Na verdade, Salomão, autor humano do livro da Sabedoria, confessa ter pedido a Deus apenas a
prudência e o sentido da sabedoria em detrimento do poder e da riqueza,
tendo-se deixado orientar pela inofuscável sabedoria do coração (bom senso, sensibilidade e bondade), não comparável com o ouro ou a
prata, e viu-se revestido de todos os bens e riquezas inumeráveis (vd Sb 7,7-11).
Há aqui alusão velada ao episódio de 1 Rs 3,5-15, onde Salomão, jovem
rei inexperiente, se dirigiu ao santuário de Guibeon e pediu a Deus “um coração
cheio de entendimento para governar o povo, para discernir entre o bem e o mal”
(1Rs
3,9),
pedido a que Deus correspondeu, dando-lhe “um coração sábio e perspicaz” (1Rs 3,12). Por conseguinte,
para Salomão, a sabedoria tornou-se o valor mais apreciado, superior ao poder,
à riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens terrenos. Ela é a luz que mostra
o caminho e permite discernir as opções corretas. Ao invés dos bens terrenos,
não se extingue nem perde o brilho: é um valor duradouro que vem de Deus e que
leva o homem ao encontro da vida verdadeira, da felicidade perene. Contudo, não
afastou o rei dos outros bens, antes o fez encontrar “todos os bens” e “riquezas
inumeráveis”, pois a “sabedoria” está na base de todos eles. É ela que nos faz
saborear e gozar os bens terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e
sem cobiça, pondo-os no devido lugar e não deixando que sejam eles a conduzir a
vida e a ditar as opções.
***
É a sabedoria
do caminho que tem inspirado o Papa Francisco no seu Pontificado e foi esse
dinamismo que aflorou na homilia da Missa inaugural do Sínodo bienal sobre
sinodalidade.
Fixando-se na
perícopa evangélica que a liturgia do XXVIII domingo do Tempo Comum no Ano B
manda proclamar e meditar (Mc 10,17-30), o Sumo Pontífice começa por registar que “um homem rico foi
ao encontro de Jesus, quando [Este] Se punha a caminho (Mc 10,17) e sublinha que o Evangelho mostra frequentemente Jesus “a caminho” (“eis
hodón”), como
companheiro do homem no seu caminho e ouvindo as interrogações que lhe
inquietam o coração. Com efeito, diz o Papa, Deus não habita em lugares assépticos,
pacatos ou distantes da realidade, mas “caminha connosco e vem encontrar-nos
onde estamos, nas estradas por vezes acidentadas da vida”. Por isso, urge que todos
(Papa, bispos,
sacerdotes, religiosas e religiosos, irmãs e irmãos leigos) se questionem se, como comunidade
cristã, “encarnamos o estilo de Deus, que caminha na história e partilha as
vicissitudes da humanidade” e se “estamos prontos para a aventura do caminho”
ou se preferimos refugiar-nos nas desculpas do “não adianta” e “sempre se fez
assim”.
E, como fazer
Sínodo significa caminhar em conjunto e pela mesma estrada, é de ter em conta
que Jesus ‘encontra’ o
homem rico, ‘escuta’ as
suas perguntas e ajuda-o a ‘discernir’ sobre
o que fazer para ter a vida eterna. E são estes os verbos do Sínodo: encontrar,
escutar, discernir.
Primeiro, o verbo
‘encontrar’.
