Passada a fase das eleições autárquicas com um resultado mais favorável ao
PSD que o esperado – crescimento no número de presidências de câmara e,
sobretudo, vitórias nas cidades de Lisboa, Coimbra, Portalegre e Funchal –, o
líder do partido, subvalorizando o debate que se aproxima sobre o Orçamento do Estado para
2022, está a delinear uma nova fase da ação partidária com o foco na reforma do sistema político.
Para o efeito, propõe-se avançar com um projeto de revisão constitucional (RC) com especial
incidência na reforma do sistema eleitoral e numa reforma profunda do sistema
de justiça.
O que importa, segundo Rui Rio, é dinamizar “ruturas” no sistema político e
no de justiça. Com efeito, após uma reunião na Assembleia da República (AR) com o seu
grupo parlamentar, sustentou que “se quisermos rasgar horizontes para o futuro,
temos de fazer ruturas”.
Uma das apostas socialdemocratas numa próxima RC será na ideia de
substancial reforço dos poderes do Presidente da República (PR). E, se o PS
for a jogo, isso poderá ainda beneficiar o atual inquilino de Belém. Rio
pretende, por exemplo, que a nomeação do governador do Banco de Portugal (BdP) passe a ser
do PR sob proposta do Governo, bem como a nomeação dos reguladores. E quer que
o PR possa escolher juízes para o Tribunal Constitucional (TC), diminuindo-se
o número de eleitos pela AR, bem como representantes seus no Conselho Superior
do Ministério Público (CSMP). Também prevê o aumento de 5
para 6 anos dos mandatos do Chefe do Estado, mantendo a limitação de dois
mandatos consecutivos, e ainda o aumento da duração de cada legislatura
parlamentar de 4 para 5 anos, impondo aos deputados limitação de mandatos, “à
semelhança do que atualmente acontece nos cargos executivos autárquicos”.
Segundo adiantou Rio aos jornalistas, finda a reunião com os seus deputados,
o projeto está em fase final de elaboração, pode incorporar um ou outro
ajustamento que foi falado e, em uma, duas ou no máximo três semanas, entrará
na mesa da AR. A seguir, entrará o projeto de reforma do sistema eleitoral e,
depois, podem entrar outras reformas, no campo da justiça.
Rui Rio sustenta que, se a discussão orçamental é muito importante para se
saber “se o IRS ou IVA baixam um ponto ou sobem um ponto”, o grande tema “é
rasgar horizontes e dar esperanças”, o que implica reformas. E contra “todos os
que dizem que não é o tempo oportuno para isso”, entende que “o tempo oportuno
para reformas é sempre, porque o tempo oportuno já passou”. Por isso, afirma-se
“não preocupado com o dia de amanhã, não com a notícia que vai sair daqui a
cinco minutos”, mas preocupado “com o futuro do país”.
No conjunto de reformas que julga necessárias, o presidente do PSD dá
prioridade à RC “como o primeiro passo” e assegurou que “muitos outros virão”.
Questionado sobre entendimentos com o PS nestes temas, Rio assegurou que,
fora da AR não houve qualquer negociação com os socialistas, mas essa tentativa
terá de existir na AR pela exigência de maioria de dois terços para alterar a
Constituição. E adiantou:
“Sem o
PS não se faz, assim como qualquer proposta do PS sem o PSD não se faz. A
articulação entre PS e PSD a nível parlamentar decorre da vontade do povo nas
últimas eleições, vai ter de haver.”.
No sistema político, quer, por exemplo, reduzir o número de deputados de
230 para um intervalo entre 181 e 215 e limitar todos os mandatos para órgãos
executivos e para deputados, como quer dividir os círculos que elegem mais de 9
deputados, de modo que cada círculo possa eleger entre 3 a 9 deputados, e criar
um círculo eleitoral nacional com um número fixo de deputados.
Além disto, o PSD pretende atacar o que Rio considera a “degradação
bastante acentuada” em curso na atividade governamental. E o passo no imediato
será chamar ao Parlamento os ministros das Infraestruturas e das Finanças. Com
efeito, estão em causa as críticas de Pedro Santos ao titular das Finanças por
causa dos constrangimentos financeiros da CP, constrangimentos que levaram à
demissão do presidente da empresa, Nuno Freitas. A este respeito, Rio explanou
que os socialdemocratas chamarão ao Parlamento os ministros em causa e o
administrador da CP para se tentar perceber o que se passa, pois uma coisa é
haver situações que é preciso diluir entre membros do Governo e outra é
fazer-se na praça pública, sendo que esta segunda forma de atuar evidencia “uma
degradação ao nível do funcionamento no Governo já bastante acentuada quando há
um membro do Governo que vem criticar publicamente outro e atribuir-lhe
responsabilidade pela demissão de um gestor que considera muito competente”.
***
Quem também
comentou os resultados das eleições locais e tomou posição sobre a reforma do
sistema político foi o constitucionalista Vital Moreira como se pode ler no blog “Causa nossa”.
Das eleições
autárquicas diz que revelam à evidência, a começar por Lisboa, a
irracionalidade do sistema de governo municipal vigente, em que o executivo é
eleito diretamente em voto de lista e segundo o método de representação proporcional,
sendo o presidente da câmara municipal (CM) o primeiro nome da lista vencedora, seja qual for a percentagem de votos
obtida por essa lista. Isso permite que, em caso de vitória com maioria
relativa – o que sucede com frequência –, o presidente possa ter contra si uma
maioria de vereadores da oposição, além de ficar em minoria na assembleia
municipal. Assim, a governabilidade de tais municípios torna-se muito
complicada, pois, estando o presidente da CM sob o risco de veto das oposições
ou, até, de coligações contrárias ao seu programa de governo municipal, terá de
governar sempre com o credo na boca ou enveredar pelo diálogo constante e
paciente, feito de cedências.
E, como diz
Vital Moreira, não há razão para a eleição direta do executivo municipal, “para
mais sendo um órgão colegial”. Por isso, no seu entender, solução razoável
seria a adoção do sistema de governo da freguesia, em que só a assembleia é
diretamente eleita. Já a junta de freguesia é composta pelo presidente,
indiretamente eleito – pois é o primeiro nome da lista vencedora para a
assembleia de freguesia –, sendo os vogais eleitos pela assembleia sob proposta
do presidente. E, se o presidente não dispõe de maioria na assembleia de
freguesia, tem de tentar uma coligação com outra força política para obter a
eleição dos vogais e o apoio político à sua governação.
Transportado
o sistema para o plano municipal, seria abolida a eleição da CM, que seria
presidida pelo primeiro nome da lista vencedora para a AM e sendo os vereadores
eleitos pelo parlamento municipal sob proposta do presidente. O confronto entre
o governo municipal e a oposição deixaria de travar-se dentro da CM,
transferindo-se para a assembleia municipal, que teria de ser dotada de meios
de que hoje não dispõe como sucede no sistema político a nível nacional e nas
regiões autónomas.
E diz Vital Moreira que o
sistema vigente, que vem desde 1976, deixou de ser obrigatório desde a RC de
1997, que permitiu a reforma do sistema de governo municipal, a qual não foi
efetuada até agora porque não foi possível um entendimento político-legislativo
capaz de obter uma maioria de 2/3 na AR, ou seja, um acordo entre PS e o PSD.
Tal acordo chegou a ser firmado há umas duas décadas, mas depois foi abandonado
pelo PSD, não tendo havido nova tentativa de o reeditar. “Parece que ambos os
partidos estão mais interessados em controlar por dentro as câmaras municipais
alheias do que em dar maior racionalidade política e mais eficácia ao sistema
de governo municipal” – atira o constitucionalista, que sugere que, ao falar-se
de RC e em reforma do sistema político, se explorem antes as reformas que a CR
de 1997 permitiu e que estão a marinar na gaveta.
E, de entre as
propostas do PSD, o constitucionalista contesta a transferência para o PR da
competência para a nomeação do Governador do BdP e dos presidentes das autoridades
reguladoras, por serem entidades tipicamente administrativas e de criação
governamental. Não vê justificação para entregar ao PR tarefas administrativas,
que devem continuar a caber exclusivamente ao Governo, como órgão superior da
Administração Pública, o qual responde perante a AR pelo exercício dessa
competência, como estabelece a Constituição, pois, “além do seu mandato longo,
o PR é politicamente irresponsável”. E não se justifica, segundo o académico,
acrescentar ao atual “poder moderador” do PR tarefas de índole
político-administrativa à custa da capacidade do Governo para executar o seu
programa.
Também não
vê razão o constitucionalista para dar ao PR o poder de nomeação de juízes do
TC, desequilibrando solução topada em 1982, com concordância do PSD, “e que tem
funcionado bem”. E a proposta do PSD levaria a composição e orientação do TC a
depender decisivamente do PR em funções. Por isso, espera que o PS não dê
acordo a nenhuma destas soluções.
