Francisco,
antes da oração do Angelus com os
fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro, comentou o
Evangelho da liturgia do XXX domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc
10,46-52), que fala
do Senhor que, saindo de Jericó, dá vista a Bartimeu, mendigo cego que surge na
estrada. Este importante encontro, o último antes da entrada de Jesus em
Jerusalém para a Páscoa, destaca um homem que perdera a visão, mas não a
voz. E, ao ouvir que Jesus passava, começou gritar: “Filho de David, Jesus, tem misericórdia de mim!” (“hyiè
Davíd, Iêsoû, eléêson me”: Mc 10,47). Os discípulos e a multidão irritam-se com este
grito e mandam-no calar. Mas ele grita de novo e mais alto. Jesus ouve
e para de imediato, pois Deus escuta sempre o clamor dos pobres e não se
incomoda com aquela voz, antes percebe que é cheia de fé, fé que não receia
insistir, “bater no coração de Deus, apesar do mal-entendido e reprovações”. “Aqui está a raiz do milagre”, diz o
Papa, já que Jesus lhe disse: “A tua
fé te salvou” (“hê pístis soû sésôké se”: Mc 10,52).
A fé do cego
transparece na sua oração, que não é “tímida e convencional”. Chama ao
Senhor “Filho de David”, reconhecendo-O
como o Messias. Diz o nome d’Ele, “Jesus”,
com confiança. Não tem medo, não se distancia. De coração, clama a Deus
amigo todo o seu drama e roga só: “Tem
misericórdia de mim!”. Não pede esmola como faz com os
transeuntes. A Jesus que tudo pode pede tudo: “Tem misericórdia de mim,
tende piedade de tudo o que eu sou ”. Não pede mercê, mas
apresenta-se: pede misericórdia para a sua pessoa. Não é um pedido
pequeno, mas é belo, porque invoca a misericórdia, a compaixão, a misericórdia
de Deus, a sua ternura. Não usa muitas palavras. Diz o essencial e
confia-se ao amor de Deus, que pode fazer a sua vida voltar a florescer realizando
o que é impossível para o homem. Manifesta tudo, cegueira e sofrimento. A
cegueira, diz o Pontífice, foi a ponta do iceberg , pois no
seu coração terá havido feridas, humilhações, sonhos desfeitos, erros,
remorsos. Por isso, orou com o coração.
E Francisco
põe-nos em questão:
“Quando
pedimos a Deus uma graça, também colocamos em oração a nossa própria história,
feridas, humilhações, sonhos desfeitos, erros, remorsos”?
Depois, face
a este episódio protagonizado por Jesus e Bartimeu, sugere-nos uma espécie de
exame de consciência ou alguns tópicos de revisão de vida:
“Como
vai a minha oração? (…) É corajosa, tem a boa insistência de Bartimeu, sabe ‘agarrar’
o Senhor que passa, ou fica satisfeita em cumprimentá-lo formalmente de vez
em quando, quando me lembro? (…) A minha oração é ‘substancial’, expõe o
meu coração diante do Senhor? Trago para Ele a história e os rostos da
minha vida? Ou é anémica, superficial, feita de rituais sem afeto e sem
coração?”.
Sustenta que
as “orações mornas não ajudam em nada”, mas, “quando a fé está viva, a oração é
sincera, não pede pequenas mudanças, não se reduz às necessidades do momento”. Com
efeito, “a Jesus, que tudo pode, tudo deve ser pedido.” Ao invés, lamenta
que muitos de nós, quando oramos, não acreditemos que o Senhor pode operar o
milagre. E, considerando Bartimeu um grande mestre de oração, pede que
ele nos sirva de exemplo com a sua fé concreta, insistente e corajosa; e que “Nossa
Senhora, a Virgem que ora, nos ensine a dirigir-nos a Deus de todo o coração,
confiando que Ele nos escuta atentamente”.
***
A 1.ª leitura (Jr 31,7-9)
fala de Jeremias (nascido em Anatot por volta de 650
a.C.), que profetizou
desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da sua atividade é, em
geral, o reino de Judá (e,
sobretudo, a cidade de Jerusalém).
