terça-feira, 31 de março de 2015

O epifenómeno paroquial de Canelas, Vila Nova de Gaia

As pessoas que me conhecem minimamente conhecerão, com certeza, a relutância com que eu me vejo a discorrer sobre o tema em epígrafe, já que se trata de matéria eclesiástica sensível por denotar o melindre do fenómeno eclesial, não confundível com os mecanismos de recrutamento político ou de provisão administrativa. Mas parece que tem de ser e, no dizer do povo, o que tem de ser tem muita força.
O caso da paróquia de São João Batista de Canelas, do concelho de Vila Nova de Gaia, está ligado ao mecanismo de transferências de sacerdotes de e para paróquias e/ou outros serviços diocesanos – mecanismo em funcionamento regular, que não atinge necessariamente, em cada ano, todos os sacerdotes e/ou todas as paróquias. Segundo a determinação da Conferência Episcopal, os sacerdotes são colocados e nomeados normalmente por um sexénio (período de seis anos), sendo automaticamente renovada a nomeação por outro sexénio, se outra coisa não tiver sido determinada. Naturalmente que o bispo diocesano não fica inibido de proceder a nomeações por período de tempo de duração inferior.
Os critérios que presidem à nomeação, remoção ou transferência de párocos são habitualmente os seguintes: o bem da Igreja, o bem das comunidades ou setores em causa e o bem da pessoa a nomear, transferir ou remover.
Depois, o processo de provimento das paróquias não decorre usualmente pelo processo eleitoral como para o provimento dos órgãos do poder político (central, regional ou local), por duas ordens de razões: na sociedade civil, em princípio, quem está no gozo dos seus direitos cívicos e políticos pode eleger e ser eleito e esta é a fonte de legitimidade originária de poder político (em vigor com a entrada em funções), mesmo que o seu exercício possa ser entregue a titulares de cargos providos por nomeação (obviamente derivada de órgãos eleitos direta ou indiretamente); por outro lado, embora a paróquia e a freguesia possam coincidir territorialmente em população, são realidades diferentes, pois a gestão da freguesia consubstancia-se na tomada de decisões políticas e administrativas por órgãos representativos (assembleia e junta) e os seus fins são de ordem temporal, ao passo que a vida da paróquia se consubstancia no serviço desempenhado não em termos de representação, mas de participação e colaboração, tanto assim que na paróquia pululam os sistemas de coordenação e os grupos de serviços, a assembleia é constituída por todos os elementos da paróquia e os fins são marcadamente espirituais e apostólicos.
A freguesia é por definição constitucional, uma autarquia local e, como tal, é uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos (assembleia e junta), visando a prossecução de interesses próprios da sua população (vd CRP art.os 235.º/2 e 244.º). Já a paróquia é, segundo o código de direito canónico (CIC ou CDC), uma comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura (cuidado) pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano, está confiada ao pároco, como a seu pastor próprio (cf CIC can. 515 § 1). Ora, o coletivo é o somatório dos indivíduos; na comunidade cristã, em que subsiste a Igreja Corpo de Cristo (povo, mas povo de Deus; e povo de Deus não diz “não”), mais do que essa vertente, importa o liame comunitário forjado na mesma fé, norteado pela mesma esperança e animado pela mesma caridade.
Na paróquia, o responsável não é eleito, porque nem todos podem ser o pároco, mas unicamente aqueles que estejam constituídos na sagrada ordem do presbiterado (cf CIC can. 521 § 1). Além disso, todos conhecem a magreza de vocações sacerdotais, que impede que o pároco gira uma só paróquia, como seria desejável (1.ª parte do § 1 do can. 526), tendo que se socorrer o bispo do concedido na 2.ª parte do § 1 do can. 526, que estabelece: “pode ser confiada ao mesmo pároco a cura de várias paróquias vizinhas”.
E quem é e o que é o pároco? O pároco é o pastor próprio da paróquia (e não outro) da paróquia que lhe foi confiada e presta serviço à comunidade que lhe foi entregue, sob a autoridade do bispo diocesano, do qual foi chamado a partilhar o ministério de Cristo, para que, em favor da mesma comunidade, desempenhe ele o múnus de ensinar, santificar e governar, com a cooperação ainda de outros presbíteros ou diáconos com a ajuda dos fiéis leigos, nos termos do direito (cf can. 519). Para que alguém seja assumido como pároco, deve, além da ordenação presbiteral (sacerdotal), ser notável pela sã doutrina e probidade de costumes, zelo das almas, e dotado das outras virtudes, e gozar ainda daquelas qualidades que, pelo direito universal ou particular, se requerem para tomar a seu cuidado a paróquia de que se trata (cf can. 521 § 2).
Alguém do movimento Uma Comunidade Reage se deu ao cuidado de estudar estas questões jurídico-canónicas, assentes na doutrina conciliar, nomeadamente da Lumen Gentium, Constituição Dogmática sobre a Igreja, e no decreto Christus Dominus, sobre o Múnus Pastoral dos Bispos? Estará aqui em causa a luta pela salvação das almas, a lei suprema da Igreja?
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O Bispo do Porto, aconselhado por quem de direito, à semelhança dos procedimentos seguidos para com outros, convidou o pároco de Canelas para um outro serviço diocesano. Por dificuldades surgidas na gestão da transferência (não me importa saber se a culpa foi do reverendo padre ou de alguns dos paroquianos ou das duas partes), o prelado condescendeu em desanexar o processo de Canelas do conjunto dos demais e disponibilizou outras hipóteses de escolha de serviço ao sacerdote em causa. Entretanto, confiou a paroquialidade de Canelas a outro padre vizinho, nos termos canónicos (vd exposto supra). A população auto-organizou-se num movimento Uma Comunidade Reage e tentou bloquear a entrada em funções do novo pároco. E, a princípio, conseguiu tornar pública a imagem da alegada inanidade ou da minoração da ação do novo pastor. Os canais generalistas deram notável contributo à rebelião popular. A ação persiste já sem as pantalhas usuais, porque outras notícias ganharam maior vulto.
O novel sacerdote conseguiu, entretanto, organizar os serviços paroquiais de estrutura e de dinamização. Os bloqueadores são cada vez menos numerosos, mas mantêm a sua força. É normal que a organização do compasso pascal tenha borregado, já que os novos colaboradores da paróquia, por mais ousados que sejam, não queiram expor-se a insultos, como já tem acontecido. Com efeito, as autoridades policiais têm conseguido manter a ordem de modo a que os ofícios pastorais sejam satisfeitos e o pároco se desloque em segurança, embora não tenham inibido – e bem – as pessoas de se manifestarem. Porém, a segurança em todo o perímetro paroquial e por todo um dia não seria fácil de assegurar. Ademais, o serviço do compasso, por conveniente que seja, não configura um serviço inerente à essencialidade da vivência eclesial.
Entendo que ao padre que tinha anteriormente a cura da paróquia tivesse custado a decisão episcopal, bem como a alguns paroquianos, já que as afeições que se criam naturalmente não se desfazem com facilidade. Todavia, parece-me que a persistência na rebeldia do ex-pároco e do grupo de cristãos de Canelas configuram teimosia claramente contrastante com o bom senso, ganham o perfil de desobediência eclesial, ferindo o ser, o devir e a missão da Igreja e soam a escândalo. Seria menos mau se enveredassem provisoriamente pela cura do tempo, por exemplo, ficando em casa ou frequentado a missa noutro lugar.
Não, um ostensivo jantar com anterior pároco, que poderia tolerar-se como despedida e sinal de simpatia e reconhecimento, a que se segue via-sacra reiteradamente presidida pelo ex-pároco, uma peregrinação a Fátima com o mesmo sacerdote, vigília junto ao Paço Episcopal entrada na Sé, atos de vandalismo, insultos – são epifenómenos que significam vedetismo, falta de senso, falta de comunhão em Igreja, mau serviço à causa de Cristo, falta de respeito a pessoas.
Depois, incoerência: o pároco atual não foi eleito, o povo não foi ouvido para a sua nomeação. E o padre anterior tinha sido? O bispo do Porto veio sem ninguém o chamar, queixam-se alguns dos cristãos de Canelas. E o Papa Francisco foi eleito por sufrágio universal e direto? A que títulos lhe mandaram uma carta, quando a competência do Papa (não falo aqui da jurisdição) não chega a estas paróquias? Querem um padre imposto por Roma? Se calhar, eu também queria que o Papa fizesse o que eu mandasse…
Mas a comunicação Social é clara:
Depois de nove meses de luta contra a saída do padre Roberto de Sousa da paróquia de Canelas, em Vila Nova de Gaia, o movimento ‘Uma Comunidade Reage’ resolveu enviar uma carta ao papa Francisco. No interior do envelope seguiram as razões que levaram o pároco a abandonar a freguesia, uma petição com 5700 assinaturas e as inúmeras notícias que saíram na comunicação social. “Esperemos que o papa apele à sensibilização e nos dê razão”, explicou Miguel Rangel, representante do movimento. À porta do posto dos CTT, concentraram-se dezenas de pessoas que aplaudiram o momento da entrega (vd CM de 28/3).
É nítida a ostentação do movimento, não?
A Igreja de Canelas foi vandalizada na madrugada de ontem (dia 29). As fechaduras de dois portões foram seladas com uma massa que, quando seca, solidifica e assemelha-se a cimento. A GNR foi alertada às primeiras horas da manhã pelo sacristão. Vários militares conseguiram remover o material do portão principal, mas o secundário – o único que permite o acesso a pessoas com mobilidade reduzida – continuava, ontem à tarde, com a fechadura inutilizável. O movimento, que pede o regresso do padre Roberto à paróquia, rejeita qualquer envolvimento no caso, numa altura em que os cónegos do Porto pedem ‘bom senso’(vd CM de 30/3).
“Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele” – diz o nosso povo.
Depois, o pároco anterior perdeu o senso ao aproveitar a ocasião para denunciar atividades presuntivamente pecaminosas doutro sacerdote que vive noutra diocese, alegadamente praticadas num passado um tanto longínquo e que trabalhava algures ainda noutra diocese (ambas as dioceses diferentes da do Porto). Tal oportunismo parece dar a entender que o padre terá perdido as demais qualidades exigidas canonicamente para a assunção da paroquialidade.
Cabe ainda a obrigação de, embora confessando a legitimidade cidadã da constituição de associações a quem quer que seja, denunciar a insensatez da transformação do movimento Uma Comunidade Reage numa associação, dados os fins enunciados, em que se destaca a promoção do regresso do “ex-pároco”, que alguma linguagem não cuidada designa por “ex-padre”.
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As reações dos “pares” eclesiásticos são as normais em casos como este, que ultrapassa as marcas. Em terras de outras dioceses e com outros sacerdotes, a paróquia já tinha ficado ao abandono, o que também não parece desejável. Não se vai à missa em razão do padre, mas em razão de Cristo na pessoa de Quem o padre preside às celebrações.
O Núncio Apostólico pediu aos paroquianos de Canelas, descontentes com a substituição do padre, que retomem o diálogo com o bispo do Porto, adiantou à Lusa, em comunicado, o movimento “Uma Comunidade Reage!”. Segundo a nota, Mons. Rino Passigato aconselhou a população, que domingo após domingo se concentra à porta da igreja em protesto, obrigando o novo pároco a sair escoltado pela GNR, a encontrar com o bispo Dom António Francisco, “com realismo e bom senso”, uma solução “permanente, aceitável e viável” para Canelas. Resta saber se os descontentes permitem as condições para diálogo!
Por seu turno, em declarações recentes à agência Lusa, o secretário da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) disse que o seu conselho permanente manifesta “toda a confiança” nas decisões do bispo do Porto sobre a situação na freguesia de Canelas. O padre Manuel Barbosa frisou que o conselho permanente da CEP, reunido na terça-feira passada em Fátima, manifestou “apoio, comunhão e profunda solidariedade” para com o bispo do Porto, na decisão de substituir o pároco de Canelas, contestada pela população.
Ademais, também o Conselho de Presbíteros da Diocese do Porto emitira oportunamente um comunicado, lido em todas as igrejas da diocese em missa dominical, de “apoio, comunhão e profunda solidariedade” para com o seu bispo.
O senhor Bispo do Porto não merecia ter este escolho logo no início do seu pontificado diocesano na grande e vetusta diocese portuense, a qual não se confina a Canelas, na sua dimensão e profundidade cristãs! Quem tiver a maior responsabilidade, que não se esconda e faça com nobreza o necessário mea culpa

É caso para dizer: Deus nos dê juízo, que idade já nós temos!

segunda-feira, 30 de março de 2015

Eloi, Eloi, lama sabacthani? – Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mc 15,34)

Hossana! – Crucifica-O. Ressuscitei!

A interrogação vertida na epígrafe constitui o lamento enigmático de Cristo no alto da cruz momentos antes de expirar. São palavras proferidas em aramaico que os circunstantes já não percebiam e que, segundo os evangelistas Mateus (Mt 27,46 tem a variante “Eli, Eli, lemá sabacthani?) e Marcos, foram entendidas como estando Jesus a chamar por Elias. Por outro lado, podem soar a lamento estranho, se se pensar na intimidade recorrentemente professada por Jesus entre Si e o Pai. Como é que Este o abandona?
Todo o judeu piedoso, quando enuncia o início de uma oração, nomeadamente uma oração sálmica, a aceita na sua totalidade. Aliás, é o que nós hoje também fazemos. Sobretudo no missal antigo, a cada passo, para evitar a repetição textos, se remetia para os primeiros segmentos discursivos de epístola, evangelho ou oração, para assumir a totalidade do texto.
Ora o enunciado em epígrafe corresponde à primeira parte do versículo 2 do salmo 22 (21), já que o versículo 1 é preenchido pelas indicações corais e de autoria: “Ao diretor do coro. Pela melodia “A corça da aurora”. Salmo de David”. Era frequente o coro entoar um salmo com a música de peças conhecidas popularmente, indicadas na portada do salmo, mas não descritas.
Esclareça-se, parenteticamente, o motivo por que os salmos de 9 a 147 têm dupla numeração: o número que vem em primeiro lugar corresponde à numeração da Bíblia Hebraica; o segundo, que vem entre parêntesis, resulta da divisão do salmo 9 em dois na versão dos Setenta, que passou para a Vulgata e para as antigas traduções portuguesas (utilizada em edições litúrgicas).
É certo que o salmo em causa é impressionante e mesmo desconcertante, entrecortado pelos sentimentos mais díspares: da sensação de abandono, súplica intensa perante o sofrimento e o sentimento de aniquilação, até à manifestação de esfuziante alegria, passando pela expressão de inabalável confiança a toda a prova e o propósito do louvor na assembleia dos irmãos. Tudo isto fica servido por imagens rudemente chocantes (manadas de touros, leão que devora e ruge, matilha de cães, água derramada, secura de garganta, cravação de mãos e pés…), gritos, petições instantes, explícitas manifestações de confiança, indicação de procedimentos sacrificiais, anúncio da justiça e conversão dos povos.
Embora desemboque na reunião da assembleia para o devido sacrifício de louvor a Deus – disponível para os pobres e para os confins da Terra, aliás a finalidade da morte redentora na cruz – o salmo é de oração individual, que se move a partir do estado de aflição do orante (vv 2.12), com a descrição das atitudes dos malfeitores (vv 12-19), e o modo como experimenta na sua vida a presença do Senhor (vv 3-11) e a relação que terá com os irmãos (vv 26-32). Exprime de tal modo a experiência do sofrimento que se tornou arquétipo da densidade religiosa. Segundo os evangelistas acima citados, Jesus utilizou aquelas primeiras palavras do texto do salmo como oração suplicante quando se encontrava no patíbulo da cruz. Além deste, outros versículos deste salmo são inseridos na narrativa da Paixão: “Depois de o terem crucificado, repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte” (Mt 27,35); “Confiou em Deus; Ele que o livre agora, se o ama, pois disse: ‘Eu sou Filho de Deus!’” (Mt 27,43). Por isso, a Cristologia assumiu este salmo, que ganhou, na tradição cristã, uma índole quase messiânica, graças à leitura que dele se fez em contexto eclesial pela valorização teológica do sofrimento pessoal, em contraponto ao pomposo messianismo real (régio), de que os apóstolos tiveram dificuldade em desprender-se.   
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Atentando na sua aplicação litúrgica, começo pelo “Domingo de Ramos na Paixão do Senhor” – do “Hossana” ao “crucifica-O”, para a inanidade do túmulo. Depois da solene evocação da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, aclamado pela multidão, que gritava hossanas, empunhava ramos e estendia capas para O vitoriar, a celebração eucarística, na consciência de que fora para realizar o mistério da norte e ressurreição que Ele entrou na Cidade, envereda pelo tom messiânico já não da apoteose, mas do sofrimento obnubilante da Realeza divinal. E à proclamação da Primeira Leitura, que aborda o mistério do Servo de Deus que Se oferece como vítima pelos Seus irmãos, entregue nas mãos do Pai até à morte e morte de cruz, como caminho de glorificação (cf Is 50,4-7), responde-se com fragmentos deste salmo 21 sob a batuta refrónica do grito, “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?. 
Note-se que os fragmentos recitados ou cantados nesta ocasião, embora evidenciem o lamento, pelo abandono e a agressão dos circunstantes, espelham a confiança e esperança em Deus (Mas Tu, Senhor, não te afastes de mim! És o meu auxílio: vem socorrer-me depressa! – v 20), o propósito de louvor na assembleia (Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da assembleia. – v 23), com o convite aos irmãos a que glorifiquem e reverenciem o Senhor (Vós, que temeis o SENHOR, louvai-o! Glorificai-o, descendentes de Jacob! Reverenciai-o, descendentes de Israel! – v 24). O hossana há de regressar como “aleluia” na madrugada da Ressurreição.
Na hora intermédia da semana III de sexta-feira, é recitado este salmo, sob a epígrafe rubrical “A aflição do justo e a sua libertação”, dividido em três frações, funcionado liturgicamente como se fossem três salmos, tendo cada uma das partes, no tempo comum, a sua antífona.
Na primeira parte, o salmista considera-se o homem abandonado, a quem o Senhor não responde nem sequer presta atenção (vv 2-3). Não obstante, ele sabe que Deus mora no santuário e sempre socorreu Israel em suas tribulações (vv 4-6). Por consequência, apesar de todos mofarem dele (vv 7-9), este homem de fé recorda ao Senhor que Lhe pertence “desde o seio materno” (vv 10-11), pelo que Lhe roga que o ajude, porque está a sofrer o insulto e a perseguição até à dilaceração mortal (v 12).
Na segunda parte, os inimigos do salmista são comparados a manadas de touros que investem e a leão que ruge (vv 13-14), é descrito o estado lastimável a que este homem foi reduzido (vv 15-16), é referido como o cerco que lhe preparou um bando de malfeitores (matilha de cães) lhe trespassou as mãos e os pés, repartiu as suas vestes e lançou a sua túnica às sortes (vv 17-19). Todavia, este infeliz não desiste da esperança e pede a Deus que o socorra e salve (vv 20-22) para que possa continuar a louvá-Lo e a anunciá-Lo aos irmãos (v 23).
Na terceira e última parte, o salmista incita Israel ao louvor de Deus, porque Ele afinal não desprezou o sofredor nem dele escondeu a Sua face, antes, pelo contrário, veio em seu auxílio (vv 24-25), e profeticamente compromete-se a cumprir a sua promessa de que fará com que os pobres se saciem e se alegrem (vv 26-27). Por sua vez, todos os confins da Terra se converterão e hão de adorar só a Deus (vv 28-30). E o próprio salmista e a sua descendência viverão para o Senhor e para revelar a sua justiça e a suas maravilhas “ao povo que há de vir” (vv 31-32).
É óbvio que este salmista é a figura veterotestamentária de Jesus Cristo, o Servo Sofredor, a Quem vimos desprezado, homem das dores e experimentado no sofrimento (Is 53,3), d’ Aquele que exclamou em alta voz “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34), com a certeza de que precisamente “diante d’ Ele virão prostrar-se todas as famílias das nações (v. 28), implorando a salvação e obtendo a redenção. A cruz do Justo fez assim surgir uma nova humanidade.
Ora, parafraseando Santo Agostinho, deve dizer-se que a Paixão de Cristo foi operada uma só vez. Todavia, ela é descrita por antecipação, neste salmo, de modo tão eloquente como nos evangelhos, apesar de o salmo ser redigido e cantando muitos anos antes de o Senhor ter nascido de Maria. Por outro lado, a Paixão do Senhor presentifica-se sacramentalmente e coloca-se à disposição dos filhos de Deus sempre que se celebra a Eucaristia, tanto na assembleia de uma pequena comunidade como na da multidão de mais de 6 milhões de pessoas, em janeiro passado nas Filipinas, com o Papa Francisco. E a Paixão de Cristo revive hoje em cada pessoa que sofre a enfermidade ou em cada grupo que seja explorado, perseguido espezinhado, escravizado, dilacerado, ou seja, sempre que a dignidade do homem ou da comunidade humana é vilipendiada, diminuída ou ignorada (cf Mt 25,45).
O entendimento cristão do salmo passa pela sua leitura à luz do Novo Testamento, de que é um dos exemplos a seguinte perícopa da 1.ª carta de Pedro (1Pe 2, 21-25), rezada quase na totalidade nas Vésperas II dos Domingos da Quaresma:

Cristo padeceu por vós,
Deixando-vos o exemplo,
Para que sigais os seus passos.

Ele não cometeu pecado,
Nem na sua boca se encontrou engano;
Ao ser insultado, não respondia com insultos;
Ao ser maltratado, não ameaçava,
Mas entregava-se àquele que julga com justiça;

Subindo ao madeiro,
Ele levou os nossos pecados no seu corpo,
Para que, mortos para o pecado,
Vivamos para a justiça:
Pelas suas chagas fostes curados.

Na verdade, éreis como ovelhas desgarradas,
Mas agora voltastes ao Pastor
E Guarda das vossas almas.

Homem algum sentiu tão marcadamente na carne o aguilhão do sofrimento como o filho de Deus, despojado de tudo, até da sua divindade – mistério insondável de humilhação e aviltamento d´Aquele que é da substância do Pai, Luz da luz, gerado pelo Pai antes de todos os séculos. Foi, no entanto, pela Cruz que Jesus, Filho Unigénito de Deus, Homem das dores, desprezado e experimentado no sofrimento, fez ressurgir o homem novo (cf Fidêncio Conte in os salmos da minha vida, Difusora Bíblica, 1991).


Cf ainda SNL, Missal Popular vol I Dominical, Gráfica de Coimbra, 1994; SNL, Saltério Litúrgico, ib, 1983; J. Machado Lopes, Os salmos – vida e oração, Difusora Bíblica, 1985; Nova Bíblia dos Capuchinhos, ib, 1998).

domingo, 29 de março de 2015

No encalço do sentido do termo “requalificação”

O termo tem sido badalado recorrentemente com um sentido eufemístico nos últimos anos, no âmbito da mobilidade dos trabalhadores da administração pública – termo este revestido também de semelhante ambiguidade.
Nos últimos dias, ficámos a saber que a anterior administração da RTP, em vésperas de deixar a casa, terá procedido a uma “requalificação de trabalhadores”. O atual presidente Gonçalo Reis confirmou o facto, de que Alberto da Ponte diz não se lembrar, adiantando deslavadamente, no entanto, que “tudo o que foi feito estará exarado em ata”. O anterior presidente da RTP, embora evasivamente, esclarece mais: “Houve várias requalificações ao longo da história da RTP, não posso dizer que sim nem que não. Se a decisão foi tomada, tudo foi cumprido conforme com o exigido. Já passaram alguns meses, não me lembro se existiu ou não” (cf DN, de 28 de março).
É certo que a história da RTP já tem uma história de laboração regular desde 1957, mas a história da RTP com Alberto da Ponte teve a longevidade (?) de pouco mais de dois anos. Provavelmente, estaremos perante a repetição do fenómeno do “bavismo”, professado e exercitado na Assembleia da República por um ilustre e garboso doutor “honoris causa”, do tipo de evasiva, Não sei… não me lembro… não tenho memória.
Porém, esta requalificação é de luxo: no encalço da rescisão voluntária de contrato de uma série de trabalhadores (uns 400), procedeu-se a aumento de salários e/ou subida de escalão. É natural e de elementar justiça, – asseguram alguns – estavam previstas algumas requalificações (que não atingiram todos os trabalhadores), sobretudo ao nível das chefias. Por outro lado, “é preciso verificar esta situação, sobretudo numa empresa que não tem aumentos há anos e que tem atravessado processos de rescisões”, adverte um dos profissionais da empresa pública (cf id et ib).
Trata-se de um conceito de requalificação bem diferente do que está em vigor na administração pública. Nesta, baixam-se os salários, agravam-se as condições de trabalho e, à partida, podem ser abrangidos todos os trabalhadores, depende! E alguns ficam na varanda do desemprego, alegadamente por insuficiência de postos de trabalho.
Antigamente, quando o posto de trabalho público emagrecia num setor, poderia alargar-se noutro setor, os funcionários poderiam sujeitar-se a curso de formação para exercício de novas funções; e, quando fosse reestruturada a carreira específica ou redefinidas as categorias, havia o reposicionamento. Falava-se então em processo de reclassificação, que todos entendiam.
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Hoje, o eufemístico conceito de “requalificação” evoluiu a partir do conceito de “mobilidade”, que também tem o seu quê de ironia. Dantes, a par do destacamento, requisição, comissão de serviço, tínhamos o instituto administrativo de deslocação duradoura por motivo de urgente conveniência de serviço e a deslocação ocasional, subsidiada a nível de transporte e ajudas de custo, por tarefas ocasionais, incluindo as ações de formação.
Ora a mobilidade geral, em termos laborais (não está em causa aqui a mobilidade no sentido de transporte ou deslocação mais fácil ou difícil), consistirá na ocupação de posto de trabalho através da colocação de um trabalhador na mesma situação ou com conteúdo funcional em órgão ou serviço, ou em diferente situação ou com conteúdo diferente no mesmo ou em diferente órgão ou serviço. Trata-se de procedimento que implica um acordo tripartido entre o trabalhador, os órgãos ou serviços de origem e os de destino.
Pode a mobilidade geral, a partir do que foi dito, ser externa ou interna, pressupondo-se a existência de um interesse público ou, no caso de uma empresa, o interesse geral da empresa.
A mobilidade externa, ou cedência de interesse público, abrange trabalhadores com relação jurídica de emprego público, caso a mobilidade se processe de entidades públicas para entidades privadas ou entidades públicas não abrangidas pela LVCR (lei de vinculação de carreiras e remunerações) ou trabalhadores sem relação jurídica de emprego público de entidades privadas para entidades públicas. Por sua vez, a mobilidade interna abrange trabalhadores que possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado e só pode processar-se entre entidades públicas no âmbito da LVCR, podendo assumir duas modalidades: a mobilidade na categoria; e a mobilidade intercarreiras ou intercategorias.
Também se chamava mobilidade às situações decorrentes do mecanismo de concurso público de trabalhadores. Estão neste caso os professores, que têm um estatuto específico (ECD aprovado pelo Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de abril) e um mecanismo de concurso externo e interno estabelecido por decreto-lei (Decreto-Lei n.º 132/2012, de 27 de junho). Os diplomas legais que os consagram foram recentemente alterados pela lei de requalificação.
Está visto que a mobilidade em si mesma não implica a diminuição de vencimento, podendo naturalmente acarretar a melhoria eventual das remunerações ou a perceção de um suplemento remuneratório se a situação dela resultante for mais gravosa.
Já a requalificação, como se encontra definida na lei é outra coisa bem diferente. Neste momento, está em vigor a Lei n.º 80/2013, de 28 de novembro, que “estabelece o regime jurídico da requalificação de trabalhadores em funções públicas, visando a melhor afetação dos recursos humanos da Administração Pública, e procede à nona alteração à Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, à quinta alteração ao Decreto-Lei n.º 74/70, de 2 de março, à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de abril, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 209/2009, de 3 de setembro, e à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 132/2012, de 27 de junho, revogando a Lei n.º 53/2006, de 7 de dezembro”.
Esta lei vem regulamentada pela Portaria n.º 48/2014, de 26 de fevereiro, no atinente aos termos e a tramitação do procedimento prévio de recrutamento de trabalhadores em situação de requalificação. 
Segundo a lei, a requalificação é uma situação jurídico-funcional em que são colocados os trabalhadores na sequência de processos de reorganização ou de racionalização de efetivos – que não são necessários ao desenvolvimento da atividade desses serviços.
A requalificação é aplicável a trabalhadores que possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado.
O processo de requalificação decorre em duas fases (vd art.º 17.º da lei n.º 80/2013): 1.ª fase, com a duração de 12 meses, seguidos ou interpolados; e 2.ª fase, a iniciar após o decurso do prazo anterior e sem termo pré-definido.
A 1.ª fase destina-se a reforçar as capacidades profissionais do trabalhador, criando melhores condições de empregabilidade e de reinício de funções, devendo envolver a identificação das respetivas capacidades, motivações e vocações, a orientação profissional, a elaboração e execução de um plano de requalificação, incluindo ações de formação profissional e a avaliação dos resultados obtidos. O trabalhador é enquadrado num processo de desenvolvimento profissional com um programa de formação específico (da responsabilidade da entidade gestora do processo de requalificação), para reforço das competências profissionais, sendo individualmente acompanhado e profissionalmente orientado.
Na 2.ª fase, o trabalhador não está sujeito ao enquadramento específico previsto para a 1.ª fase, sem prejuízo de outros processos de valorização profissional a que possa vir a ser afeto por iniciativa da entidade gestora do sistema de requalificação ou por iniciativa do próprio.
Quanto às remunerações, durante a 1.ª fase, o trabalhador aufere remuneração equivalente a 60 %, com o limite máximo de três vezes o valor do indexante dos apoios sociais (IAS); na 2.ª, aufere remuneração equivalente a 40 %, com o limite máximo de duas vezes o valor do IAS. Estas remunerações correspondem à remuneração base mensal referente à categoria de origem, escalão, índice ou posição e nível remuneratório detidos à data da colocação em situação de requalificação. A remuneração base mensal está sujeita às ulteriores alterações, nos termos em que o seja a remuneração dos trabalhadores em exercício de funções, não podendo ser inferior à retribuição mínima mensal garantida (RMMG).
Literalmente, a lei não prevê o despedimento do funcionário em requalificação. Todavia, o rol de deveres a que se encontra sujeito faz dele um indivíduo necessariamente atento a um complexo conjunto de factos aos quais tem de responder sob pena de cair em infração que leva à demissão. Do lado dos direitos, sobretudo ao nível da formação, já estamos habituados à forma superficial e deficiente como o Estado cumpre este tipo de obrigações.
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Mas, o que é ou deveria ser a requalificação? O termo tem que se enquadrar no conjunto dos termos da família de palavras que integra. Ele deriva de “qualificação”, que é ato de “qualificar” (de quale + facere, no latim), que significa fazer ou tornar alguém ou algo tal e “qual” entendemos dever ser, dar qualidade através de processo conveniente ou reconhecer qualidade existente a algo ou a alguém que já a tem. “Qualificar-se” – verbo na conjugação pronominal reflexa significa “demonstrar, possuir qualidades; reunir condições para”.
“Qualidade” (de “qualitas, qualitatis”, no latim), termo da mesma família, significa atributo, caraterística (em si, neutra, mas geralmente entendida como boa, positiva). Remonta ao pronome relativo “o qual” ou ao pronome e ao determinante interrogativo “qual!? E, assim, aponta para referência e especificação.
Depois, a “requalificação” será a restituição da qualidade ou da qualificação perdida (caso da requalificação de objetos, estradas, edifícios, bairros, monumentos) ou atribuição de nova qualidade ou desenvolvimento de novos processos de qualificação. E “requalificar” é tornar a qualificar, qualificar de novo, acrescentar qualificação.
É usual distinguir entre qualificação pessoal e qualificação profissional. Penso que a qualificação de pessoas será sempre pessoal, embora possa direcionar-se para a valorização tipicamente pessoal, para o exercício político, para a intervenção social ou para o desenvolvimento profissional.
Seja como for, convém especificar:
A qualificação pessoal compreende os atributos do indivíduo, não expressamente em função da empresa ou da organização, mas enquanto pessoa humana, corrigindo defeitos e insuficiências e tornando-se melhor e logrando melhor desempenho em todos os âmbitos.
Já a qualificação profissional diz respeito à preparação do indivíduo através de uma formação profissional com vista ao aprimoramento das suas habilidades para executar funções específicas demandadas pelo mercado de trabalho e mesmo à especialização em determinadas áreas para executar da melhor forma as atribuições que lhe são confiadas. Não constitui uma formação completa, mas é utilizada como complemento da educação formal. O seu principal escopo é a incorporação de conhecimentos teóricos, técnicos e operacionais relacionados com a produção de bens e serviços, por meio de processos educativos desenvolvidos em diversas instâncias (escolas, sindicatos, empresas, associações…). Neste mundo atual e globalizado, o mercado de trabalho mostra-se cada vez mais exigente, e a demanda de uma colocação profissional não é mais uma questão de empenho ou de sorte, mas de qualificação.
A qualificação profissional tornou-se mais do que essencial e determinante para o futuro profissional dos indivíduos. Uma vez que muitos profissionais de recursos humanos já consideram o diploma de curso superior como uma qualificação mínima para obter sucesso, o indivíduo deve especializar-se ainda mais, com pós-graduações, conhecimento de três ou mais idiomas, currículo extenso, e etc.
Algo de semelhante deve dizer-se em relação ao mundo da política e da intervenção social, em que também o amadorismo se tem revelado mau conselheiro.
Para requalificar, não deveríamos, pois, sentir a necessidade de nos ensarilharmos em expedientes legislativos ou administrativos, mas assumir o ónus da reiteração da qualificação. De resto, se a intenção é outra – despedir, reduzir salários ou promover e aumentar remuneração – deveriam chamar-se os “bois” pelos nomes e fugir dos eufemismos.

