O Prefácio do Presidente da República ao livro de
intervenções Roteiros IX deu brado na
Comunicação Social em duas vertentes: a alegada veleidade de definir o perfil
do seu sucessor no Palácio de Belém; e a justificação tardia e alegadamente
inexata da posição de Portugal quanto à adesão da Guiné Equatorial à CPLP.
Já não é a primeira vez que
documento de natureza similar é acremente criticado pelos opositores de Cavaco
e mesmo de alguns dos seus sequazes. Quem não se lembra da acusação explícita
feita pelo Presidente, no prefácio ao livro
Roteiros VI, a José Sócrates sobre matéria de deslealdade democrática (“uma falta de lealdade institucional que fica registada na história da
nossa democracia”) a propósito da negociação do PEC IV sem conhecimento de Cavaco Silva?
Critica-se o Presidente por,
a ser verdade, não o ter denunciado no tempo próprio e ter-se guardado para um
período posterior (quase um ano depois) à queda do XVIII Governo
Constitucional e quando o ex-primeiro-ministro já estava no estrangeiro em
outras ocupações não políticas. Mas não sei se o Presidente ou quem o assessora
nestes assuntos tem a noção de prefácio e da sua função e utilidade em relação
a um livro que é conveniente ler. Pela extensão (excessiva,
a meu ver) e pelo
teor (dá-me a ideia de que se trata da transposição, em formato breve, do
conteúdo para as páginas preliminares dos livros), penso que a utilidade dos livros presidenciais
– os roteiros – será preencher o arquivo, tendo os prefácios uma função
substitutiva dos documentos a que se reportam, ou seja, quem os ler fica
dispensado de ler os livros.
***
Afinal, o que é um prefácio
e para que serve?
Como discurso produzido a
propósito do texto que antecede e introduz, o prefácio inclui-se na matéria
paratextual duma obra, ou seja, no conjunto de discursos da responsabilidade do
editor, do autor ou de terceiros, que acompanha materialmente o texto
prefaciado enquanto livro. Por outras palavras, é o texto introdutório duma
obra em que o prefaciante (sempre uma pessoa conhecedora da
obra e do autor)
refere e justifica de forma sucinta o objetivo da obra, a estrutura e o
conteúdo, bem como algo da personalidade e produção do autor.
É enorme a variedade de termos
para designar estes paratextos: entrada, introdução, exórdio, introito, prólogo, proémio, preâmbulo, prelúdio, apresentação, início, isagoge, prefácio,
prefação, prolegómenos, propedêutica, pródromo, encabeçamento, antelóquio,
iniciação, prolusão, prenúncio, princípio,
Afigura-se, por isso, importante
especificar as propriedades que dão consistência ao texto prefacial,
definindo-o enquanto género. Em Seuils, Gerard Genette (Genette, 1987) ocupa-se precisamente deste
estudo e daquilo a que chama a função prefacial.
A história do prefácio como
elemento paratextual remonta à Antiguidade. Numa fase a que Genette chamou
“pré-histórica” – de Homero a Rabelais – o prefácio é breves e simples. Se a
obra não se inicia ex-abrupto, a função prefacial é assumida pelas
primeiras linhas do texto. Deste modo, encontramos já textos de conteúdo prefacial
na proposição, na invocação e dedicatória da Epopeia; no exórdio da retórica; e
o prólogo na comédia paliata
greco-latina, na tragédia e mesmo nas primeiras páginas de algumas obras
historiográficas. No texto dramático clássico e medieval, apenas a “comédia”
contempla a existência de prefácio na forma de um monólogo inicial de
advertência / comentário ao público enunciado por uma personagem (o
prólogo da Aulularia, de Plauto,
inicia-se como o segmento: Ne quis
miretur qui sim, paucis eloquar).
Neste ponto, convém não confundir a função do prefácio com a do prólogo da
tragédia, em que o prólogo integra necessariamente a economia da peça. A era da
oralidade e do manuscrito é marcada pela economia de meios que dissimula a
prática prefacial. O prefácio alongado e isolado do texto por estratégias
editoriais liga-se à existência do texto impresso, pelo que, a partir do século
XVI, o prefácio adquire visibilidade, ganhando estatuto textual relativamente
autónomo e consolidando as suas caraterísticas. Nesta fase, os prefácios de
Rabelais têm simbolicamente um valor inaugural por serem dos primeiros a surgir
destacados.
Apesar de manter uma estrutura
que lhe dá consistência, o prefácio sofre, ao longo dos tempos, uma dinâmica de
atualização que acompanha a própria história literária. Torna-se possível
estudar a evolução das ideias a partir da leitura destes discursos que, muitas
vezes, revelam lugares-comuns epocais, enformando uma estrutura
teórico-literária (deste modo, por exemplo, pela leitura de
vários prefácios produzidos no barroco português, infere-se que as problemáticas
do decoro e da modéstia – falsa ou não – são duas constantes nesta época; em
1827, ficou célebre o prefácio de Vítor Hugo a Cromwell, que
enunciou o ideário programático do romantismo francês).
O prefácio figura como um
pré-texto entre as partes eventuais de um livro, justificando-se em obras já
destinadas à publicação, surgindo no início da obra, onde, não raras vezes,
passa despercebido à maioria dos leitores. Já, no que se refere ao núcleo
informacional, o prefácio não pretende resumir nem desenvolver os conteúdos
presentes na obra que antecede. Apresenta-a, podendo indicar o assunto, os objetivos
e o contexto de produção da obra, a metodologia seguida e algumas estratégias
de leitura assim como comentários que não integrariam de modo coerente o texto
principal.
Assim, no prefácio é legítimo
transgredir, por exemplo, as normas de objetividade caraterísticas da redação
científica, pelo que vários destes textos se assumem como discursos de grande
valor literário, didático e/ou polémico.
O autor pode, como se disse, ser
o mesmo do texto principal, uma personagem desse texto (tratando-se
de uma obra de ficção),
o editor ou uma terceira pessoa que, pelo mérito, amizade ou notoriedade, é
convidada a apresentar o livro. Sendo de autoria variável, o prefácio assume
sobretudo uma função de apresentação/comentário da obra, mantendo-se,
tradicionalmente, à parte da estrutura interna desse texto. E o destinatário do
prefácio é também o leitor do texto principal, já que o prefácio postula uma leitura
iminente da obra, pelo que inclui com frequência comentários preparatórios da
leitura que ajudam a determinar, à partida, o seu leitor ideal.
Este é o horizonte de expectativa
do prefácio: um discurso explicativo/justificativo de autoria variável que
envolve o interlocutor e que se constitui quase sempre como peça de metatexto.
Cf Azevedo,
Mário
(2006). Teses, relatórios e trabalhos
escolares – Sugestões para estruturação da escrita, 5.ª ed., Lisboa:
Universidade Católica Editora; Ceia, Carlos
(2006). Normas para apresentação de
trabalhos científicos, 6.ª ed., Queluz de Baixo: Editorial Presença;
Génette, Gérard (1987). Seuils.
Seuil.
***
Fazendo uma leitura atenta
do exposto, dificilmente se pode aceitar que o prefácio cavaquista reúna a
média dos requisitos de um texto preambular, a menos que que o prefaciante
pretenda dispensar o leitor do ónus e do prazer de ler, despachando o livro
para arquivo com vista a futura consulta dos investigadores, daqui a 25 anos
(?).
O texto preambular
presidencial, além da considerável extensão, está distribuído por treze
apartados, com os respetivos subtítulos: um, diplomacia presidencial (texto
doutrinário e súmula das ações praticadas alegadamente em conformação com a
doutrina); e doze
(sobre o vaivém das idas do Presidente ao estrangeiro e as visitas que
recebeu de estrangeiros), indiciados no primeiro apartado – Singapura,
China, México, Alemanha, Moçambique, Espanha, Coreia do Sul, X Cimeira da CPLP, Indonésia, X Encontro do Grupo de Arraiolos, Emirados Árabes Unidos e XXIV
Cimeira Ibero-Americana. Dificilmente se compreende que estas matérias não
tenham sido tratadas no corpo do livro e, sendo-o, não faz sentido terem um tão
largo desenvolvimento no prefácio.
Apenas me referirei expressamente
aos segmentos que tiveram eco na oposição e em Timor.
No apartado atinente à diplomacia
presidencial, diga-se que o Presidente recorre à autoridade de
constitucionalistas de renome – Gomes
Canotilho e Vital Moreira, no livro Os
poderes do Presidente da República, especialmente
em matéria de defesa e política externa, da Coimbra Editora, 1991 –
recolhendo o essencial da doutrina constitucional dos poderes do Presidente.
Faz até a justiça de mencionar que o livro foi escrito a pedido do Presidente
da República ao tempo (1991), que era o Dr Mário Soares, talvez porque tinha
dúvidas, o que era raramente caraterística de Cavaco Silva. Só que o
Primeiro-Ministro de então era Cavaco Silva, que entendia que o Presidente não
deveria participar nas cimeiras internacionais nem tinha papel visível na
superior direção das forças armadas, mas apenas um papel decorativo. Converteu-se!
Quanto à súmula doutrinal que o Presidente esboça,
nada me parece dever opor. Já quanto à conformação da leitura que o Presidente
faz das suas ações com a doutrina e da adequação da leitura da doutrina e das
ações à evolução da realidade nacional e internacional, surgem algumas dúvidas,
dado que a função presidencial está praticamente esvaziada aos olhos da opinião
pública. Mais: o Presidente, salvo quando tenta hipervalorizar a diplomacia
presidencial sobre a diplomacia económica ou sobre o papel do Ministério do
Ministério dos Negócios Estrangeiros (tanto assim que a representação
máxima do país nos areópagos europeus cabe ao Primeiro-Ministro e não ao
Presidente), tem plena razão ao perorar sobre
a necessidade da assunção plena das funções presidenciais nos tempos que correm
e com as caraterísticas enunciadas no texto.