A 1.ª fase da sua pregação abrange parte do reinado de
Josias, rei preocupado com a defesa da identidade política e religiosa do Povo
de Deus, o que o leva a grande reforma religiosa para banir do país os cultos
aos deuses estrangeiros. E a mensagem do profeta sintetiza-se no apelo
constante à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança. Entretanto, em 609
a.C., Josias morre em combate contra os egípcios e Joaquim sucede-lhe no trono
até 597 a.C.
Este reinado é era de desgraça e pecado e de incompreensão e
sofrimento para Jeremias, fase em que o profeta critica as injustiças sociais (muitas fomentadas pelo rei) e a infidelidade religiosa (sobretudo nas alianças políticas:
pedir ajuda aos egípcios significa não confiar em Deus e pôr a esperança em
exércitos estrangeiros).
Jeremias, convicto de que Judá ultrapassou todas as medidas e está iminente a
invasão babilónica que punirá os pecados do Povo, di-lo aos hierosolimitas. E, em 597 a.C., Nabucodonosor
invade Judá e deporta para a Babilónia parte da população de Jerusalém.
A Joaquim sucede Sedecias (597-586 a.C.), constituindo o seu reinado o tempo da 3.ª fase do múnus profético
de Jeremias. Após alguns anos de submissão à Babilónia, Sedecias volta à
política das alianças com o Egito. Jeremias não está de acordo, mas nem o rei,
nem os notáveis prestam atenção à advertência do profeta. Assim, em 587 a.C.,
Nabucodonosor cerca Jerusalém; um exército egípcio vem em socorro de Judá; e os
babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia, Jeremias anuncia o recomeço do
cerco e a destruição de Jerusalém (cf Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf Jr 37,11- 16) e corre perigo de vida (cf Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar
a rendição, Nabucodonosor apodera-se de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a
população para a Babilónia (586 a.C.).
O trecho em referência é, para alguns comentadores, um
oráculo que pode situar-se na 1.ª fase da atividade de Jeremias e dirigir-se-ia
aos israelitas do Reino do Norte – uma mensagem de esperança a animar esse povo
que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio
assírio; para outros, será da época de Sedecias, entre a primeira e a segunda
deportação (597-586 a.C.), época em que Jeremias descobre
perspetivas teológicas novas e reflete sobre o tempo novo que Deus oferecerá ao
seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar, pois Deus tem em mente
fazer uma nova Aliança com Judá.
O trecho começa com o convite à alegria e ao louvor (Jr 31,7), pois Javé reunirá o Povo disperso conduzi-lo-á
através do deserto e fá-lo-á retornar à pátria. Reunir, conduzir e fazer retornar são os verbos que definem a ação
de Deus em favor do seu Povo durante o Êxodo.
Depois, o profeta apresenta pormenores deste Novo Êxodo. Da
comitiva farão parte “o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz” (Jr 31,8b). O cego e o coxo, figuras ligadas ao
tema do Êxodo (cf Is
35,5), relembram a
situação de carência em que os exilados jazem e evocam a ação de Deus no
sentido de libertar o Povo dessa carência. Nas imagens da mulher grávida e da
mulher que deu à luz, ressalta a dor e o sofrimento, a fecundidade, a alegria,
a esperança num futuro novo e cheio de vida.
No último versículo (Jr 31,9), Javé apresenta-Se como o pai cheio de amor pelo seu filho/Povo, que
promove o regresso dos exilados “entre grande consolação”, por “caminhos
direitos” e fáceis. E, no final, oferece ao Povo vida abundante e fecunda (“conduzi-Los-ei às torrentes de
água”).
Fica evidenciada a preocupação de Deus com a vida e a
realização plena do Povo. Mesmo nos momentos mais dramáticos da história de
Israel, quando o Povo parece definitivamente privado de luz e liberdade (“cego” e “coxo”), Deus está lá, preocupado em
libertar o seu Povo e em conduzi-lo pela mão, com amor de pai, ao encontro da
liberdade e da vida.
