segunda-feira, 9 de março de 2015

A riqueza pícara dos prefácios presidenciais

O Prefácio do Presidente da República ao livro de intervenções Roteiros IX deu brado na Comunicação Social em duas vertentes: a alegada veleidade de definir o perfil do seu sucessor no Palácio de Belém; e a justificação tardia e alegadamente inexata da posição de Portugal quanto à adesão da Guiné Equatorial à CPLP.
Já não é a primeira vez que documento de natureza similar é acremente criticado pelos opositores de Cavaco e mesmo de alguns dos seus sequazes. Quem não se lembra da acusação explícita feita pelo Presidente, no prefácio ao livro Roteiros VI, a José Sócrates sobre matéria de deslealdade democrática (“uma falta de lealdade institucional que fica registada na história da nossa democracia”) a propósito da negociação do PEC IV sem conhecimento de Cavaco Silva?
Critica-se o Presidente por, a ser verdade, não o ter denunciado no tempo próprio e ter-se guardado para um período posterior (quase um ano depois) à queda do XVIII Governo Constitucional e quando o ex-primeiro-ministro já estava no estrangeiro em outras ocupações não políticas. Mas não sei se o Presidente ou quem o assessora nestes assuntos tem a noção de prefácio e da sua função e utilidade em relação a um livro que é conveniente ler. Pela extensão (excessiva, a meu ver) e pelo teor (dá-me a ideia de que se trata da transposição, em formato breve, do conteúdo para as páginas preliminares dos livros), penso que a utilidade dos livros presidenciais – os roteiros – será preencher o arquivo, tendo os prefácios uma função substitutiva dos documentos a que se reportam, ou seja, quem os ler fica dispensado de ler os livros.
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Afinal, o que é um prefácio e para que serve?
Como discurso produzido a propósito do texto que antecede e introduz, o prefácio inclui-se na matéria paratextual duma obra, ou seja, no conjunto de discursos da responsabilidade do editor, do autor ou de terceiros, que acompanha materialmente o texto prefaciado enquanto livro. Por outras palavras, é o texto introdutório duma obra em que o prefaciante (sempre uma pessoa conhecedora da obra e do autor) refere e justifica de forma sucinta o objetivo da obra, a estrutura e o conteúdo, bem como algo da personalidade e produção do autor.
É enorme a variedade de termos para designar estes paratextos: entrada, introdução, exórdio, introito, prólogo, proémio, preâmbulo, prelúdio, apresentação, início, isagoge, prefácio, prefação, prolegómenos, propedêutica, pródromo, encabeçamento, antelóquio, iniciação, prolusão, prenúncio, princípio,
Afigura-se, por isso, importante especificar as propriedades que dão consistência ao texto prefacial, definindo-o enquanto género. Em Seuils, Gerard Genette (Genette, 1987) ocupa-se precisamente deste estudo e daquilo a que chama a função prefacial.
A história do prefácio como elemento paratextual remonta à Antiguidade. Numa fase a que Genette chamou “pré-histórica” – de Homero a Rabelais – o prefácio é breves e simples. Se a obra não se inicia ex-abrupto, a função prefacial é assumida pelas primeiras linhas do texto. Deste modo, encontramos já textos de conteúdo prefacial na proposição, na invocação e dedicatória da Epopeia; no exórdio da retórica; e o prólogo na comédia paliata greco-latina, na tragédia e mesmo nas primeiras páginas de algumas obras historiográficas. No texto dramático clássico e medieval, apenas a “comédia” contempla a existência de prefácio na forma de um monólogo inicial de advertência / comentário ao público enunciado por uma personagem (o prólogo da Aulularia, de Plauto, inicia-se como o segmento: Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar). Neste ponto, convém não confundir a função do prefácio com a do prólogo da tragédia, em que o prólogo integra necessariamente a economia da peça. A era da oralidade e do manuscrito é marcada pela economia de meios que dissimula a prática prefacial. O prefácio alongado e isolado do texto por estratégias editoriais liga-se à existência do texto impresso, pelo que, a partir do século XVI, o prefácio adquire visibilidade, ganhando estatuto textual relativamente autónomo e consolidando as suas caraterísticas. Nesta fase, os prefácios de Rabelais têm simbolicamente um valor inaugural por serem dos primeiros a surgir destacados.
Apesar de manter uma estrutura que lhe dá consistência, o prefácio sofre, ao longo dos tempos, uma dinâmica de atualização que acompanha a própria história literária. Torna-se possível estudar a evolução das ideias a partir da leitura destes discursos que, muitas vezes, revelam lugares-comuns epocais, enformando uma estrutura teórico-literária (deste modo, por exemplo, pela leitura de vários prefácios produzidos no barroco português, infere-se que as problemáticas do decoro e da modéstia – falsa ou não – são duas constantes nesta época; em 1827, ficou célebre o prefácio de Vítor Hugo a Cromwell, que enunciou o ideário programático do romantismo francês).
O prefácio figura como um pré-texto entre as partes eventuais de um livro, justificando-se em obras já destinadas à publicação, surgindo no início da obra, onde, não raras vezes, passa despercebido à maioria dos leitores. Já, no que se refere ao núcleo informacional, o prefácio não pretende resumir nem desenvolver os conteúdos presentes na obra que antecede. Apresenta-a, podendo indicar o assunto, os objetivos e o contexto de produção da obra, a metodologia seguida e algumas estratégias de leitura assim como comentários que não integrariam de modo coerente o texto principal.
Assim, no prefácio é legítimo transgredir, por exemplo, as normas de objetividade caraterísticas da redação científica, pelo que vários destes textos se assumem como discursos de grande valor literário, didático e/ou polémico.
O autor pode, como se disse, ser o mesmo do texto principal, uma personagem desse texto (tratando-se de uma obra de ficção), o editor ou uma terceira pessoa que, pelo mérito, amizade ou notoriedade, é convidada a apresentar o livro. Sendo de autoria variável, o prefácio assume sobretudo uma função de apresentação/comentário da obra, mantendo-se, tradicionalmente, à parte da estrutura interna desse texto. E o destinatário do prefácio é também o leitor do texto principal, já que o prefácio postula uma leitura iminente da obra, pelo que inclui com frequência comentários preparatórios da leitura que ajudam a determinar, à partida, o seu leitor ideal.
Este é o horizonte de expectativa do prefácio: um discurso explicativo/justificativo de autoria variável que envolve o interlocutor e que se constitui quase sempre como peça de metatexto.
Cf Azevedo, Mário (2006). Teses, relatórios e trabalhos escolares – Sugestões para estruturação da escrita, 5.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora; Ceia, Carlos (2006). Normas para apresentação de trabalhos científicos, 6.ª ed., Queluz de Baixo: Editorial Presença; Génette, Gérard (1987). Seuils. Seuil.