Um homem vai ao encontro de Jesus e ajoelha-se diante d’Ele a perguntar: “Bom
Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (Mc 10,17). A questão, que é decisiva, “exige atenção, tempo, disponibilidade para
encontrar o outro e deixar-se interpelar pela sua inquietação”. Jesus está
disponível para o encontro e sem pressa, ao serviço da pessoa que encontra e
importa escutar. “Fixar os rostos, cruzar os olhares, partilhar a história de
cada um: tal é a proximidade de Jesus” – ajuíza o Papa. Assim, os participantes
no Sínodo, aliás todos os cristãos, são chamados a tornar-se “peritos na arte
do encontro”, não como organizadores de eventos ou palestrantes sobre os
problemas, mas, sobretudo, na reserva dum tempo “para encontrar o Senhor e
favorecer o encontro entre nós”: um tempo de oração e adoração, atendendo ao
que o Espírito quer dizer à Igreja e fixando o rosto e a palavra do
outro, deixando-se tocar pelas perguntas dos irmãos, ajudando-se mutuamente a
que “a diversidade de carismas, vocações e ministérios nos enriqueça” – o que exige
total “abertura, coragem e disponibilidade para se deixar interpelar pelo rosto
e a história do outro”, superando as relações formais e as máscaras de ocasião,
nomeadamente “o espírito clerical e de corte”. E Francisco sustenta que o
encontro nos muda e pode sugerir novos caminhos.
Passando ao
verbo ‘escutar’, o Santo Padre anunciou que, após o Angelus
receberia um grupo de pessoas sem eira nem beira, que se juntam simplesmente,
porque “há um grupo de pessoas que as vão escutar, unicamente ouvi-las”; e, a
partir daí, começaram a caminhar. É pela escuta que sentimos que Deus nos
indica os caminhos a seguir, fazendo-nos sair dos nossos hábitos cansados, de
sorte que se pode concluir que “um verdadeiro encontro só pode nascer da
escuta”. Jesus põe-se à escuta da inquietação religiosa e existencial daquele
homem. Não dá resposta de rotina, solução pré-fabricada, nem responde com
amabilidade para Se livrar dele e prosseguir a caminhada. “Escuta-o todo o tempo
que for preciso, sem pressa e com o coração. Não se limita a
retorquir à pergunta, mas permite ao homem rico contar a sua história, falar
livremente de si. Cristo lembra-lhe os mandamentos e ele fala da sua infância,
partilha o seu percurso religioso, o modo como se esforça por buscar a Deus.
Porque Jesus o ouve com o coração, o homem sente-se acolhido, livre para contar
a sua vivência e caminho espiritual.
E, neste
âmbito, o Pontífice pretende que os participantes no Sínodo se interroguem como
se posicionam eles e os demais cristãos neste itinerário sinodal da escuta, se
“permitimos que as pessoas se expressem, caminhem na fé mesmo se têm percursos
de vida difíceis, contribuam para a vida da comunidade sem serem estorvadas,
rejeitadas ou julgadas”. E explica:
“Fazer
Sínodo é colocar-se no mesmo caminho do Verbo feito homem: é seguir as suas
pisadas, escutando a sua Palavra juntamente com as palavras dos outros. É
descobrir, maravilhados, que o Espírito Santo sopra de modo sempre
surpreendente para sugerir percursos e linguagens novos.”.
Porém, não
deixa de avisar:
“Aprender
a ouvir-nos uns aos outros – bispos, padres, religiosos e leigos; todos, todos
os batizados – é um exercício lento, talvez cansativo, evitando respostas
artificiais e superficiais, respostas pronto-a-vestir… essas não! O
Espírito pede para nos colocarmos à escuta das perguntas, preocupações,
esperanças de cada Igreja, de cada povo e nação; e também à escuta do mundo,
dos desafios e das mudanças que o mesmo nos coloca.”.
Por
fim, no atinente ao verbo ‘discernir’,
o Sumo Pontífice defende que “o encontro e a escuta recíproca não são um fim em
si”, mas que, ao entrarmos em diálogo, “pomo-nos em questão, pomo-nos a caminho
e, no fim, já não somos os mesmos de antes, mudámos”. Na verdade, como vemos no
Evangelho, Jesus intui que o homem que tem à sua frente é bom e pratica os
mandamentos, mas quer conduzi-lo para além da observância dos preceitos, ajudando-o
a discernir; e propõe que olhe dentro de si à luz do amor com que Ele mesmo o
ama e, nesta luz, discirna a que é que tem o coração verdadeiramente apegado,
para descobrir que o seu bem não passa por aumentar o número de atos
religiosos, mas por esvaziar-se de si – “vender o que preenche o seu coração” –
para dar espaço a Deus.
