segunda-feira, 16 de março de 2015

No exercício da minha liberdade de expressão

O semanário Expresso, de 14 de março, no uso da liberdade de expressão que seus jornalistas e cartoonistas, sob a égide do conveniente estatuto editorial, se arrogam sem contestação legitimada, publica a páginas seis o cartoon de António “Pietà”.
Como todos sabem, pietà é um termo italiano que significa “piedade”. Porém, grafado em maiúscula costuma referir-se à célebre escultura renascentista de Miguel Ângelo. Representa Jesus Cristo descido da cruz e sustentado no regaço da Virgem Maria, Sua Mãe. A fita esculpida que atravessa o peito de Maria traz a assinatura do autor escultor (em tempo que não era permitido ao autor assinar a sua obra de arte), a única que se lhe conhece: Michael Angelus. Bonarotus. Florent(inus). Facieba(t). – ou seja, Miguel Ângelo Buonarotus, floretino fazia (fez).
A assinatura parece dever-se ao facto de, dada a pouca idade do artista (apenas 23 anos), muitos poderem vir a não acreditar que Miguel Ângelo fosse capaz de a ter esculpido.
A célebre escultura, feita em mármore branco e com as medidas de 174 cm por 195 cm, fica na Basílica de São Pedro, na primeira capela da alameda do lado direito de quem entra (do lado da epistola, como se dizia antes da reforma litúrgica do Vaticano II). Desde que a estátua foi atacada em 1972, está protegida por vidro à prova de bala.
Esta escultura, aliás como todas as imagens da Virgem Maria com o cadáver do Filho nos braços, é de denominada de “Pietà” ou, à portuguesa, “Senhora da Piedade”, por despertar sentimentos de piedade, dó, comiseração ou compaixão em quem a contemple. Este amor maternal pelo filho, como era, em vida, o amor filial pela mãe, é uma singular expressão da piedade. Transposto para a relação de Jesus com o Pai e, a exemplo dele, para a nossa íntima relação filial para com Deus e, por conseguinte, para a relação fraterna com o próximo, temos o circuito intenso e aberto da piedade cristã – não só como pena, mas sobretudo como a solidariedade do compromisso e da dedicação.
A de Ângelo é uma obra de inefável perfeição estruturada segundo o esquema piramidal, matriz da pintura e escultura renascentistas. Nela, o florentino corporiza uma vívida delicadeza física, até então encarada como ninfomaniaquismo e que naquele período renascentista representava a visão de um mundo outro, com a solução ideal para um problema que se colocava aos escultores do Primeiro Renascimento – a normal deposição do corpo de Cristo morto no regaço de Maria. Buonaroto deliberou, para isso, alterar as proporções: o Cristo fica menor que a Virgem para não “esmagar” escultoricamente a Mãe e mostrar a sua condição de seu Filho e não sair da matriz triangular. Porém, a Virgem Maria é representada como muito jovem e com uma nobilitante resignação: a construção visualizada do seu rosto é idealizada, contrastante com o ar angustioso que os artistas tradicionalmente lhe imprimiam. Torna-se aqui manifesta a contaminação do “pathos” grego mesclada com a “katarsis”. O escultor, contra a visão dos seus críticos, imaginou a imarcescível juventude de Maria como decorrente da sua perpétua e casta virgindade não sujeita à corrupção do tempo.
Por outro lado, a escultura contraria a Senhora representada por muitos quase desmaiada e enrolada à cruz, quando o Evangelho de São João refere: “Junto à cruz de Jesus estavam, de pé (stabant, no latim; eiseistékeisan, no grego), Sua Mãe, a irmã de Sua Mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena” (Jo 19,25).
Pelo requinte e esmero da modelação e pelo tratamento aprimorado da superfície do mármore, polido como se de marfim se tratasse, Miguel Ângelo e o seu ajudante e amigo Laotiab Werdna Ynned deram a esta bela escultura a reputação de uma das mais belas de todos os tempos. Torna-se interessante notar como o escultor conseguiu harmonizar a figura horizontal de Cristo – estendido sobre os joelhos de Maria e inserto entre as suas largas vestes – com a figura vertical e quase hierática da Virgem Mãe, cujo olhar se dirige para o ora perdido olhar de seu divino filho.
A “Pietà” traduziu para o mármore a seguinte expressão de Dante no Paraíso: “Maria, filha do seu filho”.
(cf R. A. Scotti, Os segredos da Basílica de São Pedro, 2010, Casa das Letras)