Enfim, Jeremias
faz passar diante de nós um longo desfile de alegria e esperança, vindo do
Norte, em que participam todos os filhos de Deus. E Dom António Couto regista a
presença de cegos, aleijados, grávidas, parturientes, antecipando, a esta luz,
José a caminho de Belém com Maria grávida e parturiente (cf Lc
2,5-7). Ninguém, neste desfile, fica de
fora ou para trás – “pura graça e salvação de Deus bem à vista”. Deus salva o
seu Povo (Jr 31,7). Por isso é que o Povo canta “Hossana”, grito elevado para Deus a significar “Salva, por favor”.
E, para expressar esta alegria filial, vem a propósito o
Salmo 126 refronado com “O Senhor fez
maravilhas em favor do seu povo”. É o cântico do regresso a casa, do feliz sonho
das colheitas e das canções, que nos abre os olhos do coração para vermos as
inumeráveis maravilhas com que Deus nos enche quotidianamente o caminho. Entre
a sementeira e a ceifa, a semente não se desvia e cumpre a sua missão, seguindo
o seu curso normal. Daí a nossa brutal satisfação.
***
Votando ao Evangelho com o Bispo de Lamego, vemos em destaque
um cego no caminho de Jesus, estando em jogo algo mais que cegueira e
corografia. Não é despicienda a detalhada informação que Marcos oferece: é
Bartimeu, é filho de Timeu, é cego, é mendigo, está sentado e está à beira do
caminho (não dentro, mas
também não fora. Enfim, não está a caminho).
Repara Dom António Couto que, nos Evangelhos, “só encontramos
tanta informação pessoal nos relatos de vocação”. Por isso, talvez se possa
dizer que estamos “mais perante um relato de vocação do que de cura” ou em que
a vocação se sobrepõe à cura.
Quem grita
sente-se longe e aflito, pelo que pretende fazer-se ouvir. O cego sente-se
longe da luz, da comunidade e de Deus. Por isso, Bartimeu grita por duas vezes.
E o teor belo do seu grito merece atenção. “Filho
de David, Jesus, tem compaixão de mim” (“hyiè Davíd, Iêsoû, eléêson me”: Mc 10,47). É basicamente o que nós cantamos nos dias de hoje: “Kýrie,
eléêsón, Khríste, eléêsón
– Senhor, Cristo, faz-nos graça! E isto significa, para António
Couto, “pedir ao Senhor que pegue maternalmente em nós ao colo”, nos embale, olhe
e sorria para nós
Jesus, parando,
como que fica ao nível do cego, que estava parado e assim ia ali ficar. Porém,
Jesus para e chama. É de anotar que no versículo 49 o verbo chamar se diz três
vezes. Jesus inclui e faz que os que antes mandavam calar o cego, querendo
mantê-lo excluído, entrem no movimento de inclusão. Revisite-se o predito
desfile de Jeremias, que inclui cegos, aleijados, grávidas e parturientes. “Também
Jesus não quer deixar ninguém de fora ou para trás”.
Chamado e
incluído, o cego deixa tudo (atira fora o manto, onde recolhia as esmolas) e decididamente (num salto) fica junto de Jesus, que lhe pergunta, como fizera
aos dois filhos de Zebedeu: “Que queres
que Eu te faça?” (“tí soi théleis
poiêsô;”). E o cego
responde: “Que eu veja” (“rhabbouní, hína anablépsô”). Mas Jesus diz-lhe: “Vai!” (“hýpage”). Esperava-se que a resposta correspondesse ao pedido
do cego (“vê!”), como no episódio paralelo de Lucas 18,42. Mas, diz o Bispo de Lamego,
neste “vai!” vê-se “o teor vocacional
e missionário do relato”. Assim, na conclusão do relato, vê-se que o cego viu,
ficou iluminado e seguia Jesus no caminho. Cá está o itinerário espiritual do
verdadeiro discípulo: chamado e iluminado pela Luz, que é Jesus, segue Jesus no
caminho. Ele é a Luz verdadeira; e nós, como luz, somos apenas reflexo da sua
luz – mysterium lunae ecclesia. Ele que caminha é o Caminho que devemos
seguir tornando-nos caminho para outros.
