segunda-feira, 30 de março de 2015

Eloi, Eloi, lama sabacthani? – Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mc 15,34)

Hossana! – Crucifica-O. Ressuscitei!

A interrogação vertida na epígrafe constitui o lamento enigmático de Cristo no alto da cruz momentos antes de expirar. São palavras proferidas em aramaico que os circunstantes já não percebiam e que, segundo os evangelistas Mateus (Mt 27,46 tem a variante “Eli, Eli, lemá sabacthani?) e Marcos, foram entendidas como estando Jesus a chamar por Elias. Por outro lado, podem soar a lamento estranho, se se pensar na intimidade recorrentemente professada por Jesus entre Si e o Pai. Como é que Este o abandona?
Todo o judeu piedoso, quando enuncia o início de uma oração, nomeadamente uma oração sálmica, a aceita na sua totalidade. Aliás, é o que nós hoje também fazemos. Sobretudo no missal antigo, a cada passo, para evitar a repetição textos, se remetia para os primeiros segmentos discursivos de epístola, evangelho ou oração, para assumir a totalidade do texto.
Ora o enunciado em epígrafe corresponde à primeira parte do versículo 2 do salmo 22 (21), já que o versículo 1 é preenchido pelas indicações corais e de autoria: “Ao diretor do coro. Pela melodia “A corça da aurora”. Salmo de David”. Era frequente o coro entoar um salmo com a música de peças conhecidas popularmente, indicadas na portada do salmo, mas não descritas.
Esclareça-se, parenteticamente, o motivo por que os salmos de 9 a 147 têm dupla numeração: o número que vem em primeiro lugar corresponde à numeração da Bíblia Hebraica; o segundo, que vem entre parêntesis, resulta da divisão do salmo 9 em dois na versão dos Setenta, que passou para a Vulgata e para as antigas traduções portuguesas (utilizada em edições litúrgicas).
É certo que o salmo em causa é impressionante e mesmo desconcertante, entrecortado pelos sentimentos mais díspares: da sensação de abandono, súplica intensa perante o sofrimento e o sentimento de aniquilação, até à manifestação de esfuziante alegria, passando pela expressão de inabalável confiança a toda a prova e o propósito do louvor na assembleia dos irmãos. Tudo isto fica servido por imagens rudemente chocantes (manadas de touros, leão que devora e ruge, matilha de cães, água derramada, secura de garganta, cravação de mãos e pés…), gritos, petições instantes, explícitas manifestações de confiança, indicação de procedimentos sacrificiais, anúncio da justiça e conversão dos povos.
Embora desemboque na reunião da assembleia para o devido sacrifício de louvor a Deus – disponível para os pobres e para os confins da Terra, aliás a finalidade da morte redentora na cruz – o salmo é de oração individual, que se move a partir do estado de aflição do orante (vv 2.12), com a descrição das atitudes dos malfeitores (vv 12-19), e o modo como experimenta na sua vida a presença do Senhor (vv 3-11) e a relação que terá com os irmãos (vv 26-32). Exprime de tal modo a experiência do sofrimento que se tornou arquétipo da densidade religiosa. Segundo os evangelistas acima citados, Jesus utilizou aquelas primeiras palavras do texto do salmo como oração suplicante quando se encontrava no patíbulo da cruz. Além deste, outros versículos deste salmo são inseridos na narrativa da Paixão: “Depois de o terem crucificado, repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte” (Mt 27,35); “Confiou em Deus; Ele que o livre agora, se o ama, pois disse: ‘Eu sou Filho de Deus!’” (Mt 27,43). Por isso, a Cristologia assumiu este salmo, que ganhou, na tradição cristã, uma índole quase messiânica, graças à leitura que dele se fez em contexto eclesial pela valorização teológica do sofrimento pessoal, em contraponto ao pomposo messianismo real (régio), de que os apóstolos tiveram dificuldade em desprender-se.   
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Atentando na sua aplicação litúrgica, começo pelo “Domingo de Ramos na Paixão do Senhor” – do “Hossana” ao “crucifica-O”, para a inanidade do túmulo. Depois da solene evocação da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, aclamado pela multidão, que gritava hossanas, empunhava ramos e estendia capas para O vitoriar, a celebração eucarística, na consciência de que fora para realizar o mistério da norte e ressurreição que Ele entrou na Cidade, envereda pelo tom messiânico já não da apoteose, mas do sofrimento obnubilante da Realeza divinal. E à proclamação da Primeira Leitura, que aborda o mistério do Servo de Deus que Se oferece como vítima pelos Seus irmãos, entregue nas mãos do Pai até à morte e morte de cruz, como caminho de glorificação (cf Is 50,4-7), responde-se com fragmentos deste salmo 21 sob a batuta refrónica do grito, “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?. 
Note-se que os fragmentos recitados ou cantados nesta ocasião, embora evidenciem o lamento, pelo abandono e a agressão dos circunstantes, espelham a confiança e esperança em Deus (Mas Tu, Senhor, não te afastes de mim! És o meu auxílio: vem socorrer-me depressa! – v 20), o propósito de louvor na assembleia (Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da assembleia. – v 23), com o convite aos irmãos a que glorifiquem e reverenciem o Senhor (Vós, que temeis o SENHOR, louvai-o! Glorificai-o, descendentes de Jacob! Reverenciai-o, descendentes de Israel! – v 24). O hossana há de regressar como “aleluia” na madrugada da Ressurreição.
Na hora intermédia da semana III de sexta-feira, é recitado este salmo, sob a epígrafe rubrical “A aflição do justo e a sua libertação”, dividido em três frações, funcionado liturgicamente como se fossem três salmos, tendo cada uma das partes, no tempo comum, a sua antífona.
Na primeira parte, o salmista considera-se o homem abandonado, a quem o Senhor não responde nem sequer presta atenção (vv 2-3). Não obstante, ele sabe que Deus mora no santuário e sempre socorreu Israel em suas tribulações (vv 4-6). Por consequência, apesar de todos mofarem dele (vv 7-9), este homem de fé recorda ao Senhor que Lhe pertence “desde o seio materno” (vv 10-11), pelo que Lhe roga que o ajude, porque está a sofrer o insulto e a perseguição até à dilaceração mortal (v 12).
Na segunda parte, os inimigos do salmista são comparados a manadas de touros que investem e a leão que ruge (vv 13-14), é descrito o estado lastimável a que este homem foi reduzido (vv 15-16), é referido como o cerco que lhe preparou um bando de malfeitores (matilha de cães) lhe trespassou as mãos e os pés, repartiu as suas vestes e lançou a sua túnica às sortes (vv 17-19). Todavia, este infeliz não desiste da esperança e pede a Deus que o socorra e salve (vv 20-22) para que possa continuar a louvá-Lo e a anunciá-Lo aos irmãos (v 23).
Na terceira e última parte, o salmista incita Israel ao louvor de Deus, porque Ele afinal não desprezou o sofredor nem dele escondeu a Sua face, antes, pelo contrário, veio em seu auxílio (vv 24-25), e profeticamente compromete-se a cumprir a sua promessa de que fará com que os pobres se saciem e se alegrem (vv 26-27). Por sua vez, todos os confins da Terra se converterão e hão de adorar só a Deus (vv 28-30). E o próprio salmista e a sua descendência viverão para o Senhor e para revelar a sua justiça e a suas maravilhas “ao povo que há de vir” (vv 31-32).
É óbvio que este salmista é a figura veterotestamentária de Jesus Cristo, o Servo Sofredor, a Quem vimos desprezado, homem das dores e experimentado no sofrimento (Is 53,3), d’ Aquele que exclamou em alta voz “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34), com a certeza de que precisamente “diante d’ Ele virão prostrar-se todas as famílias das nações (v. 28), implorando a salvação e obtendo a redenção. A cruz do Justo fez assim surgir uma nova humanidade.
Ora, parafraseando Santo Agostinho, deve dizer-se que a Paixão de Cristo foi operada uma só vez. Todavia, ela é descrita por antecipação, neste salmo, de modo tão eloquente como nos evangelhos, apesar de o salmo ser redigido e cantando muitos anos antes de o Senhor ter nascido de Maria. Por outro lado, a Paixão do Senhor presentifica-se sacramentalmente e coloca-se à disposição dos filhos de Deus sempre que se celebra a Eucaristia, tanto na assembleia de uma pequena comunidade como na da multidão de mais de 6 milhões de pessoas, em janeiro passado nas Filipinas, com o Papa Francisco. E a Paixão de Cristo revive hoje em cada pessoa que sofre a enfermidade ou em cada grupo que seja explorado, perseguido espezinhado, escravizado, dilacerado, ou seja, sempre que a dignidade do homem ou da comunidade humana é vilipendiada, diminuída ou ignorada (cf Mt 25,45).
O entendimento cristão do salmo passa pela sua leitura à luz do Novo Testamento, de que é um dos exemplos a seguinte perícopa da 1.ª carta de Pedro (1Pe 2, 21-25), rezada quase na totalidade nas Vésperas II dos Domingos da Quaresma:

Cristo padeceu por vós,
Deixando-vos o exemplo,
Para que sigais os seus passos.

Ele não cometeu pecado,
Nem na sua boca se encontrou engano;
Ao ser insultado, não respondia com insultos;
Ao ser maltratado, não ameaçava,
Mas entregava-se àquele que julga com justiça;

Subindo ao madeiro,
Ele levou os nossos pecados no seu corpo,
Para que, mortos para o pecado,
Vivamos para a justiça:
Pelas suas chagas fostes curados.

Na verdade, éreis como ovelhas desgarradas,
Mas agora voltastes ao Pastor
E Guarda das vossas almas.

Homem algum sentiu tão marcadamente na carne o aguilhão do sofrimento como o filho de Deus, despojado de tudo, até da sua divindade – mistério insondável de humilhação e aviltamento d´Aquele que é da substância do Pai, Luz da luz, gerado pelo Pai antes de todos os séculos. Foi, no entanto, pela Cruz que Jesus, Filho Unigénito de Deus, Homem das dores, desprezado e experimentado no sofrimento, fez ressurgir o homem novo (cf Fidêncio Conte in os salmos da minha vida, Difusora Bíblica, 1991).


Cf ainda SNL, Missal Popular vol I Dominical, Gráfica de Coimbra, 1994; SNL, Saltério Litúrgico, ib, 1983; J. Machado Lopes, Os salmos – vida e oração, Difusora Bíblica, 1985; Nova Bíblia dos Capuchinhos, ib, 1998).

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