segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Muito mais importante que a riqueza e o poder é a Sabedoria

 

Na verdade, Salomão, autor humano do livro da Sabedoria, confessa ter pedido a Deus apenas a prudência e o sentido da sabedoria em detrimento do poder e da riqueza, tendo-se deixado orientar pela inofuscável sabedoria do coração (bom senso, sensibilidade e bondade), não comparável com o ouro ou a prata, e viu-se revestido de todos os bens e riquezas inumeráveis (vd Sb 7,7-11).   

Há aqui alusão velada ao episódio de 1 Rs 3,5-15, onde Salomão, jovem rei inexperiente, se dirigiu ao santuário de Guibeon e pediu a Deus “um coração cheio de entendimento para governar o povo, para discernir entre o bem e o mal” (1Rs 3,9), pedido a que Deus correspondeu, dando-lhe “um coração sábio e perspicaz” (1Rs 3,12). Por conseguinte, para Salomão, a sabedoria tornou-se o valor mais apreciado, superior ao poder, à riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens terrenos. Ela é a luz que mostra o caminho e permite discernir as opções corretas. Ao invés dos bens terrenos, não se extingue nem perde o brilho: é um valor duradouro que vem de Deus e que leva o homem ao encontro da vida verdadeira, da felicidade perene. Contudo, não afastou o rei dos outros bens, antes o fez encontrar “todos os bens” e “riquezas inumeráveis”, pois a “sabedoria” está na base de todos eles. É ela que nos faz saborear e gozar os bens terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça, pondo-os no devido lugar e não deixando que sejam eles a conduzir a vida e a ditar as opções.

***

É a sabedoria do caminho que tem inspirado o Papa Francisco no seu Pontificado e foi esse dinamismo que aflorou na homilia da Missa inaugural do Sínodo bienal sobre sinodalidade.

Fixando-se na perícopa evangélica que a liturgia do XXVIII domingo do Tempo Comum no Ano B manda proclamar e meditar (Mc 10,17-30), o Sumo Pontífice começa por registar que “um homem rico foi ao encontro de Jesus, quando [Este] Se punha a caminho (Mc 10,17) e sublinha que o Evangelho mostra frequentemente Jesus “a caminho” (“eis hodón”), como companheiro do homem no seu caminho e ouvindo as interrogações que lhe inquietam o coração. Com efeito, diz o Papa, Deus não habita em lugares assépticos, pacatos ou distantes da realidade, mas “caminha connosco e vem encontrar-nos onde estamos, nas estradas por vezes acidentadas da vida”. Por isso, urge que todos (Papa, bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, irmãs e irmãos leigos) se questionem se, como comunidade cristã, “encarnamos o estilo de Deus, que caminha na história e partilha as vicissitudes da humanidade” e se “estamos prontos para a aventura do caminho” ou se preferimos refugiar-nos nas desculpas do “não adianta” e “sempre se fez assim”.

E, como fazer Sínodo significa caminhar em conjunto e pela mesma estrada, é de ter em conta que Jesus ‘encontra’ o homem rico, ‘escuta’ as suas perguntas e ajuda-o a ‘discernir’ sobre o que fazer para ter a vida eterna. E são estes os verbos do Sínodo: encontrar, escutar, discernir.

Primeiro, o verboencontrar’. Um homem vai ao encontro de Jesus e ajoelha-se diante d’Ele a perguntar: “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (Mc 10,17). A questão, que é decisiva, “exige atenção, tempo, disponibilidade para encontrar o outro e deixar-se interpelar pela sua inquietação”. Jesus está disponível para o encontro e sem pressa, ao serviço da pessoa que encontra e importa escutar. “Fixar os rostos, cruzar os olhares, partilhar a história de cada um: tal é a proximidade de Jesus” – ajuíza o Papa. Assim, os participantes no Sínodo, aliás todos os cristãos, são chamados a tornar-se “peritos na arte do encontro”, não como organizadores de eventos ou palestrantes sobre os problemas, mas, sobretudo, na reserva dum tempo “para encontrar o Senhor e favorecer o encontro entre nós”: um tempo de oração e adoração, atendendo ao  que o Espírito quer dizer à Igreja e fixando o rosto e a palavra do outro, deixando-se tocar pelas perguntas dos irmãos, ajudando-se mutuamente a que “a diversidade de carismas, vocações e ministérios nos enriqueça” – o que exige total “abertura, coragem e disponibilidade para se deixar interpelar pelo rosto e a história do outro”, superando as relações formais e as máscaras de ocasião, nomeadamente “o espírito clerical e de corte”. E Francisco sustenta que o encontro nos muda e pode sugerir novos caminhos.