Ora, o Santo
Padre, considerando que está aqui “uma indicação preciosa também para nós”, diz
que “o Sínodo é um caminho de discernimento espiritual, de discernimento
eclesial, que se faz na adoração, na oração, em contacto com a Palavra de Deus”.
E, estribado na 2.ª leitura da liturgia desta dominga (Heb
4,12-13) –
segundo a qual a Palavra de Deus “é viva, eficaz e mais afiada que uma espada
de dois gumes, penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das
medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração” –, sustenta que a
Palavra nos abre “ao discernimento e o ilumina”. Por isso, espera que o Sínodo
não seja uma ‘convenção’ eclesial, um convénio de estudos, um congresso
político ou um parlamento, mas “um evento de graça, um processo de cura
conduzido pelo Espírito”. Sabe que, nestes dias, Jesus nos chama – como fez com
o homem rico do Evangelho – a esvaziar-nos do que é mundano, dos nossos
fechamentos e dos modelos pastorais repetitivos, a interrogar-nos sobre o que
Deus nos quer dizer e sobre a direção para onde nos quer conduzir. E, em
conformidade com esta sábia certeza, exorta a que “sejamos peregrinos
enamorados do Evangelho, abertos às surpresas do Espírito Santo”, não perdendo
as ocasiões de graça do encontro, escuta recíproca e discernimento, na alegria
de sabermos que, “enquanto procuramos o Senhor, é Ele quem primeiro vem ao
nosso encontro com o seu amor”.
***
Comentando este passo evangélico, Dom António Couto considera
que “aquele homem rico, sincero, educado e de boa prática religiosa”, terá
estado ali à espera de Jesus por ter uma coisa que só podia tratar com Ele.
Jesus sai de casa para seguir o seu caminho, que é o da formação dos
discípulos. E, logo que O vê, o homem entra no caminho de Jesus a pedir que lhe
indique a via para a vida eterna. Mal sabia que bastava seguir Jesus até ao
fim, pois o Mestre novo, líder proativo, que não ensina como os escribas, sabe
o caminho, mostra-o e fá-lo. Por isso, convida dizendo: “Vem atrás de Mim abraçando a cruz” (“deûro
akoloúthei moi áras tòn staurón”: Mc 10,21).
Entra o homem rico e de boa prática religiosa no caminho
e Jesus entra nele, pois o olha por dentro com o coração e com amor divino (“emblépsas
autôi êgápêsen autón”: Mc 10,21). Com efeito, um homem que já
observava os mandamentos desde a sua juventude estava na rota da vida eterna e
tinha boas condições para seguir por diante, mais de perto com Jesus.
Diz o Padre Porfírio Sá que o homem se dirigiu correndo
para Jesus, não por ter medo de que Ele lhe fugisse, mas pela ânsia de lhe
expor a sua preocupação. Por seu turno, Jesus garante-lhe o caminho da vida
eterna com os mandamentos que se referem diretamente ao bem e à honra do próximo,
obviamente não esquecendo os que se referem diretamente a Deus, mas porque
aqueles são a expressão concreta do amor a Deus.
Faltava, porém, a este homem, que era capaz de muito
mais, só uma coisa (“hén”), visível no que Dom António Couto denomina “aquela imensa,
inesquecível rajada de verbos: Vai, vende, dá, vem e segue-me”. Não se trata de
esbanjar, destruir ou deitar fora os bens que Deus nos deu e adquirimos, mas de
os entregar partilhando com quem mais precisa, tendo como recompensa “um tesouro
no céu” (“thesauròn en ouranôi”). E, porque era rico e tinha o
coração agarrado às riquezas, o homem “ficou sem caminho e sem horizontes,
triste e tão-somente agarrado ao seu punhado de terra” – diz o Bispo de Lamego.