Porém, Vital
Moreira contrapõe algumas limitações dos poderes presidenciais, nomeadamente:
declaração do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo
(que tem o
poder de os implementar), em vez da
atual consulta; extinção da promulgação presidencial de decretos regulamentares
e da assinatura de outros decretos governamentais (atos
administrativos ou políticos próprios do Governo); sujeição do veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho de
Estado, dificultando decisões imponderadas; permissão da superação do veto
político das leis da AR por maioria de 3/5, em vez da atual maioria de 2/3;
submissão da ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais
ao mesmo regime da promulgação ou veto dos diplomas legislativos; e abolição do
indulto e comutação de penas criminais (resquício do Antigo Regime).
***
É
certo que há 16 anos se mantém a Constituição na atual redação e convenha-se
que uma RC não é urgente. Há outros problemas a resolver bem mais prementes e a
reforma do sistema político, mesmo ao nível da justiça, não precisa
necessariamente duma RC. Façam o círculo eleitoral nacional, subdividam os
círculos grandes, imponham os executivos monocolores, deem mais condições
políticas e técnicas às assembleias municipais e instem com o Presidente da CM
eleito a apresentar o programa de governança do município (de
que fala Vital Moreira, mas que não há)
à assembleia municipal e que o Presidente da Junta (não
tem sido obrigatório haver junta monocolor: isso depende da assembleia de
freguesia) faça o
mesmo relativamente à assembleia de freguesia quanto ao programa de governança
da freguesia. E, mais que insistir na redução de deputados, há que insistir na
procura do máximo de representatividade política na AR.
Entendo
que o Conselho Superior da Magistratura e o conselho Superior do Ministério
Público devem ter na sua composição uma maioria não proveniente da respetiva
ordem corporativa, como entendo que, a haver uma RC, o TC deve ter juízes
indicados pelo PR, que também tem legitimidade provinda da eleição direta. Não
é crível que a composição e orientação do TC dependam do PR em funções, desde
que se mantenha o mandato de 9 anos (também não dependem da
AR, que tem elegido o juízes do TC).
Não vejo motivo para alteração da duração dos mandatos de PR e da AR, pois
estão bastante equilibrados, nem é viável nem legítima a limitação de mandato deputados:
a AR não é um executivo. E, para termos limitação de mandatos como temos, não
para executivos, mas só para presidentes de câmara e de junta nalgumas
condições, não vale a pena. Vereadores a tempo inteiro podem eternizar-se no
poder e presidentes podem passar a vereadores a tempo inteiro
Não
vejo razão que impeça o PR de nomear sob proposta do Governo o Governador do
BdP e os presidentes das entidades reguladoras. Não são entidades meramente
administrativas nem são entidades de estrita criação governamental (pelo
menos são criadas por lei ou decreto-lei).
Se assim fosse, também deveria ser o Governo a nomear ao Procurador-Geral da
República, o Provedor de Justiça, o Presidente do Tribunal de Contas e os
chefes militares – não são órgãos do poder político e muito menos órgãos de
soberania.
Admito
que o PR deva proceder à declaração
do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo (que é quem
tem o poder de os implementar), em vez da
atual consulta; que se extinga a promulgação presidencial de decretos
regulamentares e da assinatura de outros decretos governamentais (atos
administrativos ou políticos próprios do Governo); que se sujeite o veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho
de Estado, dificultando decisões imponderadas; que, para evitar equívocos de
validade, se submetam a ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais
ao mesmo regime da promulgação ou veto dos diplomas legislativos; e que se
proceda à abolição do indulto e comutação de penas criminais (resquício
do Antigo Regime, que dilui a separação de poderes). Porém, não concordo com a permissão da superação do
veto político das leis da AR por maioria de 3/5, em vez da atual maioria de
2/3, pois considero este regime de superação do veto equilibrado, pois
habitualmente a maioria qualificada apenas se exige para determinado tipo de
matérias. E, se admito que a CM não seja eleita diretamente pelo eleitorado,
mas pela assembleia municipal, não é por ser órgão colegial como diz Vital Moreira
(por isso
devia sê-lo), mas para
reforço do poder originário da assembleia, onde melhor estará representado o município,
como sucede na AR e na assembleia de freguesia. Aliás, como pode o órgão
deliberativo fiscalizar e superar politicamente um ente que não criou?
***
Enfim, muito
se pode reformular e reformar sem necessidade de recorrer a uma RC, desde que
haja vontade política para acordos para diplomas legislativos de valor
reforçado. E receio que uma eventual RC incida sobre questões pouco relevantes
e esqueça o que realmente interessa. Esperar por uma RC para trabalhar pode
significar não querer fazer as reformas necessárias. Aliás, as reformas internas
(algumas
nefastas) puderam fazer-se a partir da RC de
1989.
2021.10.04 – Louro de Carvalho
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