Passando ao verbo ‘escutar’, o Santo Padre anunciou que, após o Angelus receberia um grupo de pessoas sem eira nem beira, que se juntam simplesmente, porque “há um grupo de pessoas que as vão escutar, unicamente ouvi-las”; e, a partir daí, começaram a caminhar. É pela escuta que sentimos que Deus nos indica os caminhos a seguir, fazendo-nos sair dos nossos hábitos cansados, de sorte que se pode concluir que “um verdadeiro encontro só pode nascer da escuta”. Jesus põe-se à escuta da inquietação religiosa e existencial daquele homem. Não dá resposta de rotina, solução pré-fabricada, nem responde com amabilidade para Se livrar dele e prosseguir a caminhada. “Escuta-o todo o tempo que for preciso, sem pressa e com o coração. Não se limita a retorquir à pergunta, mas permite ao homem rico contar a sua história, falar livremente de si. Cristo lembra-lhe os mandamentos e ele fala da sua infância, partilha o seu percurso religioso, o modo como se esforça por buscar a Deus. Porque Jesus o ouve com o coração, o homem sente-se acolhido, livre para contar a sua vivência e caminho espiritual.

E, neste âmbito, o Pontífice pretende que os participantes no Sínodo se interroguem como se posicionam eles e os demais cristãos neste itinerário sinodal da escuta, se “permitimos que as pessoas se expressem, caminhem na fé mesmo se têm percursos de vida difíceis, contribuam para a vida da comunidade sem serem estorvadas, rejeitadas ou julgadas”. E explica:

Fazer Sínodo é colocar-se no mesmo caminho do Verbo feito homem: é seguir as suas pisadas, escutando a sua Palavra juntamente com as palavras dos outros. É descobrir, maravilhados, que o Espírito Santo sopra de modo sempre surpreendente para sugerir percursos e linguagens novos.”.

Porém, não deixa de avisar:

Aprender a ouvir-nos uns aos outros – bispos, padres, religiosos e leigos; todos, todos os batizados – é um exercício lento, talvez cansativo, evitando respostas artificiais e superficiais, respostas pronto-a-vestir… essas não! O Espírito pede para nos colocarmos à escuta das perguntas, preocupações, esperanças de cada Igreja, de cada povo e nação; e também à escuta do mundo, dos desafios e das mudanças que o mesmo nos coloca.”.

Por fim, no atinente ao verbo ‘discernir’, o Sumo Pontífice defende que “o encontro e a escuta recíproca não são um fim em si”, mas que, ao entrarmos em diálogo, “pomo-nos em questão, pomo-nos a caminho e, no fim, já não somos os mesmos de antes, mudámos”. Na verdade, como vemos no Evangelho, Jesus intui que o homem que tem à sua frente é bom e pratica os mandamentos, mas quer conduzi-lo para além da observância dos preceitos, ajudando-o a discernir; e propõe que olhe dentro de si à luz do amor com que Ele mesmo o ama e, nesta luz, discirna a que é que tem o coração verdadeiramente apegado, para descobrir que o seu bem não passa por aumentar o número de atos religiosos, mas por esvaziar-se de si – “vender o que preenche o seu coração” – para dar espaço a Deus.

Ora, o Santo Padre, considerando que está aqui “uma indicação preciosa também para nós”, diz que “o Sínodo é um caminho de discernimento espiritual, de discernimento eclesial, que se faz na adoração, na oração, em contacto com a Palavra de Deus”. E, estribado na 2.ª leitura da liturgia desta dominga (Heb 4,12-13) – segundo a qual a Palavra de Deus “é viva, eficaz e mais afiada que uma espada de dois gumes, penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração” –, sustenta que a Palavra nos abre “ao discernimento e o ilumina”. Por isso, espera que o Sínodo não seja uma ‘convenção’ eclesial, um convénio de estudos, um congresso político ou um parlamento, mas “um evento de graça, um processo de cura conduzido pelo Espírito”. Sabe que, nestes dias, Jesus nos chama – como fez com o homem rico do Evangelho – a esvaziar-nos do que é mundano, dos nossos fechamentos e dos modelos pastorais repetitivos, a interrogar-nos sobre o que Deus nos quer dizer e sobre a direção para onde nos quer conduzir. E, em conformidade com esta sábia certeza, exorta a que “sejamos peregrinos enamorados do Evangelho, abertos às surpresas do Espírito Santo”, não perdendo as ocasiões de graça do encontro, escuta recíproca e discernimento, na alegria de sabermos que, “enquanto procuramos o Senhor, é Ele quem primeiro vem ao nosso encontro com o seu amor”.

***

Comentando este passo evangélico, Dom António Couto considera que “aquele homem rico, sincero, educado e de boa prática religiosa”, terá estado ali à espera de Jesus por ter uma coisa que só podia tratar com Ele. Jesus sai de casa para seguir o seu caminho, que é o da formação dos discípulos. E, logo que O vê, o homem entra no caminho de Jesus a pedir que lhe indique a via para a vida eterna. Mal sabia que bastava seguir Jesus até ao fim, pois o Mestre novo, líder proativo, que não ensina como os escribas, sabe o caminho, mostra-o e fá-lo. Por isso, convida dizendo: “Vem atrás de Mim abraçando a cruz(“deûro akoloúthei moi áras tòn staurón”: Mc 10,21).

