede que ele nos sirva de exemplo com a sua fé concreta, insistente e corajosa; e que “Nossa Senhora, a Virgem que ora, nos ensine a dirigir-nos a Deus de todo o coração, confiando que Ele nos escuta atentamente”.

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A 1.ª leitura (Jr 31,7-9) fala de Jeremias (nascido em Anatot por volta de 650 a.C.), que profetizou desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da sua atividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).

A 1.ª fase da sua pregação abrange parte do reinado de Josias, rei preocupado com a defesa da identidade política e religiosa do Povo de Deus, o que o leva a grande reforma religiosa para banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. E a mensagem do profeta sintetiza-se no apelo constante à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança. Entretanto, em 609 a.C., Josias morre em combate contra os egípcios e Joaquim sucede-lhe no trono até 597 a.C.

Este reinado é era de desgraça e pecado e de incompreensão e sofrimento para Jeremias, fase em que o profeta critica as injustiças sociais (muitas fomentadas pelo rei) e a infidelidade religiosa (sobretudo nas alianças políticas: pedir ajuda aos egípcios significa não confiar em Deus e pôr a esperança em exércitos estrangeiros). Jeremias, convicto de que Judá ultrapassou todas as medidas e está iminente a invasão babilónica que punirá os pecados do Povo, di-lo aos hierosolimitas. E, em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia parte da população de Jerusalém.

A Joaquim sucede Sedecias (597-586 a.C.), constituindo o seu reinado o tempo da 3.ª fase do múnus profético de Jeremias. Após alguns anos de submissão à Babilónia, Sedecias volta à política das alianças com o Egito. Jeremias não está de acordo, mas nem o rei, nem os notáveis prestam atenção à advertência do profeta. Assim, em 587 a.C., Nabucodonosor cerca Jerusalém; um exército egípcio vem em socorro de Judá; e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf Jr 37,11- 16) e corre perigo de vida (cf Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apodera-se de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a população para a Babilónia (586 a.C.).

O trecho em referência é, para alguns comentadores, um oráculo que pode situar-se na 1.ª fase da atividade de Jeremias e dirigir-se-ia aos israelitas do Reino do Norte – uma mensagem de esperança a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio; para outros, será da época de Sedecias, entre a primeira e a segunda deportação (597-586 a.C.), época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e reflete sobre o tempo novo que Deus oferecerá ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá.

O trecho começa com o convite à alegria e ao louvor (Jr 31,7), pois Javé reunirá o Povo disperso conduzi-lo-á através do deserto e fá-lo-á retornar à pátria. Reunir, conduzir e fazer retornar são os verbos que definem a ação de Deus em favor do seu Povo durante o Êxodo.

Depois, o profeta apresenta pormenores deste Novo Êxodo. Da comitiva farão parte “o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz” (Jr 31,8b). O cego e o coxo, figuras ligadas ao tema do Êxodo (cf Is 35,5), relembram a situação de carência em que os exilados jazem e evocam a ação de Deus no sentido de libertar o Povo dessa carência. Nas imagens da mulher grávida e da mulher que deu à luz, ressalta a dor e o sofrimento, a fecundidade, a alegria, a esperança num futuro novo e cheio de vida.

No último versículo (Jr 31,9), Javé apresenta-Se como o pai cheio de amor pelo seu filho/Povo, que promove o regresso dos exilados “entre grande consolação”, por “caminhos direitos” e fáceis. E, no final, oferece ao Povo vida abundante e fecunda (“conduzi-Los-ei às torrentes de água”).

Fica evidenciada a preocupação de Deus com a vida e a realização plena do Povo. Mesmo nos momentos mais dramáticos da história de Israel, quando o Povo parece definitivamente privado de luz e liberdade (“cego” e “coxo”), Deus está lá, preocupado em libertar o seu Povo e em conduzi-lo pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida.

Enfim, Jeremias faz passar diante de nós um longo desfile de alegria e esperança, vindo do Norte, em que participam todos os filhos de Deus. E Dom António Couto regista a presença de cegos, aleijados, grávidas, parturientes, antecipando, a esta luz, José a caminho de Belém com Maria grávida e parturiente (cf Lc 2,5-7). Ninguém, neste desfile, fica de fora ou para trás – “pura graça e salvação de Deus bem à vista”. Deus salva o seu Povo (Jr 31,7). Por isso é que o Povo canta “Hossana”, grito elevado para Deus a significar “Salva, por favor”.

E, para expressar esta alegria filial, vem a propósito o Salmo 126 refronado com “O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo”. É o cântico do regresso a casa, do feliz sonho das colheitas e das canções, que nos abre os olhos do coração para vermos as inumeráveis maravilhas com que Deus nos enche quotidianamente o caminho. Entre a sementeira e a ceifa, a semente não se desvia e cumpre a sua missão, seguindo o seu curso normal. Daí a nossa brutal satisfação.

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Votando ao Evangelho com o Bispo de Lamego, vemos em destaque um cego no caminho de Jesus, estando em jogo algo mais que cegueira e corografia. Não é despicienda a detalhada informação que Marcos oferece: é Bartimeu, é filho de Timeu, é cego, é mendigo, está sentado e está à beira do caminho (não dentro, mas também não fora. Enfim, não está a caminho).

Repara Dom António Couto que, nos Evangelhos, “só encontramos tanta informação pessoal nos relatos de vocação”. Por isso, talvez se possa dizer que estamos “mais perante um relato de vocação do que de cura” ou em que a vocação se sobrepõe à cura.

Quem grita sente-se longe e aflito, pelo que pretende fazer-se ouvir. O cego sente-se longe da luz, da comunidade e de Deus. Por isso, Bartimeu grita por duas vezes. E o teor belo do seu grito merece atenção. “Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim(“hyiè Davíd, Iêsoû, eléêson me”: Mc 10,47). É basicamente o que nós cantamos nos dias de hoje: “Kýrie, eléêsón, Khríste, eléêsón – Senhor, Cristo, faz-nos graça! E isto significa, para António Couto, “pedir ao Senhor que pegue maternalmente em nós ao colo”, nos embale, olhe e sorria para nós

Jesus, parando, como que fica ao nível do cego, que estava parado e assim ia ali ficar. Porém, Jesus para e chama. É de anotar que no versículo 49 o verbo chamar se diz três vezes. Jesus inclui e faz que os que antes mandavam calar o cego, querendo mantê-lo excluído, entrem no movimento de inclusão. Revisite-se o predito desfile de Jeremias, que inclui cegos, aleijados, grávidas e parturientes. “Também Jesus não quer deixar ninguém de fora ou para trás”.

Chamado e incluído, o cego deixa tudo (atira fora o manto, onde recolhia as esmolas) e decididamente (num salto) fica junto de Jesus, que lhe pergunta, como fizera aos dois filhos de Zebedeu: “Que queres que Eu te faça?(“tí soi théleis poiêsô;”). E o cego responde: “Que eu veja(“rhabbouní, hína anablépsô”). Mas Jesus diz-lhe: “Vai!(“hýpage”). Esperava-se que a resposta correspondesse ao pedido do cego (“vê!”), como no episódio paralelo de Lucas 18,42. Mas, diz o Bispo de Lamego, neste “vai!” vê-se “o teor vocacional e missionário do relato”. Assim, na conclusão do relato, vê-se que o cego viu, ficou iluminado e seguia Jesus no caminho. Cá está o itinerário espiritual do verdadeiro discípulo: chamado e iluminado pela Luz, que é Jesus, segue Jesus no caminho. Ele é a Luz verdadeira; e nós, como luz, somos apenas reflexo da sua luz – mysterium lunae ecclesia. Ele que caminha é o Caminho que devemos seguir tornando-nos caminho para outros.

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No judaísmo, o sumo sacerdote ocupava o lugar cimeiro na hierarquia do clero do Templo e, de certo modo, presidia à instituição sacerdotal. Era o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do Templo (“Santo dos Santos”), no solene “Dia das Expiações” (“Yom Kippurim”), com o sangue dum animal imolado, para aspergir o “propiciatório” e obter o perdão de Deus para os pecados do Povo. Era o intermediário por excelência da relação entre os homens e Deus.

São três os elementos fundamentais ligados a esta figura: a escolha, pois não é alguém que, por sua iniciativa, se propõe para o cargo, mas é alguém a quem Deus chama e confia esta missão; a humanidade, pois é tomado de entre os homens, não o tornando a sua humanidade inepto para missão tão sublime, antes a fragilidade e debilidade que resultam da sua humanidade o tornando apto para compreender os erros e pecados dos outros homens por quem intercede; e a mediação, pois tem função mediadora já que a sua missão é “oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”, apresentando ante Deus o arrependimento dos homens e trazendo aos homens o perdão de Deus.

Na ótica da Carta aos Hebreus (Heb 5,1-6), Jesus é o sumo sacerdote por excelência. Com efeito, foi chamado e destinado por Deus a esta missão (apesar de não ser da linhagem de Aarão); o facto de ser Filho de Deus dá ao seu sacerdócio uma dignidade e qualidade supremas, uma vez que o põe em contacto pessoal e íntimo com o Pai, dando assim expressão mais completa à mediação que é chamado a fazer entre Deus e os homens. E, ao assumir a nossa humanidade, experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se capaz de entender as nossas fraquezas e pecados e de Se tornar o nosso mediador e intercessor junto do Pai. A sua proximidade e intimidade com o Pai e a sua humanidade tornam-No o perfeito mediador e intercessor, capaz de restabelecer em definitivo a comunhão entre Deus e os homens. Vem ao nosso encontro, mostra-nos o amor do Pai, convida a eliminar o egoísmo que nos afasta da comunhão com Deus, chama a integrar a família de Deus e ensina o que fazer para sermos filhos de Deus.

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António Couto lembra que este 24 de outubro foi o 95.º Dia Missionário Mundial, cujo lema é: “Não podemos calar o que vimos e ouvimos(At 4,20). Somos, pois desafiados a trilhar as estradas do mundo com o ímpeto missionário das primeiras comunidades cristãs, sabendo que “a pregação do Evangelho não é, para a Igreja”, contributo facultativo, mas dever que lhe incumbe (Evangelii Nuntiandi, n.º 5). Assim, urge refazer as pegadas de Paulo e o itinerário da mulher da Samaria (Jo 4) que, guiada por Jesus, abandona o cântaro que servia para transportar a água antiga e corre à cidade a deixar no ar o convite e a premente interrogação que põe a cidade toda na demanda do caminho de Jesus: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?(Jo 4,29). Esta interrogação, como convite à verificação, põe os samaritanos em movimento. Se ela dissesse: “É o Cristo!”, talvez ninguém se mobilizasse.

Devemos olhar com diligência para a Igreja renovada que, há 56 anos, saiu do Vaticano II, para nela vermos um sinal luminoso de Cristo para todos os continentes. Não podemos esmorecer no dinamismo missionário, mas devemos pedir a Deus que ajude a avivá-lo, pois aumenta o número dos que não conhecem Cristo. De facto, em 1965, o Concílio falava em 2.000.000.000 de não cristãos (Ad Gentes, n.º 10). Passados 25 anos, São João Paulo II referia que o número quase duplicara (Redemptoris Missio, n.º 3), número que a missiografia estimava em 3.449.084.000. Em 2000, o número subia para 4.069.672.000. Em 2006, o número subia para 4.373.076.000. Para 2025, prevê-se que o número atinja os 5.220.896.000.  

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Importa que, abandonando a vergonha e o preconceito, tenhamos sempre a ousadia de gritar por Jesus e seguir a sua ordem: “vai!(hýpage).

2021.10.25 – Louro de Carvalho

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