De resto, nuns setores públicos requalifica-se tirando, reduzindo; noutros, requalifica-se promovendo e pagando mais. Os portugueses são todos iguais… mas uns são mais iguais que outros. 

sábado, 28 de março de 2015

Recentração cristológica de duas celebrações litúrgicas

Até ao concílio Vaticano II, no dia 2 de fevereiro, celebrava-se a festa da Purificação da Bem-aventurada Virgem Maria (Duplex II Classis) e, no dia 25 de março, a festa da Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria (Duplex I Classis). Com a reforma litúrgica, estabelecida na Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (sobre a Sagrada Liturgia), o ano litúrgico foi reperspetivado, bem como o seu calendário, e as festividades acima enunciadas, que se mantêm nos mesmos dias, são classificadas, segundo a nova nomenclatura, na categoria de “festa”, a primeira, com a designação de “Apresentação do Senhor”, e, na categoria de “solenidade”, a segunda com a designação de Anunciação do Senhor.
É óbvio que não se tinha esquecido nem sequer subvalorizado o mistério de Cristo, quer no ordenamento do calendário do ano litúrgico quer nos textos bíblicos e litúrgicos selecionados. No entanto, tanto a designação daquelas festividades como a maneira como, a partir das mesmas, se apresentavam a doutrina e a sua influência na piedade e arte populares punha o acento no papel de Maria, parecendo ficar Jesus Cristo como que o fruto e a consequência do papel de Sua Mãe. Bem vejo que não era essa a intenção nem era esse o agrado complacente de Maria, embora ela tenha dado e continue a dar evidente testemunho da relevância do seu múnus de testemunha da vontade divina ante a humanidade e do seu papel de testemunha dos dramas lancinantes vividos pelos filhos de Deus, bem como dos esforços destes de caminhada ao encontro de Cristo. Veja-se o episódio das bodas de Caná em que refere a potencial situação embaraçosa dos organizadores do banquete com o alerta premonitório, “Não têm vinho” (Jo 2,3) e a sugestão, “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5). E os servos cumpriram (cf Jo 2,9).
Também importa considerar que a quase totalidade das fórmulas de oração mariana orientam para Cristo, quando não para a Santíssima Trindade, e desembocam na imersão no mistério de Cristo. A título de exemplo, deve dizer-se que ninguém reza, na Ave-Maria, “Bendita sois vós entre as mulheres” que não diga logo “E bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus” ou, na Salve-Rainha “Salve, Rainha” sem que pronuncie a petição “Nos Mostrai Jesus, bendito fruto do vosso ventre”. Na Beira Alta, as pessoas antigas rezavam a Nossa Senhora, “Rogai a Jesus por nós”; e, no santuário da Lapa, a invocação completa era: “Nossa Senhora da Lapa, rogai por nós a Jesus”. Por outro lado, sobretudo depois da obra de S. Luís de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, divulgou-se o sábio aforismo mariano-cristológico, “Per Mariam ad Iesum” ou “Ad Iesum per Mariam” (Por Maria a Jesus). E chama-se à Virgem “Alma Redemptoris Mater” e a cada passo se lhe reza: “Rogai por nós, santa Mãe de Deus, / Para que sejamos dignos das promessas de Cristo”.
Também na enunciação sintética dos mistérios gozosos do Rosário, se dizia: A anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria (ou a Nossa Senhora), para a 1.ª dezena de ave-marias, e A Apresentação do Menino Jesus no Templo e a Purificação de Nossa Senhora, para a 4.ª dezena. 
Com o Catecismo da Igreja Católica e seu “Compêndio”, os mistérios gozosos são enunciados, sinteticamente e por ordem, como segue: A anunciação do Anjo à Virgem Maria; A visita de Maria a Santa Isabel; O nascimento de Jesus em Belém; A apresentação de Jesus no Templo; e A perda e encontro de Jesus no Templo. E, na versão latina (a da edição típica), o enunciado é ainda mais lacónico: Annuntiátio; Visitátio; Natívitas; Præsentátio; et Invéntio in Templo.
Quem olhar de soslaio, poderá pensar que terá havido qualquer perda. Pelo contrário, os dois primeiros mistérios, acentuando a figura de Maria, sem fazerem perder de vista quer o anjo da anunciação quer a destinatária da visitação quer todo o móbil das ações, o Cristo, ordenam-se para os seguintes, em que a figura do Messias ganha centralidade. É óbvio que a figura de Maria não fica obnubilada, já que não há nascimento sem a mãe, é a mãe que o apresenta e é ela que o encontra. E o papel de José emerge na leitura bíblica e na meditação, porque acompanha os passos de Maria e os diversos momentos da infância de Jesus. Porém, fica o orante, singular ou comunitário, dispensado de se distrair com o pensamento da razão de ser da necessidade de purificação da parte d’ Aquela que não tinha necessidade de purificação, uma vez que fora e é a “cheia de graça” (Lc 1,28.30), liberta de toda a mácula, original e pessoal. Era unicamente para cumprir a Lei de Moisés (Lc 2,22; Lv 12,1-8).
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Fez-se alusão, acima, à reforma litúrgica estabelecida pela Sacrosanctum Concilium (SC). Esta notável Constituição Conciliar, à semelhança das outras Constituições, centra o discurso em Jesus Cristo. E, mesmo quando o Concílio glosa outras temáticas como Igreja, Homem, Mundo, Maria Santíssima, Sacerdócio, Vida Religiosa, Ecumenismo, Laicado, Missões, Educação, Comunicação…, não se faz esperar a referência explícita e centrante a Jesus Cristo.
Assim, a Constituição Dogmática Sobre a Igreja, Lumen Gentium (LG), inicia-se com a afirmação “A luz dos povos é Cristo” (LG 1), sem nunca efetivamente o perder de vista. A Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes (GS), apresenta-nos Jesus Cristo como “resposta e solução da problemática humana” (GS 10), garantindo que, “na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente” (GS 22). Ora, “a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história, porque a comunidade eclesial “é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos (GS 1). Por consequência, “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1). É a paráfrase cristã do enunciado de Públio Terêncio Afro, Homo sum et nihil humani alieni a me puto.
Por seu turno, a Constituição sobre a Divina Revelação, Dei Verbum (DV), intitula o seu n.º 4 com a epígrafe “Consumação e plenitude da revelação em Cristo”, para o qual se orienta a revelação veterotestamentária e de quem decorre toda a pregação apostólica e os escritos neotestamentários: “Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala, portanto, as palavras de Deus (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cf Jo. 5,36; 17,4)… “Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (DV 4; cf 1 Tim. 6,14; Tit. 2,13). 
Sendo assim, é natural que a Sacrosanctum Concilium aponte para a centração da liturgia em Cristo, já que é conveniente respeitar o aforismo teológico lex orandi lex credendi, que esta Constituição Conciliar assume de certo modo ao sublinhar o valor didático da Liturgia:
“Embora a sagrada Liturgia seja principalmente culto da majestade divina, é também abundante fonte de instrução para o povo fiel. Efetivamente, na Liturgia Deus fala ao Seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração”. Depois, “as orações dirigidas a Deus pelo sacerdote que preside, em representação de Cristo, à assembleia, são-no em nome de todo o Povo santo e de todos os presentes. Os próprios sinais visíveis que a Liturgia utiliza para simbolizar as realidades invisíveis foram escolhidos por Cristo ou pela Igreja”. Assim, “não é só quando se faz a leitura ‘do que foi escrito para nossa instrução’ (Rm 15,4), mas também quando a Igreja reza, canta ou age, que a fé dos presentes é alimentada e os espíritos se elevam a Deus, para se lhe submeterem de modo racional e receberem com mais abundância a sua graça” (SC 33).
E, no quadro dos princípios gerais em ordem à reforma litúrgica, enunciados no seu capítulo I, afirma-se este enunciado: Jesus Cristo Salvador do mundo pelo sacrifício e pelos sacramentos, sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas – que se desenvolve repartido por três números (cf SC 5,6,7).
Quanto aos aspetos que respeitam ao ano litúrgico e ao calendário, a Constituição Conciliar recomenda a revisão do ano litúrgico de modo que, embora com adaptação às atuais circunstâncias, “mantenha o seu caráter original para, com a celebração dos mistérios da Redenção cristã, sobretudo do mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis” (SC 107). Por outro lado, recomenda a orientação do espírito dos fiéis prioritariamente para as festas do Senhor, que celebram durante o ano os mistérios da salvação, bem como a preferência do Próprio do Tempo sobre as festas do Próprio dos Santos, para que o ciclo destes mistérios possa ser celebrado no modo devido e na sua totalidade (SC 108).
Nestes termos, ficam no âmbito do Próprio do Tempo Comum (já que as outras quadras temporais são predominantemente dedicadas ao Senhor) as seguintes solenidades do Senhor, precedidas pela solenidade da Santíssima Trindade: Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), que dispensa que se mantenha “obrigatoriamente” uma festa específica para o Sangue de Cristo (era a 1 de julho); Sagrado Coração de Jesus; e Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. No âmbito do Próprio dos Santos, celebram-se: a Apresentação do Senhor (festa, a 2 de fevereiro); as Cinco Chagas do Senhor (festa, a 7 de fevereiro); a Anunciação do Senhor (solenidade, 25 de março); a Transfiguração do Senhor (festa, a 6 de agosto); e Exaltação da Santa Cruz (festa, a 14 de setembro). Quanto a Nossa Senhora, no Próprio do Tempo, temos a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, oito dias depois do Natal, ficando eliminada, com razão, a festa da Maternidade de Maria, a 11 de outubro. É precedida pela festa da Sagrada Família (domingo subsequente ao Natal, a menos que o dia 1 de janeiro seja domingo, caso em que a festa da Sagrada Família passa para 30 de dezembro). Depois, vem a memória do Imaculado Coração de Maria, no sábado seguinte à solenidade do Sagrado Coração de Jesus. No âmbito do Próprio dos Santos, temos: Nossa Senhora de Lurdes (memória, a 11 de fevereiro); Nossa Senhora do Rosário de Fátima (festa, a 13 de maio); Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (festa, a 31 de maio); Nossa Senhora do Carmo (memória, a 16 de julho); Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior (memória, a 5 de agosto); Assunção da Virgem Santa Maria (solenidade, a 15 de agosto); Virgem Santa Maria, Rainha (memória, a 22 de agosto), Natividade da Virgem Santa Maria (festa, a 8 de setembro); Nossa Senhora das Dores (memória, a 15 de setembro); Nossa Senhora do Rosário (memória, a 7 de outubro); Apresentação de Nossa Senhora (memória, a 21 de novembro); e Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria (solenidade, a 8 de dezembro).
Deu-se a permuta entre as festividades de 31 de maio e de 22 de agosto, ficando mais lógica a sequência “Assunção” e “Realeza” de Maria, em consonância com os mistérios gloriosos do Rosário – A ressurreição de Jesus (Resurréctio); A ascensão de Jesus ao céu (Ascénsio); A descida do Espírito Santo (Descénsus Spíritus Sancti); A assunção da Santíssima Virgem ao céu (Assúmptio); e A coroação de Nossa Senhora, como Rainha do céu e da terra (Coronátio in caelo). E, analisando o enunciado dos mistérios do rosário distribuídos por quatro conjuntos de cinco dezenas, verifica-se que o centro é ocupado por Cristo (3.º a 5.º dos mistérios gozosos; mistérios da luz e mistérios dolorosos; e 1.º e 2.º mistérios gloriosos) precedido pelos 1.º e 2.º mistérios gozosos e seguido pelos 3.º a 5.º mistérios gloriosos.
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Quanto aos conteúdos dos textos da reorientação litúrgica, são também referidos alguns aspetos, como se discrimina, atentando nos textos da Missa, com que sintonizam os respetivos Ofícios.
Para a festa de 2 de fevereiro, a Missa salienta Cristo como luz das nações, aquele que oferece ao Pai o sacrifício purificador, espiritual agradável a Deus, profetizado por Malaquias (cf Mal 3,1-4), e perfeito e expiante dos pecados do povo, como refere a carta aos Hebreus (cf Hebr 2,14-18). Acentua, por outro lado a natureza humana de Cristo que Se fez presente no Templo, Se oferece ao Pai e a quem se aplica o salmo 23 (24), que exalta o Rei da Glória. O Evangelho relata o episódio da apresentação de Jesus no Templo (Lc 2,22-40 ou 2, 22-32) por Maria e José. Do menino, Simeão profetizou ser o Salvador, a luz das nações, mas também sinal de contradição, bem como vaticinou a espada de dor que trespassará o coração de Maria, que tudo guardava no coração. Há um prefácio próprio (em lugar do antigo de Nossa Senhora), que sintetiza as linhas fundamentais do episódio da apresentação, a ligação da profecia simeónica ao Espírito Santo e a caraterística de Cristo como caminho (que nós temos de encontrar e seguir) para o Pai a Quem é devido o louvor das criaturas, nomeadamente dos Anjos e Santos.
E, para a solenidade de 25 de março, os textos da Missa salientam o Messias que vem voluntariamente fazer a vontade do Pai, correspondendo prontamente ao seu chamamento; e a inefabilidade do mistério da encarnação, para o qual a Virgem se disponibilizou e garantiu a índole humana de Deus em Jesus Cristo e a sua presença no meio dos Seus, como profetizava Isaías (cf Is 7,10-14; 8,10) e se cumpriu conforme atesta o Evangelho de Lucas (Lc 1,26-28). De notar que o Senhor, que elegeu Maria, está com ela e Ela é a “serva do Senhor” para dar à luz o “Filho do Altíssimo” ou o “Filho de Deus” e ao qual porá o nome de Jesus. Ele entra no mundo feito homem, sendo no dia da anunciação do Verbo que se inicia a marcha da Igreja (vd oração sobre as oblatas), Corpo de Cristo. O prefácio é próprio (em lugar do antigo de N. Senhora) e elenca as ações do Senhor para salvar os homens: o Anjo O anunciou à Virgem; Ela, pelo poder do Espírito Santo, O acolheu com fé e O trouxe em suas entranhas com amor; e Ele nasceu entre os homens. Depois, interpreta as ações. Ele vinha realizar as promessas feitas a Israel e satisfazer misteriosamente a esperança das nações.
É o festejo do Nome de Jesus em todas as solenidades, festas e memórias, que, ao invés da anterior festa no domingo entre oitava do Natal e a Epifania, tem relevo nos dias da Anunciação e de Santa Maria Mãe de Deus (vd Evangelho destes dois dias: Lc 1,31 e Lc 2,21, respetivamente).

É a proclamação do Cristo verdadeiro Deus e Homem e o apelo ao louvor da Trindade!