Mas o segmento que se destaca do
texto prefacial, que se transcreve:
“É por tudo isto que, nos tempos que
correm, os interesses de Portugal no plano externo só podem ser eficazmente
defendidos por um Presidente da República que tenha alguma experiência no
domínio da política externa e uma formação, capacidade e disponibilidade para
analisar e acompanhar os dossiês relevantes para o País”
Não deixa de ser entendido como uma inútil tentativa de
influenciação da constituição do painel das candidaturas presidenciais,
tentativa que, aliás, pode ter efeito contrário, mas que seguramente enerva
quem se sente atingido e contradiz a postura que se espera do Presidente acima
do debate eleitoral, que, seja como for, não despega do espectro
político-partidário.
Depois, o Presidente tem a obrigação de saber que,
conquanto a Presidência da República seja um órgão unipessoal, o mérito do
desempenho presidencial não reside na competência pessoal do eventual inquilino
de Belém, mas na sua capacidade de se rodear de um conjunto credível de
assessores, permanentes e temporários, que lhe facilitem o exercício das suas
funções, de os escutar e fazer o justo discernimento. Aqui, diga-se que em
Aníbal algo falhou: não se rodeia de assessores credíveis ou não lhes dá
ouvidos ou decide somente segundo a sua própria cabeça.
Demais, no painel dos candidatáveis, não se conhece
nenhum que não tenha capacidade de ler o panorama internacional (mesmo Rui
Rio) e de nele intervir, bem como de
ler e fazer ler os dossiês para poder agir em articulação com o Governo. Era o
que faltava, se tinha de estar sempre de acordo! Não se pode mandar para
arquivo o poder modelador e a função de provedor do Presidente. Nem o
Presidente pode impor mais condições que as exaradas na Constituição.
Nem sempre Cavaco cumpriu o desiderato de falar a
uníssono com o Governo para estrangeiro ouvir. Lembre-se o caso da origem da
crise, das escutas, dos mercados, no tempo de Sócrates; e da iminência da
espiral recessiva ou da situação explosiva, antes da crise Gaspar-Portas, em
meados de 2013. E, no início da coabitação com o PS também se colou ao governo,
não?!
***
Quanto à X Cimeira da CPLP, o Presidente faz o historial da controversa
caminhada da Guiné Equatorial até à aceitação da sua integração na CPLP (desde a
cimeira de 2006, em Bissau, em que o país foi aceite como observador associado,
ao Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da CPLP, reunido em Maputo,
em fevereiro de 2014). Portugal
tinha-se oposto à aceitação daquele membro na CPLP, mas acabou por mudar de
posição porque, sendo “a adesão fortemente apoiada pelos países africanos de
língua oficial portuguesa, pertencentes ao mesmo espaço regional que a Guiné
Equatorial, a que se juntava o Brasil e Timor-Leste, um veto de Portugal
poderia, no limite, pôr em causa a própria sobrevivência da CPLP”. Mais: “Tendo
existido um grande empenho das autoridades timorenses na adesão da Guiné
Equatorial, um veto português significaria o fracasso da cimeira, com elevados
danos reputacionais para Timor-Leste.
A isto o antigo Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, negou nesta
segunda-feira, 9 de março, que o seu país tenha responsabilidade na adesão da
Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Em
publicação do Facebook, intitulada “Guiné Equatorial – Falsidades”,
o Nobel da Paz considerou que esta informação “falsa” tem sido difundida na
imprensa portuguesa desde a Cimeira da Comunidade lusófona, que decorreu em
Díli em julho de 2014. Ramos-Horta esclarece que “o lobby forte pela admissão
da Guiné Equatorial na CPLP foi desencadeado por Angola e Brasil e apoiado por
todos os outros Países Africanos da CPLP, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique
e São Tomé e Príncipe”. E, contrariando Cavaco, defendeu que, “perante a
postura firme de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal
anuiu. Timor-Leste simplesmente secundou esta posição”.
***
Tive ocasião de, ao tempo, apreciar criticamente a
posição portuguesa e a deficiente explicação do processo de adesão do novo
membro da CPLP. Agora parece-me que o Presidente português deveria concertar
com o Estado de Timor-Leste a explicação do processo para dissipação das
dúvidas que persistiam. De resto, a posição de Portugal deveria ter sido
explicada em julho de 2014, bem como os engulhos do cerimonial escolhido na cimeira. E não se tratam com esta ligeireza narrativa os
difíceis jogos da diplomacia.
Finalmente, há que referir que, se os prefácios servem
apenas para complementar o quase aforismo atribuído a Cavaco, Eu já avisei – de modo que fique, Eu já avisei… só não avisei isto e aquilo
porque não me lembrei ou não era conveniente ao tempo – prestam um serviço
paupérrimo. O país merece mais e melhor que um interveniente pícaro!
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