quarta-feira, 4 de março de 2015

Sob a égide de Nossa Senhora da África

A leitura do discurso do Papa Francisco, a 2 de março, aos membros da Conferência Episcopal da Região do Norte de África (CERNA), em visita “ad limina apostolorum” reporta-me a tempos mais remotos da vida de estudante, dado que o Pontífice confia os seus membros à proteção da Virgem Maria sob o título de Nossa Senhora da África.
É certo que também os entrega à intercessão de Santo Agostinho, natural de Tagaste da Numídia, que foi Bispo de Hipona, do bem-aventurado Charles de Foucauld e de todos os santos de África. E salienta o papel de São Cipriano, bispo de Cartago, em prol da unidade da Igreja, no século III. Mas a invocação de Nossa Senhora da África faz-me lembrar os tempos da recitação dos terços missionários, da celebração do Dia Mundial das Missões e dos Dias Missionários, em ambiente seminarístico, e as vistas dos padres que trabalhavam nas Terras de Missão na África Negra. A cada passo se invocava Nossa Senhora da África cuja imagem nos aparecia de cor negra nas estampas e nos cartazes missionários.  
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Lembro-me de que alguns diziam meio a brincar que Nossa Senhora era negra. E, para o efeito, citavam o versículo do Cântico dos Cânticos, aplicando acomodaticiamente, como muitos outros textos bíblicos, a Nossa Senhora, o cantar da esposa: Nigra sum, sed formosa (Cant 1,5). E acrescentavam que São José era branco, porque, pelo mesmo processo de interpretação acomodatícia, aplicavam ao esposo da Virgem o que a esposa do livro dos cantares aplicava ao esposo, Candidus et rubicundus (Cant 5,10). Porém, estragavam tudo, quando diziam que Cristo era mulato, já que citavam abusiva e mentirosamente o versículo do cântico do “Aleluia”, antes do Evangelho da Missa do Dia de Páscoa, Pascha nostrum immolatus est Christus, que significa, na profundidade do mistério, Cristo foi imolado como nossa Páscoa! Mas poderiam argumentar com a iconografia não só da Senhora da África, mas também da Senhora Aparecida no Brasil, que também apresenta a cor negra. É a expressão da universalidade da salvação em Cristo. Recordo que o quadro de Grão Vasco (século XVI) da “Adoração dos Magos” insere a figura de um índio como um dos reis magos. E a razão é exatamente a da universalidade ou catolicidade da salvação, ou, se quisermos, a globalização da economia salvífica.
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Ainda, quanto a Nossa Senhora da África, refira-se que, em Argel, se encontra um célebre santuário mariano dedicado a Nossa Senhora da África.
Duas mulheres – Margarita Bergezio e Anna Cuiquien, francesas, de origem italiana – foram as idealizadoras deste templo. Acompanharam o bispo Dom Pavy, em 1846, para se dedicarem às obras sociais que o mesmo prelado fundara na Argélia. Ali chegadas, as missionárias não encontraram nenhum santuário mariano. Por isso, colocaram uma pequena imagem da Virgem sobre uma oliveira nas proximidades de Argel. Pouco a pouco, o lugar se transformou num centro de afluência e peregrinação por parte de numerosos devotos da Virgem. As piedosas mulheres recolheram dinheiro e construíram uma capela provisória em 1857.
O atual santuário foi concluído em 1872 sobre um promontório que domina o mar e a cidade de Argel. São numerosos os peregrinos que o visitam. Há milhares de ex-votos espalhados nas paredes. Não apenas católicos, mas também muçulmanos, sobretudo mulheres, vêm de todas as partes para rezar ante a imagem da Santíssima Virgem, chamada em árabe de “Lalla Mariam”.
Ora Argel, com uma população de mais de um milhão de habitantes, no norte da África, é a capital da Argélia, o segundo maior país da África. Enquanto no século IV havia neste país entre 600 e 700 bispos católicos (Santo Agostinho, um dos grandes santos da Igreja, era argelino), hoje, como em muitos outros países africanos, pontifica a religião islâmica, que ali cresceu desde o século VII, sendo o Islamismo, como religião do Estado, praticado por 98% da população. Nas quatro dioceses argelinas não há mais que cerca de 60.000 católicos.
Duas antigas cidades da Argélia são um testemunho plurissecular de Agostinho de Tagaste ou de Hipona. Tagaste (com nome de origem púnica, que significa Casa do Tesouro ou Casa do Arco) era uma antiga cidade da Numídia, no norte de África. Sobre as suas ruínas foi edificada a atual cidade de Souk Ahras, na Argélia, a 100 quilómetros a sudeste de Annaba, antiga Hipona. Em Tagaste nasceram Santo Aurélio Agostinho e Santa Mónica, a mãe. Hipona (em latim, Hippo Regius) é nome e território a que veio a corresponder a cidade de Annaba, na Argélia. Provavelmente de fundação fenícia, passou para o domínio de Roma, inserida na província da Numídia e importante pela sua condição de guarnição militar costeira.
Também uma cidade da atual Tunísia marcou tanto a igreja dos primeiros séculos como tinha marcado o Imperio Romano. É a cidade de Cartago.
Cartago (em árabe, Qartaj; em berbere: Kartajen; em grego clássico: Καρχηδών, Karkhēdōn; em latim: Carthago ou Karthago; do fenício: Qart - ḥadašt, "Nova Cidade") foi uma antiga cidade-estado, originariamente uma colónia fenícia no norte da África, situada a leste do lago de Túnis, perto do centro de Túnis, na Tunísia. Foi uma potência na Antiguidade, tendo disputado com Roma o domínio do Mediterrâneo. Dessa disputa originaram-se as três Guerras Púnicas, após as quais Cartago foi destruída. Nos lavores do cristianismo, foi seu bispo o mártir São Táscio Cecílio Cipriano.
