Até
ao concílio Vaticano II, no dia 2 de fevereiro, celebrava-se a festa da
Purificação da Bem-aventurada Virgem Maria (Duplex
II Classis) e,
no dia 25 de março, a festa da Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria (Duplex I Classis). Com a reforma litúrgica,
estabelecida na Constituição Conciliar Sacrosanctum
Concilium (sobre a Sagrada Liturgia), o ano litúrgico foi
reperspetivado, bem como o seu calendário, e as festividades acima enunciadas,
que se mantêm nos mesmos dias, são classificadas, segundo a nova nomenclatura,
na categoria de “festa”, a primeira, com a designação de “Apresentação do Senhor”, e, na categoria de “solenidade”, a segunda
com a designação de Anunciação do Senhor.
É
óbvio que não se tinha esquecido nem sequer subvalorizado o mistério de Cristo,
quer no ordenamento do calendário do ano litúrgico quer nos textos bíblicos e
litúrgicos selecionados. No entanto, tanto a designação daquelas festividades
como a maneira como, a partir das mesmas, se apresentavam a doutrina e a sua
influência na piedade e arte populares punha o acento no papel de Maria,
parecendo ficar Jesus Cristo como que o fruto e a consequência do papel de Sua
Mãe. Bem vejo que não era essa a intenção nem era esse o agrado complacente de
Maria, embora ela tenha dado e continue a dar evidente testemunho da relevância
do seu múnus de testemunha da vontade divina ante a humanidade e do seu papel
de testemunha dos dramas lancinantes vividos pelos filhos de Deus, bem como dos
esforços destes de caminhada ao encontro de Cristo. Veja-se o episódio das
bodas de Caná em que refere a potencial situação embaraçosa dos organizadores
do banquete com o alerta premonitório, “Não
têm vinho” (Jo 2,3) e a sugestão, “Fazei
o que Ele vos disser” (Jo 2,5). E os servos cumpriram (cf
Jo 2,9).
Também
importa considerar que a quase totalidade das fórmulas de oração mariana
orientam para Cristo, quando não para a Santíssima Trindade, e desembocam na
imersão no mistério de Cristo. A título de exemplo, deve dizer-se que ninguém
reza, na Ave-Maria, “Bendita sois vós entre
as mulheres” que não diga logo “E
bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus” ou, na Salve-Rainha “Salve, Rainha” sem que pronuncie a
petição “Nos Mostrai Jesus, bendito fruto
do vosso ventre”. Na Beira Alta, as pessoas antigas rezavam a Nossa
Senhora, “Rogai a Jesus por nós”; e,
no santuário da Lapa, a invocação completa era: “Nossa Senhora da Lapa, rogai por nós a Jesus”. Por outro lado,
sobretudo depois da obra de S. Luís de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria,
divulgou-se o sábio aforismo mariano-cristológico, “Per Mariam ad Iesum” ou “Ad
Iesum per Mariam” (Por Maria a Jesus). E chama-se à Virgem “Alma Redemptoris Mater” e a cada passo
se lhe reza: “Rogai por nós, santa Mãe de Deus,
/ Para que sejamos dignos das promessas de Cristo”.
Também na enunciação sintética dos mistérios gozosos do Rosário,
se dizia: A anunciação do Anjo Gabriel à
Virgem Maria (ou a Nossa Senhora), para a 1.ª dezena de ave-marias, e A Apresentação do Menino Jesus no Templo e a Purificação de Nossa
Senhora, para a 4.ª dezena.
Com o Catecismo da Igreja Católica e seu
“Compêndio”, os mistérios gozosos são enunciados, sinteticamente e por ordem,
como segue: A anunciação do Anjo
à Virgem Maria; A visita de Maria a Santa Isabel; O
nascimento de Jesus em Belém; A apresentação de Jesus no Templo; e A perda e encontro de Jesus no Templo.