Jesus, entretanto, olha “o coração e com o coração” os
discípulos, a quem trata por “filhos” (“tékna”), contrapondo a riqueza do Reino de Deus como forte
mais-valia à riqueza material, que se torna empecilho ao Reino quando manieta o
coração. E o prelado lamecense sustenta:
“Não há maneira de nos salvarmos;
há apenas maneira de sermos salvos! A metáfora do camelo e do buraco da agulha
é bem expressiva e impressiva, sendo o camelo o animal de maiores dimensões
conhecido no mundo de Jesus e dos seus discípulos, e o buraco da agulha uma das
aberturas mais pequenas! E não vale a pena procurar outras interpretações
fantasiosas.”.
E, sobre o elenco apresentado por Jesus – casas,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e terras – diz o prelado que somos tentados a
pensar que Jesus fornece dois elencos: o das coisas a deixar; e o das coisas
que a ganhar. Ao invés, Jesus apresenta apenas um elenco repetido. Por isso, é
o modo de ver que deve mudar: “do ter para o receber”, tendo de “aprender a ver
o coração e com o coração, como Jesus”.
E à pergunta de Pedro, também ele de boa prática
religiosa, “Se é assim, quem é que se
salva?”, Jesus responde que “aos
homens é impossível, mas a Deus tudo é possível” (“parà
anthrôpois asdýnaton, all’ ou parà Theôi”). Assim, se nos voltarmos para Deus, entenderemos a escrita
paulina no seguinte dizer: “Jesus Cristo,
sendo rico, fez-se pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua
pobreza” (2Cor 8,9).
É bom, para apanharmos o verdadeiro sentido da vida, escancararmos
as portas do nosso coração, de modo que o bisturi da Palavra de Deus, a que não
podemos escapar porque anda dentro de nós, opere com êxito a nossa “sklêrokardía” (esclerose do coração) (cf Heb 4,12; Sl 149,6) e todos os excessos e preconceitos,
que nos impedem de ver a vida com os olhos de Deus.
***
Com a passagem da Carta aos Hebreus (Heb 4,12-13) tomada como 2.ª leitura, ficamos a sentir que a Palavra
de Deus transmitida aos homens – dantes pelos profetas e, depois, por Jesus – não
é um conjunto de frases ocas, vagas, estéreis, que se derramam sobre os homens entrando
por um ouvido e saindo por outro, sem impacto na vida dos que as escutam, mas é
uma Palavra viva, atuante, transformadora e eficaz, que, uma vez escutada,
entra no coração do homem como espada afiada e transforma os seus sentimentos,
pensamentos, valores, opções e atitudes.
Entrando no seu coração, a
Palavra de Deus torna-se consciência do homem e, por conseguinte, sua orientadora
e sua juíza, de modo que o homem não age ao “deus-dará”. Aí, no coração, onde,
segundo a antropologia judaica, se formam os sentimentos, nascem os
pensamentos, se definem os valores, se fazem as opções, a Palavra de Deus
confronta-se com os desejos secretos do homem, com as suas verdadeiras
intenções, com os valores que o homem prioriza, com a sinceridade das posições
que assume na relação com Deus, com o mundo e com os outros.
A Palavra de Deus aprecia, discerne,
pesa e pronuncia o seu julgamento sobre o homem; e, mesmo que pareça frágil e
débil, é a força decisiva que enche a história e que traz ao homem a vida e a
salvação.
***
Que a sabedoria do coração que moldou
o ser da Virgem Maria, a serva do Senhor, e transformou, pela via da santa
Pobreza, o ser e a vida do Poverello de Assis, celebrado a 4 de outubro, sirva
de inspiração, guia e juiz a todos os crentes e a todas as pessoas de boa
vontade.
2021.10.10 – Louro de Carvalho
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