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Fazendo uma leitura atenta do exposto, dificilmente se pode aceitar que o prefácio cavaquista reúna a média dos requisitos de um texto preambular, a menos que que o prefaciante pretenda dispensar o leitor do ónus e do prazer de ler, despachando o livro para arquivo com vista a futura consulta dos investigadores, daqui a 25 anos (?).
O texto preambular presidencial, além da considerável extensão, está distribuído por treze apartados, com os respetivos subtítulos: um, diplomacia presidencial (texto doutrinário e súmula das ações praticadas alegadamente em conformação com a doutrina); e doze (sobre o vaivém das idas do Presidente ao estrangeiro e as visitas que recebeu de estrangeiros), indiciados no primeiro apartado – Singapura, China, México, Alemanha, Moçambique, Espanha, Coreia do Sul, X Cimeira da CPLP, Indonésia, X Encontro do Grupo de Arraiolos, Emirados Árabes Unidos e XXIV Cimeira Ibero-Americana. Dificilmente se compreende que estas matérias não tenham sido tratadas no corpo do livro e, sendo-o, não faz sentido terem um tão largo desenvolvimento no prefácio.
Apenas me referirei expressamente aos segmentos que tiveram eco na oposição e em Timor.
No apartado atinente à diplomacia presidencial, diga-se que o Presidente recorre à autoridade de constitucionalistas de renome – Gomes Canotilho e Vital Moreira, no livro Os poderes do Presidente da República, especialmente em matéria de defesa e política externa, da Coimbra Editora, 1991 – recolhendo o essencial da doutrina constitucional dos poderes do Presidente. Faz até a justiça de mencionar que o livro foi escrito a pedido do Presidente da República ao tempo (1991), que era o Dr Mário Soares, talvez porque tinha dúvidas, o que era raramente caraterística de Cavaco Silva. Só que o Primeiro-Ministro de então era Cavaco Silva, que entendia que o Presidente não deveria participar nas cimeiras internacionais nem tinha papel visível na superior direção das forças armadas, mas apenas um papel decorativo. Converteu-se!
Quanto à súmula doutrinal que o Presidente esboça, nada me parece dever opor. Já quanto à conformação da leitura que o Presidente faz das suas ações com a doutrina e da adequação da leitura da doutrina e das ações à evolução da realidade nacional e internacional, surgem algumas dúvidas, dado que a função presidencial está praticamente esvaziada aos olhos da opinião pública. Mais: o Presidente, salvo quando tenta hipervalorizar a diplomacia presidencial sobre a diplomacia económica ou sobre o papel do Ministério do Ministério dos Negócios Estrangeiros (tanto assim que a representação máxima do país nos areópagos europeus cabe ao Primeiro-Ministro e não ao Presidente), tem plena razão ao perorar sobre a necessidade da assunção plena das funções presidenciais nos tempos que correm e com as caraterísticas enunciadas no texto.
Mas o segmento que se destaca do texto prefacial, que se transcreve:
“É por tudo isto que, nos tempos que correm, os interesses de Portugal no plano externo só podem ser eficazmente defendidos por um Presidente da República que tenha alguma experiência no domínio da política externa e uma formação, capacidade e disponibilidade para analisar e acompanhar os dossiês relevantes para o País”