E, na versão latina (a da edição típica), o enunciado é
ainda mais lacónico: Annuntiátio; Visitátio; Natívitas; Præsentátio; et Invéntio in Templo.
Quem olhar de soslaio, poderá pensar que terá havido qualquer
perda. Pelo contrário, os dois primeiros mistérios, acentuando a figura de
Maria, sem fazerem perder de vista quer o anjo da anunciação quer a
destinatária da visitação quer todo o móbil das ações, o Cristo, ordenam-se
para os seguintes, em que a figura do Messias ganha centralidade. É óbvio que a
figura de Maria não fica obnubilada, já que não há nascimento sem a mãe, é a
mãe que o apresenta e é ela que o encontra. E o papel de José emerge na leitura
bíblica e na meditação, porque acompanha os passos de Maria e os diversos momentos
da infância de Jesus. Porém, fica o orante, singular ou comunitário, dispensado
de se distrair com o pensamento da razão de ser da necessidade de purificação
da parte d’ Aquela que não tinha necessidade de purificação, uma vez que fora e
é a “cheia de graça” (Lc 1,28.30), liberta de toda a
mácula, original e pessoal. Era unicamente para cumprir a Lei de Moisés (Lc 2,22; Lv 12,1-8).
***
Fez-se
alusão, acima, à reforma litúrgica estabelecida pela Sacrosanctum Concilium (SC). Esta notável Constituição Conciliar, à
semelhança das outras Constituições, centra o discurso em Jesus Cristo. E,
mesmo quando o Concílio glosa outras temáticas como Igreja, Homem, Mundo, Maria
Santíssima, Sacerdócio, Vida Religiosa, Ecumenismo, Laicado, Missões, Educação,
Comunicação…, não se faz esperar a referência explícita e centrante a Jesus
Cristo.
Assim,
a Constituição Dogmática Sobre a Igreja, Lumen
Gentium (LG),
inicia-se com a afirmação “A luz dos povos é Cristo”
(LG 1), sem nunca efetivamente o perder de vista. A Constituição
Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes (GS), apresenta-nos
Jesus Cristo como “resposta
e solução da problemática humana” (GS 10), garantindo
que, “na
realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece
verdadeiramente” (GS 22). Ora, “a Igreja
sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história, porque a
comunidade eclesial “é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados
pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam
a mensagem da salvação para a comunicar a todos (GS 1). Por consequência, “As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1). É a paráfrase cristã do enunciado de Públio
Terêncio Afro, Homo sum et nihil humani
alieni a me puto.
Por seu turno, a Constituição sobre a Divina Revelação, Dei Verbum (DV), intitula o seu n.º 4 com a epígrafe “Consumação e plenitude da revelação em Cristo”, para o qual se
orienta a revelação veterotestamentária e de quem decorre toda a pregação
apostólica e os escritos neotestamentários: “Jesus Cristo, Verbo feito
carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala, portanto, as palavras de
Deus (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cf Jo. 5,36; 17,4)… “Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança,
jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra revelação pública antes da
gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (DV 4; cf 1 Tim. 6,14; Tit. 2,13).
Sendo assim, é
natural que a Sacrosanctum Concilium
aponte para a centração da liturgia em Cristo, já que é conveniente respeitar o
aforismo teológico lex orandi lex
credendi, que esta Constituição Conciliar assume de certo modo ao sublinhar
o valor didático da Liturgia:
“Embora a sagrada Liturgia seja principalmente culto da majestade
divina, é também abundante fonte de instrução para o povo fiel. Efetivamente,
na Liturgia Deus fala ao Seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho.
Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração”. Depois, “as orações dirigidas a Deus pelo sacerdote que preside, em
representação de Cristo, à assembleia, são-no em nome de todo o Povo santo e de
todos os presentes. Os próprios sinais visíveis que a Liturgia utiliza para
simbolizar as realidades invisíveis foram escolhidos por Cristo ou pela Igreja”.
Assim, “não é só quando se faz a leitura ‘do que foi escrito para nossa
instrução’ (Rm 15,4), mas também quando a Igreja reza, canta ou age, que a fé
dos presentes é alimentada e os espíritos se elevam a Deus, para se lhe
submeterem de modo racional e receberem com mais abundância a sua graça” (SC 33).
E, no quadro dos princípios gerais em ordem à reforma litúrgica,
enunciados no seu capítulo I, afirma-se este enunciado: Jesus
Cristo Salvador do mundo pelo sacrifício e pelos sacramentos, sempre presente
na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas – que se desenvolve repartido
por três números (cf SC 5,6,7).
Quanto
aos aspetos que respeitam ao ano litúrgico e ao calendário, a Constituição Conciliar
recomenda a revisão do ano litúrgico de modo que, embora com adaptação às
atuais circunstâncias, “mantenha o seu caráter
original para, com a celebração dos mistérios da Redenção cristã, sobretudo do
mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis” (SC 107). Por outro lado, recomenda a orientação do espírito dos fiéis
prioritariamente para as festas do Senhor, que celebram durante o ano os
mistérios da salvação, bem como a preferência do Próprio do Tempo sobre as festas do Próprio dos Santos, para que o ciclo destes mistérios possa ser
celebrado no modo devido e na sua totalidade (SC
108).
Nestes termos, ficam no âmbito do Próprio do Tempo Comum (já que as
outras quadras temporais são predominantemente dedicadas ao Senhor) as seguintes solenidades
do Senhor, precedidas pela solenidade da Santíssima Trindade: Santíssimo Corpo
e Sangue de Cristo (Corpus Christi), que dispensa que
se mantenha “obrigatoriamente” uma festa específica para o Sangue de Cristo (era a 1 de julho); Sagrado Coração de Jesus; e Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do
Universo. No âmbito do Próprio dos Santos,
celebram-se: a Apresentação do Senhor (festa, a 2
de fevereiro); as Cinco Chagas do Senhor (festa, a 7
de fevereiro); a Anunciação do Senhor (solenidade,
25 de março); a Transfiguração do Senhor (festa, a 6
de agosto);
e Exaltação da Santa Cruz (festa, a 14 de setembro). Quanto a Nossa
Senhora, no Próprio do Tempo, temos a
Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, oito dias depois do Natal, ficando
eliminada, com razão, a festa da Maternidade de Maria, a 11 de outubro. É
precedida pela festa da Sagrada Família (domingo
subsequente ao Natal, a menos que o dia 1 de janeiro seja domingo, caso em que
a festa da Sagrada Família passa para 30 de dezembro). Depois, vem a
memória do Imaculado Coração de Maria, no sábado seguinte à solenidade do
Sagrado Coração de Jesus. No âmbito do Próprio
dos Santos, temos: Nossa Senhora de Lurdes (memória,
a 11 de fevereiro); Nossa Senhora do Rosário de Fátima (festa, a 13 de maio); Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (festa, a 31 de maio); Nossa Senhora do Carmo (memória, a
16 de julho); Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior (memória, a 5 de agosto); Assunção da Virgem Santa Maria (solenidade,
a 15 de agosto); Virgem Santa Maria, Rainha (memória, a
22 de agosto), Natividade da Virgem Santa Maria (festa, a 8 de setembro); Nossa Senhora das Dores (memória, a
15 de setembro); Nossa Senhora do Rosário (memória, a
7 de outubro); Apresentação de Nossa Senhora (memória,
a 21 de novembro); e Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria (solenidade, a 8 de dezembro).
Deu-se a permuta entre as festividades de 31 de maio e de 22 de
agosto, ficando mais lógica a sequência “Assunção” e “Realeza” de Maria, em
consonância com os mistérios gloriosos do Rosário – A ressurreição de Jesus (Resurréctio); A ascensão de Jesus ao céu (Ascénsio); A descida do Espírito
Santo (Descénsus Spíritus Sancti); A assunção
da Santíssima Virgem ao céu (Assúmptio); e A
coroação de Nossa Senhora, como Rainha do céu e da terra (Coronátio in caelo). E, analisando o enunciado dos mistérios do rosário distribuídos
por quatro conjuntos de cinco dezenas, verifica-se que o centro é ocupado por
Cristo (3.º a 5.º dos mistérios gozosos; mistérios da luz e mistérios dolorosos;
e 1.º e 2.º mistérios gloriosos) precedido pelos 1.º e 2.º mistérios gozosos e seguido pelos 3.º
a 5.º mistérios gloriosos.
***
Quanto aos conteúdos dos textos da reorientação litúrgica, são também
referidos alguns aspetos, como se discrimina, atentando nos textos da Missa,
com que sintonizam os respetivos Ofícios.
Para a festa de 2 de fevereiro, a Missa salienta Cristo como luz
das nações, aquele que oferece ao Pai o sacrifício purificador, espiritual
agradável a Deus, profetizado por Malaquias (cf
Mal 3,1-4),
e perfeito e expiante dos pecados do povo, como refere a carta aos Hebreus (cf Hebr 2,14-18). Acentua, por outro lado a natureza humana de Cristo que Se fez
presente no Templo, Se oferece ao Pai e a quem se aplica o salmo 23 (24), que
exalta o Rei da Glória. O Evangelho relata o episódio da apresentação de Jesus
no Templo (Lc 2,22-40 ou 2, 22-32) por Maria e José. Do
menino, Simeão profetizou ser o Salvador, a luz das nações, mas também sinal de
contradição, bem como vaticinou a espada de dor que trespassará o coração de
Maria, que tudo guardava no coração. Há um prefácio próprio (em lugar do antigo de Nossa Senhora), que sintetiza as linhas fundamentais
do episódio da apresentação, a ligação da profecia simeónica ao Espírito Santo e
a caraterística de Cristo como caminho (que nós
temos de encontrar e seguir) para o Pai a Quem é devido o louvor das criaturas, nomeadamente
dos Anjos e Santos.
E, para a solenidade de 25 de março, os textos da Missa salientam
o Messias que vem voluntariamente fazer a vontade do Pai, correspondendo prontamente
ao seu chamamento; e a inefabilidade do mistério da encarnação, para o qual a
Virgem se disponibilizou e garantiu a índole humana de Deus em Jesus Cristo e a
sua presença no meio dos Seus, como profetizava Isaías (cf Is 7,10-14; 8,10) e se cumpriu conforme atesta o Evangelho de Lucas (Lc 1,26-28). De notar que o Senhor, que elegeu Maria, está com ela e Ela é a
“serva do Senhor” para dar à luz o “Filho do Altíssimo” ou o “Filho de Deus” e
ao qual porá o nome de Jesus. Ele entra no mundo feito homem, sendo no dia da anunciação
do Verbo que se inicia a marcha da Igreja (vd oração sobre as oblatas), Corpo de Cristo. O
prefácio é próprio (em lugar do antigo de N.
Senhora)
e elenca as ações do Senhor para salvar os homens: o Anjo O anunciou à Virgem;
Ela, pelo poder do Espírito Santo, O acolheu com fé e O trouxe em suas entranhas
com amor; e Ele nasceu entre os homens. Depois, interpreta as ações. Ele vinha
realizar as promessas feitas a Israel e satisfazer misteriosamente a esperança
das nações.
É o festejo do Nome de Jesus em todas as solenidades, festas e memórias,
que, ao invés da anterior festa no domingo entre oitava do Natal e a Epifania,
tem relevo nos dias da Anunciação e de Santa Maria Mãe de Deus (vd Evangelho destes dois dias: Lc 1,31 e Lc 2,21, respetivamente).
É a proclamação do Cristo verdadeiro Deus e Homem e o apelo ao
louvor da Trindade!
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