segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Da aposta na reforma do sistema político

 

Passada a fase das eleições autárquicas com um resultado mais favorável ao PSD que o esperado – crescimento no número de presidências de câmara e, sobretudo, vitórias nas cidades de Lisboa, Coimbra, Portalegre e Funchal –, o líder do partido, subvalorizando o debate que se aproxima sobre o Orçamento do Estado para 2022, está a delinear uma nova fase da ação partidária com o foco na reforma do sistema político. Para o efeito, propõe-se avançar com um projeto de revisão constitucional (RC) com especial incidência na reforma do sistema eleitoral e numa reforma profunda do sistema de justiça.

O que importa, segundo Rui Rio, é dinamizar “ruturas” no sistema político e no de justiça. Com efeito, após uma reunião na Assembleia da República (AR) com o seu grupo parlamentar, sustentou que “se quisermos rasgar horizontes para o futuro, temos de fazer ruturas”.

Uma das apostas socialdemocratas numa próxima RC será na ideia de substancial reforço dos poderes do Presidente da República (PR). E, se o PS for a jogo, isso poderá ainda beneficiar o atual inquilino de Belém. Rio pretende, por exemplo, que a nomeação do governador do Banco de Portugal (BdP) passe a ser do PR sob proposta do Governo, bem como a nomeação dos reguladores. E quer que o PR possa escolher juízes para o Tribunal Constitucional (TC), diminuindo-se o número de eleitos pela AR, bem como representantes seus no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Também prevê o aumento de 5 para 6 anos dos mandatos do Chefe do Estado, mantendo a limitação de dois mandatos consecutivos, e ainda o aumento da duração de cada legislatura parlamentar de 4 para 5 anos, impondo aos deputados limitação de mandatos, “à semelhança do que atualmente acontece nos cargos executivos autárquicos”.

Segundo adiantou Rio aos jornalistas, finda a reunião com os seus deputados, o projeto está em fase final de elaboração, pode incorporar um ou outro ajustamento que foi falado e, em uma, duas ou no máximo três semanas, entrará na mesa da AR. A seguir, entrará o projeto de reforma do sistema eleitoral e, depois, podem entrar outras reformas, no campo da justiça.

Rui Rio sustenta que, se a discussão orçamental é muito importante para se saber “se o IRS ou IVA baixam um ponto ou sobem um ponto”, o grande tema “é rasgar horizontes e dar esperanças”, o que implica reformas. E contra “todos os que dizem que não é o tempo oportuno para isso”, entende que “o tempo oportuno para reformas é sempre, porque o tempo oportuno já passou”. Por isso, afirma-se “não preocupado com o dia de amanhã, não com a notícia que vai sair daqui a cinco minutos”, mas preocupado “com o futuro do país”.

No conjunto de reformas que julga necessárias, o presidente do PSD dá prioridade à RC “como o primeiro passo” e assegurou que “muitos outros virão”.

Questionado sobre entendimentos com o PS nestes temas, Rio assegurou que, fora da AR não houve qualquer negociação com os socialistas, mas essa tentativa terá de existir na AR pela exigência de maioria de dois terços para alterar a Constituição. E adiantou:

Sem o PS não se faz, assim como qualquer proposta do PS sem o PSD não se faz. A articulação entre PS e PSD a nível parlamentar decorre da vontade do povo nas últimas eleições, vai ter de haver.”.

No sistema político, quer, por exemplo, reduzir o número de deputados de 230 para um intervalo entre 181 e 215 e limitar todos os mandatos para órgãos executivos e para deputados, como quer dividir os círculos que elegem mais de 9 deputados, de modo que cada círculo possa eleger entre 3 a 9 deputados, e criar um círculo eleitoral nacional com um número fixo de deputados.   

Além disto, o PSD pretende atacar o que Rio considera a “degradação bastante acentuada” em curso na atividade governamental. E o passo no imediato será chamar ao Parlamento os ministros das Infraestruturas e das Finanças. Com efeito, estão em causa as críticas de Pedro Santos ao titular das Finanças por causa dos constrangimentos financeiros da CP, constrangimentos que levaram à demissão do presidente da empresa, Nuno Freitas. A este respeito, Rio explanou que os socialdemocratas chamarão ao Parlamento os ministros em causa e o administrador da CP para se tentar perceber o que se passa, pois uma coisa é haver situações que é preciso diluir entre membros do Governo e outra é fazer-se na praça pública, sendo que esta segunda forma de atuar evidencia “uma degradação ao nível do funcionamento no Governo já bastante acentuada quando há um membro do Governo que vem criticar publicamente outro e atribuir-lhe responsabilidade pela demissão de um gestor que considera muito competente”.