Entra o homem rico e de boa prática religiosa no caminho e Jesus entra nele, pois o olha por dentro com o coração e com amor divino (“emblépsas autôi êgápêsen autón”: Mc 10,21). Com efeito, um homem que já observava os mandamentos desde a sua juventude estava na rota da vida eterna e tinha boas condições para seguir por diante, mais de perto com Jesus.

Diz o Padre Porfírio Sá que o homem se dirigiu correndo para Jesus, não por ter medo de que Ele lhe fugisse, mas pela ânsia de lhe expor a sua preocupação. Por seu turno, Jesus garante-lhe o caminho da vida eterna com os mandamentos que se referem diretamente ao bem e à honra do próximo, obviamente não esquecendo os que se referem diretamente a Deus, mas porque aqueles são a expressão concreta do amor a Deus.

Faltava, porém, a este homem, que era capaz de muito mais, só uma coisa (“hén”), visível no que Dom António Couto denomina “aquela imensa, inesquecível rajada de verbos: Vai, vende, dá, vem e segue-me”. Não se trata de esbanjar, destruir ou deitar fora os bens que Deus nos deu e adquirimos, mas de os entregar partilhando com quem mais precisa, tendo como recompensa “um tesouro no céu” (“thesauròn en ouranôi”). E, porque era rico e tinha o coração agarrado às riquezas, o homem “ficou sem caminho e sem horizontes, triste e tão-somente agarrado ao seu punhado de terra” – diz o Bispo de Lamego.

Jesus, entretanto, olha “o coração e com o coração” os discípulos, a quem trata por “filhos” (“tékna), contrapondo a riqueza do Reino de Deus como forte mais-valia à riqueza material, que se torna empecilho ao Reino quando manieta o coração. E o prelado lamecense sustenta:

Não há maneira de nos salvarmos; há apenas maneira de sermos salvos! A metáfora do camelo e do buraco da agulha é bem expressiva e impressiva, sendo o camelo o animal de maiores dimensões conhecido no mundo de Jesus e dos seus discípulos, e o buraco da agulha uma das aberturas mais pequenas! E não vale a pena procurar outras interpretações fantasiosas.”.

E, sobre o elenco apresentado por Jesus – casas, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e terras – diz o prelado que somos tentados a pensar que Jesus fornece dois elencos: o das coisas a deixar; e o das coisas que a ganhar. Ao invés, Jesus apresenta apenas um elenco repetido. Por isso, é o modo de ver que deve mudar: “do ter para o receber”, tendo de “aprender a ver o coração e com o coração, como Jesus”.

E à pergunta de Pedro, também ele de boa prática religiosa, “Se é assim, quem é que se salva?”, Jesus responde que “aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível(“parà anthrôpois asdýnaton, all’ ou parà Theôi”). Assim, se nos voltarmos para Deus, entenderemos a escrita paulina no seguinte dizer: “Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza(2Cor 8,9).

É bom, para apanharmos o verdadeiro sentido da vida, escancararmos as portas do nosso coração, de modo que o bisturi da Palavra de Deus, a que não podemos escapar porque anda dentro de nós, opere com êxito a nossa “sklêrokardía(esclerose do coração) (cf Heb 4,12; Sl 149,6) e todos os excessos e preconceitos, que nos impedem de ver a vida com os olhos de Deus.

***

Com a passagem da Carta aos Hebreus (Heb 4,12-13) tomada como 2.ª leitura, ficamos a sentir que a Palavra de Deus transmitida aos homens – dantes pelos profetas e, depois, por Jesus – não é um conjunto de frases ocas, vagas, estéreis, que se derramam sobre os homens entrando por um ouvido e saindo por outro, sem impacto na vida dos que as escutam, mas é uma Palavra viva, atuante, transformadora e eficaz, que, uma vez escutada, entra no coração do homem como espada afiada e transforma os seus sentimentos, pensamentos, valores, opções e atitudes.

Entrando no seu coração, a Palavra de Deus torna-se consciência do homem e, por conseguinte, sua orientadora e sua juíza, de modo que o homem não age ao “deus-dará”. Aí, no coração, onde, segundo a antropologia judaica, se formam os sentimentos, nascem os pensamentos, se definem os valores, se fazem as opções, a Palavra de Deus confronta-se com os desejos secretos do homem, com as suas verdadeiras intenções, com os valores que o homem prioriza, com a sinceridade das posições que assume na relação com Deus, com o mundo e com os outros.

A Palavra de Deus aprecia, discerne, pesa e pronuncia o seu julgamento sobre o homem; e, mesmo que pareça frágil e débil, é a força decisiva que enche a história e que traz ao homem a vida e a salvação.

***

Que a sabedoria do coração que moldou o ser da Virgem Maria, a serva do Senhor, e transformou, pela via da santa Pobreza, o ser e a vida do Poverello de Assis, celebrado a 4 de outubro, sirva de inspiração, guia e juiz a todos os crentes e a todas as pessoas de boa vontade.

2021.10.10 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário