Hossana!
– Crucifica-O. Ressuscitei!
A
interrogação vertida na epígrafe constitui o lamento enigmático de Cristo no
alto da cruz momentos antes de expirar. São palavras proferidas em aramaico que
os circunstantes já não percebiam e que, segundo os evangelistas Mateus (Mt
27,46 tem a variante “Eli, Eli, lemá
sabacthani?) e
Marcos, foram entendidas como estando Jesus a chamar por Elias. Por outro lado,
podem soar a lamento estranho, se se pensar na intimidade recorrentemente
professada por Jesus entre Si e o Pai. Como é que Este o abandona?
Todo
o judeu piedoso, quando enuncia o início de uma oração, nomeadamente uma oração
sálmica, a aceita na sua totalidade. Aliás, é o que nós hoje também fazemos.
Sobretudo no missal antigo, a cada passo, para evitar a repetição textos, se
remetia para os primeiros segmentos discursivos de epístola, evangelho ou
oração, para assumir a totalidade do texto.
Ora
o enunciado em epígrafe corresponde à primeira parte do versículo 2 do salmo 22
(21), já que o versículo 1 é preenchido pelas indicações corais e de autoria: “Ao diretor do coro. Pela melodia “A corça da
aurora”. Salmo de David”. Era frequente o coro entoar um salmo com a música
de peças conhecidas popularmente, indicadas na portada do salmo, mas não
descritas.
Esclareça-se,
parenteticamente, o motivo por que os salmos de 9 a 147 têm dupla numeração: o
número que vem em primeiro lugar corresponde à numeração da Bíblia Hebraica; o
segundo, que vem entre parêntesis, resulta da divisão do salmo 9 em dois na
versão dos Setenta, que passou para a Vulgata e para as antigas traduções
portuguesas (utilizada em edições litúrgicas).
É
certo que o salmo em causa é impressionante e mesmo desconcertante,
entrecortado pelos sentimentos mais díspares: da sensação de abandono, súplica
intensa perante o sofrimento e o sentimento de aniquilação, até à manifestação
de esfuziante alegria, passando pela expressão de inabalável confiança a toda a
prova e o propósito do louvor na assembleia dos irmãos. Tudo isto fica servido por
imagens rudemente chocantes (manadas de touros, leão que devora
e ruge, matilha de cães, água derramada, secura de garganta, cravação de mãos e
pés…), gritos,
petições instantes, explícitas manifestações de confiança, indicação de
procedimentos sacrificiais, anúncio da justiça e conversão dos povos.
Embora
desemboque na reunião da assembleia para o devido sacrifício de louvor a Deus –
disponível para os pobres e para os confins da Terra, aliás a finalidade da
morte redentora na cruz – o salmo é de oração individual, que se move a partir do
estado de aflição do orante (vv 2.12), com a descrição das atitudes
dos malfeitores (vv 12-19), e o modo como experimenta na sua vida a presença
do Senhor (vv 3-11)
e a relação que terá com os irmãos (vv 26-32). Exprime de tal modo a
experiência do sofrimento que se tornou arquétipo da densidade religiosa.
Segundo os evangelistas acima citados, Jesus utilizou aquelas primeiras
palavras do texto do salmo como oração suplicante quando se encontrava no
patíbulo da cruz. Além deste, outros versículos deste salmo são inseridos na
narrativa da Paixão: “Depois de o
terem crucificado, repartiram
entre si as suas vestes, tirando-as à sorte” (Mt 27,35); “Confiou
em Deus; Ele que o livre agora, se o ama, pois disse: ‘Eu sou Filho de
Deus!’” (Mt 27,43). Por isso, a
Cristologia
assumiu este salmo, que ganhou, na tradição cristã, uma índole quase
messiânica, graças à leitura que dele se fez em contexto eclesial pela
valorização teológica do sofrimento pessoal, em contraponto ao pomposo messianismo
real (régio), de que os apóstolos tiveram
dificuldade em desprender-se.
***
Atentando
na sua aplicação litúrgica, começo pelo “Domingo de Ramos na Paixão do Senhor”
– do “Hossana” ao “crucifica-O”, para a inanidade do túmulo. Depois da solene
evocação da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, aclamado pela multidão, que
gritava hossanas, empunhava ramos e estendia capas para O vitoriar, a
celebração eucarística, na consciência de que fora para realizar o mistério da
norte e ressurreição que Ele entrou na Cidade, envereda pelo tom messiânico já
não da apoteose, mas do sofrimento obnubilante da Realeza divinal. E à
proclamação da Primeira Leitura, que aborda o mistério do Servo de Deus que Se
oferece como vítima pelos Seus irmãos, entregue nas mãos do Pai até à morte e
morte de cruz, como caminho de glorificação (cf Is 50,4-7), responde-se com fragmentos
deste salmo 21 sob a batuta refrónica do grito, “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”.
Note-se
que os fragmentos recitados ou cantados nesta ocasião, embora evidenciem o
lamento, pelo abandono e a agressão dos circunstantes, espelham a confiança e
esperança em Deus (Mas Tu, Senhor, não te afastes de mim! És o meu auxílio: vem socorrer-me
depressa! – v 20),
o propósito de louvor na assembleia (Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da
assembleia. – v 23), com o convite aos irmãos a que glorifiquem e
reverenciem o Senhor (Vós, que temeis o SENHOR, louvai-o!