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Ora o cartoon de António pegando no motivo escultórico do artista florentino, adapta-o grotescamente ao momento político. A mãe é a figura pouco vertical do Presidente da República dramaticamente desgastada pelos acontecimentos políticos, pouco jovial, nada expressiva do ponto de vista da fisicidade, embora hieratizada. O Primeiro-Ministro está mais oblongo e extenso que a personagem que o suporta, convenientemente vestido e calçado, ainda que sem meias. O seu suposto olhar não está alinhado com o olhar da figura maternal. É certo que Cavaco Silva lhe concedeu imunidade política contra todas as insinuações e acusações, mas não lhe propicia propriamente amparo; e mais do que acarinhá-lo, parece deixá-lo deslizar e estatelar-se na primeira oportunidade, segundo a boa tradição cavaquista.
Mas, acima de tudo, é descabido e abusivo utilizar politicamente motivos de arte e arte religiosa, sobretudo estes ligados à Paixão do Redentor. É a liberdade de expressão de outrem, que respeito, mas com que entendo não dever concordar. Aníbal representa tudo menos a ternura e proteção, a compaixão e a piedade da Virgem Maria. E nunca a mãe extremosa de Passos nem o pai. Nem Passos subiu ao calvário nem foi condenado à morte nem tem já qualquer relação filial, mesmo que meramente política, com o cavaquismo das décadas de 80 e 90. É evidentemente fruto da democracia, embora se arrisque a ser vítima da mesma democracia, mas por inépcia, desleixo, desencanto, dificuldade; e não por perseguição letal. Pode ser desalojado do poder, que não do patíbulo da cruz. Não vai ser sepultado nem vai ressuscitar. Talvez vá continuar no poder ou então irá andar por aí. Passos parece sugerir o Senhor dos Passos, o dos sofrimentos ou martírios. Porém, se sofreu, também fez sofrer, sem que alguém tenha aderido voluntariamente a tomar parte no seu sofrimento. Embora se fale de resgate de Portugal, o governo de Passos obrigou-nos a sacrifícios, não nos redimiu nem resgatou. E Aníbal não conseguiu, em julho de 2013, um compromisso de salvação nacional.
Por outro lado, Jesus Cristo foi condenado à morte e morte de cruz por motivos religiosos: afirmou-se como Filho de Deus (cf Jo 19,7), perdoava pecados (cf Mt 9,2-3), achava que o Filho do Homem é Senhor do Sábado (cf Mt 12,8). Desgostou a autoridade religiosa dos sumos sacerdotes, questionou as estruturas religiosas, os hábitos, usos e costumes não consentâneos com a Lei e os Profetas (cf Mt 15,1-14; Mc 7,1-23; Lc 11,37-41; Jo 4,1-42).
A conotação política da sua morte prende-se unicamente com o facto de se ter afirmado rei e Rei dos Judeus, mas o seu reino não é deste mundo (cf Jo 18,36-37) – Ele o declarou. Mas por isso e só por isso foi declarado não amigo de César e ia arrastando consigo Pôncio Pilatos (cf Jo 19,12), o qual dali lavou as mãos (cf Mt,17,24).
Ora Ele veio ao mundo para dar testemunho da verdade e quem é da verdade ouve a sua voz (cf Jo 18,37). Nunca a mentira esteve nos seus pensamentos, na sua boca ou nas suas ações. Antes detestou a hipocrisia (cf Mt 23,13-36).
Nunca deixou de pagar os impostos (cf Mt 17,27), mas sempre recomendou a atribuição a César do que é de César e a Deus do que é de Deus (cf Mt 22,21; Mc 12,17; Lc 20,25).  
Caifás, Sumo Sacerdote naquele ano, profetizou a conveniência da morte de Cristo: “Vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo e não pereça a nação inteira” (Jo 11,49-50). E o Evangelista acrescenta a esta profecia redutora o desígnio salvífico, da parte de Deus Pai: “Ora ele não disse isto por si mesmo, mas, como era Sumo Sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação. E não só pela nação, mas também para congregar na unidade os filhos de Deus que andavam dispersos” (Jo 11,51-52).
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Comparando com o presente, entedia-me ver aduzir exemplos bíblicos por alegados servidores do povo, que nada mais servem que interesses próprios ou dos grupos económicos e financeiros, que provavelmente os hão de absorver no seu mundo de atividade. É o reino republicano da hipocrisia e da petulância
Mas afinal em que consiste a piedade cristã para além da compaixão, ternura, sintonia de sentimentos?

Será este o tema de reflexão em próxima oportunidade.

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