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Quem também comentou os resultados das eleições locais e tomou posição sobre a reforma do sistema político foi o constitucionalista Vital Moreira como se pode ler no blogCausa nossa”.

Das eleições autárquicas diz que revelam à evidência, a começar por Lisboa, a irracionalidade do sistema de governo municipal vigente, em que o executivo é eleito diretamente em voto de lista e segundo o método de representação proporcional, sendo o presidente da câmara municipal (CM) o primeiro nome da lista vencedora, seja qual for a percentagem de votos obtida por essa lista. Isso permite que, em caso de vitória com maioria relativa – o que sucede com frequência –, o presidente possa ter contra si uma maioria de vereadores da oposição, além de ficar em minoria na assembleia municipal. Assim, a governabilidade de tais municípios torna-se muito complicada, pois, estando o presidente da CM sob o risco de veto das oposições ou, até, de coligações contrárias ao seu programa de governo municipal, terá de governar sempre com o credo na boca ou enveredar pelo diálogo constante e paciente, feito de cedências.

E, como diz Vital Moreira, não há razão para a eleição direta do executivo municipal, “para mais sendo um órgão colegial”. Por isso, no seu entender, solução razoável seria a adoção do sistema de governo da freguesia, em que só a assembleia é diretamente eleita. Já a junta de freguesia é composta pelo presidente, indiretamente eleito – pois é o primeiro nome  da lista vencedora para a assembleia de freguesia –, sendo os vogais eleitos pela assembleia sob proposta do presidente. E, se o presidente não dispõe de maioria na assembleia de freguesia, tem de tentar uma coligação com outra força política para obter a eleição dos vogais e o apoio político à sua governação.

Transportado o sistema para o plano municipal, seria abolida a eleição da CM, que seria presidida pelo primeiro nome da lista vencedora para a AM e sendo os vereadores eleitos pelo parlamento municipal sob proposta do presidente. O confronto entre o governo municipal e a oposição deixaria de travar-se dentro da CM, transferindo-se para a assembleia municipal, que teria de ser dotada de meios de que hoje não dispõe como sucede no sistema político a nível nacional e nas regiões autónomas.

E diz Vital Moreira que o sistema vigente, que vem desde 1976, deixou de ser obrigatório desde a RC de 1997, que permitiu a reforma do sistema de governo municipal, a qual não foi efetuada até agora porque não foi possível um entendimento político-legislativo capaz de obter uma maioria de 2/3 na AR, ou seja, um acordo entre PS e o PSD. Tal acordo chegou a ser firmado há umas duas décadas, mas depois foi abandonado pelo PSD, não tendo havido nova tentativa de o reeditar. “Parece que ambos os partidos estão mais interessados em controlar por dentro as câmaras municipais alheias do que em dar maior racionalidade política e mais eficácia ao sistema de governo municipal” – atira o constitucionalista, que sugere que, ao falar-se de RC e em reforma do sistema político, se explorem antes as reformas que a CR de 1997 permitiu e que estão a marinar na gaveta.

E, de entre as propostas do PSD, o constitucionalista contesta a transferência para o PR da competência para a nomeação do Governador do BdP e dos presidentes das autoridades reguladoras, por serem entidades tipicamente administrativas e de criação governamental. Não vê justificação para entregar ao PR tarefas administrativas, que devem continuar a caber exclusivamente ao Governo, como órgão superior da Administração Pública, o qual responde perante a AR pelo exercício dessa competência, como estabelece a Constituição, pois, “além do seu mandato longo, o PR é politicamente irresponsável”. E não se justifica, segundo o académico, acrescentar ao atual “poder moderador” do PR tarefas de índole político-administrativa à custa da capacidade do Governo para executar o seu programa.

Também não vê razão o constitucionalista para dar ao PR o poder de nomeação de juízes do TC, desequilibrando solução topada em 1982, com concordância do PSD, “e que tem funcionado bem”. E a proposta do PSD levaria a composição e orientação do TC a depender decisivamente do PR em funções. Por isso, espera que o PS não dê acordo a nenhuma destas soluções.