E, entre os novos santos de África, destaca-se um que ainda não chegou ao patamar da canonização, mas que é modelo de vida ascética e mística, alimentada pela oração e pelo culto eucarístico, abrindo caminhos de santidade para muitos e muitas. É o beato Charles de Foucauld.
Charles de Foucauld (15 de setembro de 1858 – 1 de dezembro de 1916) era um militar francês, que, depois de uma juventude dissoluta, se converteu ao catolicismo. Entrou na ordem dos trapistas, ordenou-se de sacerdote e fez-se eremita no Sahara. Numerosas famílias religiosas se reclamam da sua espiritualidade. Foi brutalmente assassinado em 1916. Apesar de considerado logo como um santo, foi beatificado somente em 13 de novembro de 2005 por Bento XVI.
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O Papa tem, pois, a consciência clara de que está a falar para testemunhas de Cristo em ambiente de dificuldade de expressão da fé cristã e porta-vozes de pessoas e grupos minoritários que sofrem todo o tipo de tribulações e a insegurança permanente – um duro caminho, que postula e fortalece a esperança. E o recado de Francisco é sentido e oportuno:
Levai-lhes o afeto do Papa e a certeza de que está próximo deles e que os encoraja no generoso testemunho que dão do Evangelho da paz e do amor de Jesus. A minha saudação cordial estende-se a todos os habitantes dos vossos países, sobre tudo às pessoas que sofrem.
Reconhece que a região conheceu efetivamente significativas mudanças que permitem vislumbrar a realização das aspirações a maior liberdade e dignidade e à criação de ambiente propício à liberdade de consciência. No entanto, é fácil tais mudanças descambarem em violência. No meio dessa instabilidade, é de salientar a coragem, fidelidade e perseverança de quantos permanecem na Líbia, apesar dos múltiplos perigos, para oferecer o testemunho do Evangelho e o ensejo da reconciliação.
De uma conferência episcopal que junta regularmente os pastores de Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, o Papa espera que, além de espaço de permuta e concertação, sejam um instrumento de comunhão e de estreitamento de relações fraternas. E aproveita o ensejo para, neste Ano da Vida Consagrada, para, além da vida em fraternidade e da atenção a todos, especialmente aos que mais sofrem, da parte das religiosas e religiosos, enaltecer a importância da contemplação na sua vida e fazer resplandecer a beleza e a santidade da sua vocação.
Registando com gáudio o restauro de vários santuários na Argélia, augura que eles se constituam como centro de acolhimento e induzam as comunidades a manifestarem desejo de serem “uma Igreja de portas abertas, sempre em saída” (cf EG 46-47). Depois, os novos discípulos devem, levados pelo amor de Deus, revelado em Jesus, compartilhar com os compatriotas o desígnio da construção duma sociedade sempre mais fraterna e aberta, de filhos do mesmo Pai.
Por outro lado, as Igrejas do Norte de África, integrando fiéis de várias nações para formarem comunidades vivas, espelham visivelmente a universalidade da Igreja e testemunham a maravilha da obra de Deus, que se desenvolve no meio de todos os povos e culturas.
Francisco salienta ainda a importância do diálogo inter-religioso na vida daquelas Igrejas – domínio em que, no meio das dificuldades (até de sobrevivência), só “a imaginação da caridade sabe abrir caminhos para inalar o sopro evangélico nas mais diversas culturas e meios sociais”. Ao invés, o mútuo desconhecimento é a fonte de muitas incompreensões e afrontamentos. E, citando Bento XVI, afirma que, “se desejamos servir a reconciliação, a justiça e a paz”, deveremos banir quaisquer formas de discriminação, intolerância e confessionalismo. Mais: o antídoto contra a violência é a educação para a descoberta e aceitação da diferença como riqueza e fecundidade. Nesse sentido, releva o cinquentenário da criação do Instituto Pontifício de Estudos Árabes e Islâmicos, na Tunísia, e lança a ponte do diálogo ao Instituo Ecuménico Al Mowafaqa, em Marrocos, em ordem à promoção do diálogo ecuménico e inter-religioso, com vista a um conhecimento recíproco melhor.
Segundo o Papa, as Igrejas do Norte de África, como “Igreja do encontro e do diálogo”, querem estar “ao serviço de todos sem distinção”. Com meios tantas vezes exíguos, manifestam a caridade de Cristo e da Igreja junto dos pobres, doentes, idosos, mulheres em necessidade ou prisioneiros; e prestam auxílio aos imigrantes originários da África que procuram, nestes países, um lugar de passagem e acolhimento. No reconhecimento da dignidade destas pessoas e no esforço de despertar as consciências face a tantos dramas humanos, manifesta-se o amor que Deus traz a cada um.
São estas Igrejas das periferias com o serviço particular de manifestar a presença de Cristo e da sua Igreja. O testemunho de vida dos cristãos, guiados pelos seus Pastores, na simplicidade e na pobreza evangélica é um sinal eminente para toda a Igreja.

Ficam espiritualmente sob o patrocínio de Nossa Senhora da África e dos eminentes santos africanos e com o apoio de um instituto pontifício e de um instituto ecuménico. Prosit!

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