Não deixa de ser entendido como uma inútil tentativa de influenciação da constituição do painel das candidaturas presidenciais, tentativa que, aliás, pode ter efeito contrário, mas que seguramente enerva quem se sente atingido e contradiz a postura que se espera do Presidente acima do debate eleitoral, que, seja como for, não despega do espectro político-partidário.
Depois, o Presidente tem a obrigação de saber que, conquanto a Presidência da República seja um órgão unipessoal, o mérito do desempenho presidencial não reside na competência pessoal do eventual inquilino de Belém, mas na sua capacidade de se rodear de um conjunto credível de assessores, permanentes e temporários, que lhe facilitem o exercício das suas funções, de os escutar e fazer o justo discernimento. Aqui, diga-se que em Aníbal algo falhou: não se rodeia de assessores credíveis ou não lhes dá ouvidos ou decide somente segundo a sua própria cabeça.
Demais, no painel dos candidatáveis, não se conhece nenhum que não tenha capacidade de ler o panorama internacional (mesmo Rui Rio) e de nele intervir, bem como de ler e fazer ler os dossiês para poder agir em articulação com o Governo. Era o que faltava, se tinha de estar sempre de acordo! Não se pode mandar para arquivo o poder modelador e a função de provedor do Presidente. Nem o Presidente pode impor mais condições que as exaradas na Constituição.
Nem sempre Cavaco cumpriu o desiderato de falar a uníssono com o Governo para estrangeiro ouvir. Lembre-se o caso da origem da crise, das escutas, dos mercados, no tempo de Sócrates; e da iminência da espiral recessiva ou da situação explosiva, antes da crise Gaspar-Portas, em meados de 2013. E, no início da coabitação com o PS também se colou ao governo, não?!
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Quanto à X Cimeira da CPLP, o Presidente faz o historial da controversa caminhada da Guiné Equatorial até à aceitação da sua integração na CPLP (desde a cimeira de 2006, em Bissau, em que o país foi aceite como observador associado, ao Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da CPLP, reunido em Maputo, em fevereiro de 2014). Portugal tinha-se oposto à aceitação daquele membro na CPLP, mas acabou por mudar de posição porque, sendo “a adesão fortemente apoiada pelos países africanos de língua oficial portuguesa, pertencentes ao mesmo espaço regional que a Guiné Equatorial, a que se juntava o Brasil e Timor-Leste, um veto de Portugal poderia, no limite, pôr em causa a própria sobrevivência da CPLP”. Mais: “Tendo existido um grande empenho das autoridades timorenses na adesão da Guiné Equatorial, um veto português significaria o fracasso da cimeira, com elevados danos reputacionais para Timor-Leste.
A isto o antigo Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, negou nesta segunda-feira, 9 de março, que o seu país tenha responsabilidade na adesão da Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Em publicação do Facebook, intitulada “Guiné Equatorial – Falsidades”, o Nobel da Paz considerou que esta informação “falsa” tem sido difundida na imprensa portuguesa desde a Cimeira da Comunidade lusófona, que decorreu em Díli em julho de 2014. Ramos-Horta esclarece que “o lobby forte pela admissão da Guiné Equatorial na CPLP foi desencadeado por Angola e Brasil e apoiado por todos os outros Países Africanos da CPLP, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe”. E, contrariando Cavaco, defendeu que, “perante a postura firme de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal anuiu. Timor-Leste simplesmente secundou esta posição”.
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Tive ocasião de, ao tempo, apreciar criticamente a posição portuguesa e a deficiente explicação do processo de adesão do novo membro da CPLP. Agora parece-me que o Presidente português deveria concertar com o Estado de Timor-Leste a explicação do processo para dissipação das dúvidas que persistiam. De resto, a posição de Portugal deveria ter sido explicada em julho de 2014, bem como os engulhos do cerimonial escolhido na cimeira. E não se tratam com esta ligeireza narrativa os difíceis jogos da diplomacia.
Finalmente, há que referir que, se os prefácios servem apenas para complementar o quase aforismo atribuído a Cavaco, Eu já avisei – de modo que fique, Eu já avisei… só não avisei isto e aquilo porque não me lembrei ou não era conveniente ao tempo – prestam um serviço paupérrimo. O país merece mais e melhor que um interveniente pícaro!

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