Porém, Vital Moreira contrapõe algumas limitações dos poderes presidenciais, nomeadamente: declaração do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo (que tem o poder de os implementar), em vez da atual consulta; extinção da promulgação presidencial de decretos regulamentares e da assinatura de outros decretos governamentais (atos administrativos ou políticos próprios do Governo); sujeição do veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho de Estado, dificultando decisões imponderadas; permissão da superação do veto político das leis da AR por maioria de 3/5, em vez da atual maioria de 2/3; submissão da ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais ao mesmo regime da promulgação ou veto dos diplomas legislativos; e abolição do indulto e comutação de penas criminais (resquício do Antigo Regime).

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É certo que há 16 anos se mantém a Constituição na atual redação e convenha-se que uma RC não é urgente. Há outros problemas a resolver bem mais prementes e a reforma do sistema político, mesmo ao nível da justiça, não precisa necessariamente duma RC. Façam o círculo eleitoral nacional, subdividam os círculos grandes, imponham os executivos monocolores, deem mais condições políticas e técnicas às assembleias municipais e instem com o Presidente da CM eleito a apresentar o programa de governança do município (de que fala Vital Moreira, mas que não há) à assembleia municipal e que o Presidente da Junta (não tem sido obrigatório haver junta monocolor: isso depende da assembleia de freguesia) faça o mesmo relativamente à assembleia de freguesia quanto ao programa de governança da freguesia. E, mais que insistir na redução de deputados, há que insistir na procura do máximo de representatividade política na AR.

Entendo que o Conselho Superior da Magistratura e o conselho Superior do Ministério Público devem ter na sua composição uma maioria não proveniente da respetiva ordem corporativa, como entendo que, a haver uma RC, o TC deve ter juízes indicados pelo PR, que também tem legitimidade provinda da eleição direta. Não é crível que a composição e orientação do TC dependam do PR em funções, desde que se mantenha o mandato de 9 anos (também não dependem da AR, que tem elegido o juízes do TC). Não vejo motivo para alteração da duração dos mandatos de PR e da AR, pois estão bastante equilibrados, nem é viável nem legítima a limitação de mandato deputados: a AR não é um executivo. E, para termos limitação de mandatos como temos, não para executivos, mas só para presidentes de câmara e de junta nalgumas condições, não vale a pena. Vereadores a tempo inteiro podem eternizar-se no poder e presidentes podem passar a vereadores a tempo inteiro

Não vejo razão que impeça o PR de nomear sob proposta do Governo o Governador do BdP e os presidentes das entidades reguladoras. Não são entidades meramente administrativas nem são entidades de estrita criação governamental (pelo menos são criadas por lei ou decreto-lei). Se assim fosse, também deveria ser o Governo a nomear ao Procurador-Geral da República, o Provedor de Justiça, o Presidente do Tribunal de Contas e os chefes militares – não são órgãos do poder político e muito menos órgãos de soberania. 

Admito que o PR deva proceder à declaração do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo (que é quem tem o poder de os implementar), em vez da atual consulta; que se extinga a promulgação presidencial de decretos regulamentares e da assinatura de outros decretos governamentais (atos administrativos ou políticos próprios do Governo); que se sujeite o veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho de Estado, dificultando decisões imponderadas; que, para evitar equívocos de validade, se submetam a ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais ao mesmo regime da promulgação ou veto dos diplomas legislativos; e que se proceda à abolição do indulto e comutação de penas criminais (resquício do Antigo Regime, que dilui a separação de poderes). Porém, não concordo com a permissão da superação do veto político das leis da AR por maioria de 3/5, em vez da atual maioria de 2/3, pois considero este regime de superação do veto equilibrado, pois habitualmente a maioria qualificada apenas se exige para determinado tipo de matérias. E, se admito que a CM não seja eleita diretamente pelo eleitorado, mas pela assembleia municipal, não é por ser órgão colegial como diz Vital Moreira (por isso devia sê-lo), mas para reforço do poder originário da assembleia, onde melhor estará representado o município, como sucede na AR e na assembleia de freguesia. Aliás, como pode o órgão deliberativo fiscalizar e superar politicamente um ente que não criou?

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Enfim, muito se pode reformular e reformar sem necessidade de recorrer a uma RC, desde que haja vontade política para acordos para diplomas legislativos de valor reforçado. E receio que uma eventual RC incida sobre questões pouco relevantes e esqueça o que realmente interessa. Esperar por uma RC para trabalhar pode significar não querer fazer as reformas necessárias. Aliás, as reformas internas (algumas nefastas) puderam fazer-se a partir da RC de 1989.

2021.10.04 – Louro de Carvalho

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