Glorificai-o, descendentes de Jacob! Reverenciai-o, descendentes de Israel! – v
24). O hossana há de
regressar como “aleluia” na madrugada da Ressurreição.
Na
hora intermédia da semana III de sexta-feira, é recitado este salmo, sob a
epígrafe rubrical “A aflição do justo e a
sua libertação”, dividido em três frações, funcionado liturgicamente como
se fossem três salmos, tendo cada uma das partes, no tempo comum, a sua
antífona.
Na
primeira parte, o salmista considera-se o homem abandonado, a quem o Senhor não
responde nem sequer presta atenção (vv 2-3). Não obstante, ele sabe que
Deus mora no santuário e sempre socorreu Israel em suas tribulações (vv
4-6). Por consequência,
apesar de todos mofarem dele (vv 7-9), este homem de fé recorda ao
Senhor que Lhe pertence “desde o seio materno” (vv 10-11), pelo que Lhe roga que o ajude,
porque está a sofrer o insulto e a perseguição até à dilaceração mortal (v
12).
Na
segunda parte, os inimigos do salmista são comparados a manadas de touros que
investem e a leão que ruge (vv 13-14), é descrito o estado lastimável
a que este homem foi reduzido (vv 15-16), é referido como o cerco que
lhe preparou um bando de malfeitores (matilha de cães) lhe trespassou as mãos e os
pés, repartiu as suas vestes e lançou a sua túnica às sortes (vv
17-19). Todavia,
este infeliz não desiste da esperança e pede a Deus que o socorra e salve (vv
20-22) para que
possa continuar a louvá-Lo e a anunciá-Lo aos irmãos (v
23).
Na
terceira e última parte, o salmista incita Israel ao louvor de Deus, porque Ele
afinal não desprezou o sofredor nem dele escondeu a Sua face, antes, pelo contrário,
veio em seu auxílio (vv 24-25), e profeticamente compromete-se a cumprir a sua
promessa de que fará com que os pobres se saciem e se alegrem (vv
26-27). Por sua vez,
todos os confins da Terra se converterão e hão de adorar só a Deus (vv
28-30). E o próprio salmista
e a sua descendência viverão para o Senhor e para revelar a sua justiça e a suas
maravilhas “ao povo que há de vir” (vv 31-32).
É
óbvio que este salmista é a figura veterotestamentária de Jesus Cristo, o Servo
Sofredor, a Quem vimos desprezado, homem
das dores e experimentado no sofrimento (Is 53,3), d’ Aquele que exclamou em alta
voz “Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34), com a certeza de que
precisamente “diante d’ Ele virão prostrar-se todas as famílias das nações (v.
28), implorando a
salvação e obtendo a redenção. A cruz do Justo fez assim surgir uma nova
humanidade.
Ora,
parafraseando Santo Agostinho, deve dizer-se que a Paixão de Cristo foi operada
uma só vez. Todavia, ela é descrita por antecipação, neste salmo, de modo tão
eloquente como nos evangelhos, apesar de o salmo ser redigido e cantando muitos
anos antes de o Senhor ter nascido de Maria. Por outro lado, a Paixão do Senhor
presentifica-se sacramentalmente e coloca-se à disposição dos filhos de Deus sempre
que se celebra a Eucaristia, tanto na assembleia de uma pequena comunidade como
na da multidão de mais de 6 milhões de pessoas, em janeiro passado nas Filipinas,
com o Papa Francisco. E a Paixão de Cristo revive hoje em cada pessoa que sofre
a enfermidade ou em cada grupo que seja explorado, perseguido espezinhado, escravizado,
dilacerado, ou seja, sempre que a dignidade do homem ou da comunidade humana é
vilipendiada, diminuída ou ignorada (cf Mt 25,45).
O
entendimento cristão do salmo passa pela sua leitura à luz do Novo Testamento,
de que é um dos exemplos a seguinte perícopa da 1.ª carta de Pedro (1Pe
2, 21-25), rezada quase
na totalidade nas Vésperas II dos Domingos da Quaresma:
Cristo padeceu por vós,
Deixando-vos o exemplo,
Para que sigais os seus passos.
Ele não cometeu pecado,
Nem na sua boca se encontrou engano;
Ao ser insultado, não respondia com insultos;
Ao ser maltratado, não ameaçava,
Mas entregava-se àquele que julga com justiça;
Subindo ao madeiro,
Ele levou os nossos pecados no seu corpo,
Para que, mortos para o pecado,
Vivamos para a justiça:
Pelas suas chagas fostes curados.
Na verdade, éreis como ovelhas desgarradas,
Mas agora voltastes ao Pastor
E Guarda das vossas almas.
Homem algum sentiu tão
marcadamente na carne o aguilhão do sofrimento como o filho de Deus, despojado de
tudo, até da sua divindade – mistério insondável de humilhação e aviltamento d´Aquele
que é da substância do Pai, Luz da luz, gerado pelo Pai antes de todos os
séculos. Foi, no entanto, pela Cruz que Jesus, Filho Unigénito de Deus, Homem
das dores, desprezado e experimentado no sofrimento, fez ressurgir o homem novo
(cf Fidêncio Conte in os salmos da
minha vida, Difusora Bíblica, 1991).
Cf ainda SNL, Missal Popular vol I Dominical, Gráfica
de Coimbra, 1994; SNL, Saltério Litúrgico,
ib, 1983; J. Machado Lopes, Os salmos –
vida e oração, Difusora Bíblica, 1985; Nova
Bíblia dos Capuchinhos, ib, 1998).
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