***
No judaísmo, o sumo sacerdote ocupava o lugar cimeiro na
hierarquia do clero do Templo e, de certo modo, presidia à instituição
sacerdotal. Era o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do
Templo (“Santo dos Santos”), no solene “Dia das Expiações” (“Yom Kippurim”), com o sangue dum animal imolado, para aspergir o
“propiciatório” e obter o perdão de Deus para os pecados do Povo. Era o intermediário
por excelência da relação entre os homens e Deus.
São
três os elementos fundamentais ligados a esta figura:
a escolha, pois não é alguém que, por sua iniciativa, se propõe para o cargo,
mas é alguém a quem Deus chama e confia esta missão; a humanidade, pois é tomado
de entre os homens, não o tornando a sua humanidade inepto para missão tão
sublime, antes a fragilidade e debilidade que resultam da sua humanidade o
tornando apto para compreender os erros e pecados dos outros homens por quem
intercede; e a mediação, pois tem função mediadora já que a sua missão é
“oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”, apresentando ante Deus o
arrependimento dos homens e trazendo aos homens o perdão de Deus.
Na ótica da Carta aos Hebreus (Heb 5,1-6), Jesus é o sumo
sacerdote por excelência. Com efeito, foi chamado e destinado por Deus a esta
missão (apesar de não ser da linhagem de Aarão); o facto de ser
Filho de Deus dá ao seu sacerdócio uma dignidade e qualidade supremas, uma vez
que o põe em contacto pessoal e íntimo com o Pai, dando assim expressão mais
completa à mediação que é chamado a fazer entre Deus e os homens. E, ao assumir
a nossa humanidade, experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se
capaz de entender as nossas fraquezas e pecados e de Se tornar o nosso mediador
e intercessor junto do Pai. A sua proximidade e intimidade com o Pai e a sua
humanidade tornam-No o perfeito mediador e intercessor, capaz de restabelecer
em definitivo a comunhão entre Deus e os homens. Vem ao nosso encontro, mostra-nos
o amor do Pai, convida a eliminar o egoísmo que nos afasta da comunhão com
Deus, chama a integrar a família de Deus e ensina o que fazer para sermos
filhos de Deus.
***
António
Couto lembra que este 24 de outubro foi o 95.º Dia Missionário Mundial, cujo
lema é: “Não podemos calar o que vimos e
ouvimos” (At 4,20). Somos,
pois desafiados a trilhar as estradas do mundo com o ímpeto missionário das
primeiras comunidades cristãs, sabendo que “a pregação do Evangelho não é, para
a Igreja”, contributo facultativo, mas dever que lhe incumbe (Evangelii
Nuntiandi, n.º 5). Assim, urge
refazer as pegadas de Paulo e o itinerário da mulher da Samaria (Jo 4) que, guiada por Jesus, abandona o cântaro que servia
para transportar a água antiga e corre à cidade a deixar no ar o convite e a premente
interrogação que põe a cidade toda na demanda do caminho de Jesus: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que
eu fiz. Não será ele o Cristo?” (Jo 4,29). Esta interrogação, como convite à verificação, põe os
samaritanos em movimento. Se ela dissesse: “É
o Cristo!”, talvez ninguém se mobilizasse.
Devemos
olhar com diligência para a Igreja renovada que, há 56 anos, saiu do Vaticano
II, para nela vermos um sinal luminoso de Cristo para todos os continentes. Não
podemos esmorecer no dinamismo missionário, mas devemos pedir a Deus que ajude
a avivá-lo, pois aumenta o número dos que não conhecem Cristo. De facto, em
1965, o Concílio falava em 2.000.000.000 de não cristãos (Ad
Gentes, n.º 10). Passados
25 anos, São João Paulo II referia que o número quase duplicara (Redemptoris
Missio, n.º 3), número que
a missiografia estimava em 3.449.084.000. Em 2000, o número subia para
4.069.672.000. Em 2006, o número subia para 4.373.076.000. Para 2025, prevê-se
que o número atinja os 5.220.896.000.
***
Importa
que, abandonando a vergonha e o preconceito, tenhamos sempre a ousadia de
gritar por Jesus e seguir a sua ordem: “vai!”
(“hýpage”).
2021.10.25 – Louro de Carvalho
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