segunda-feira, 23 de março de 2015

A mística da água

Passa hoje, dia 22 de março, o Dia Mundial da Água, destinado à discussão sobre os diversos temas relacionados com este importante bem natural.
Este dia mundial foi criado pela ONU (Organização das Nações Unidas) no dia 22 de março de 1992. Porém, alguns perguntam-se sobre o motivo por que a ONU se interessou por esta matéria se, como sabemos, dois terços do Planeta são ocupados por este precioso líquido.
Mas os factos são factos. E apenas uma pequena quantidade da água do nosso planeta é potável (cerca de 0,008% do total). Depois, muitos dos lençóis freáticos estão rarefeitos e grande parte das reservas desta água à superfície (rios, lagos, represas…) vem sofrendo a contaminação, a poluição e a degradação por via da ação predatória do homem. Depois, vêm as secas severas, que afetam diversos lugares do Globo. Vários núcleos populacionais andam quilómetros para acharem um pouco de água potável. Há uns meses a esta parte, a mui populosa cidade de São Paulo, no Brasil, que está dotada de convenientes estruturas de abastecimento, vê-se a braços com a grave falta de água para consumo: bebida, cozinha e necessidades básicas de higiene.
A situação por que passa o mundo é preocupante, pois, num futuro próximo, poderá vir a faltar água para o consumo de grande parte da população mundial. Foi com base nesta preocupação, resultante da verificação dos factos, que foi instituído o Dia Mundial da Água, cujo objetivo principal é criar um espaço de reflexão, análise, conscientização e elaboração de propostas de medidas a tomar com vista à resolução do problema.
No dia 22 de março de 1992, acima referido, a ONU divulgou também um importante documento: a Declaração Universal dos Direitos da Água, que apresenta uma série de informações, sugestões e medidas, que servem para despertar a consciência ecológica da população e dos governantes para a problemática da água. 
O tema tornou-se tão candente que a UNESCO elegeu o ano de 2013 como o Ano Internacional de Cooperação pela Água, como forma de incentivar o uso racional dos recursos hídricos do planeta ao longo de cada dia de cada ano, tomando atitudes que no dia a dia contribuam para a preservação e economia deste bem não é inesgotável. A título de exemplo, indicam-se: não lançamento de lixos nos rios, represas e lagos; poupança de água nas atividades quotidianas (banhos, escovação de dentes, lavagem de louças…); reutilização da água em diversas situações; respeito pelas regiões onde há manancial aquífero; e divulgação de ideias de saber ecológico por amigos, parentes, colegas e outras pessoas.
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Ao Dia Mundial da Água fez referência hoje, após a recitação do Angelus, o Papa Francisco nas palavras que dirigiu aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro. Acentuou a essencialidade deste elemento natural para a vida e frisou a premissa de que “da nossa capacidade de o guardar e compartilhá-lo depende o futuro da humanidade”.
Produziu assim um enunciado de tese (a essencialidade vital da água) e um enunciado ético (a nossa responsabilidade solidária de a proteger para o futuro da humanidade). Ademais, o Pontífice deixou um encorajamento à Comunidade internacional para que tenha uma atitude de vigilância em ordem a que “as águas do Planeta sejam adequadamente protegidas e ninguém seja excluído ou discriminado no uso deste bem, que é um bem comum por excelência”.       
Depois, o Santo Padre Francisco, tomando o exemplo do irmão universal São Francisco de Assis, no Cântico do irmão Sol, assume a irmã água como pretexto e via para o Louvor a Deus, pelas caraterísticas de serviço, humildade e castidade que adornam este elemento de vida: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é muito útil, humilde e casta”.
Ao ler um outro apontamento que o Papa dirigiu aos peregrinos e pensando na castidade ou pureza e ação purificadora da água, lembrei-me da função teológico-litúrgica da água.
Com efeito, Francisco situando-se no dinamismo da Quaresma, decidiu repetir um gesto que fez no ano passado (a 6 de abril), explicando:
“Segundo a antiga tradição da Igreja, durante a Quaresma, entrega-se o Evangelho aos que se preparam para o Batismo; do mesmo modo, hoje ofereço-vos a vós que estais na Praça um Evangelho de bolso. Vai ser-vos distribuído gratuitamente por algumas pessoas sem-abrigo que vivem em Roma. Tomai-o e levai-o convosco, para o lerdes muitas vezes, todos os dias. A Palavra de Deus é luz para o nosso caminho”.
Por outro lado, é enaltecida, na transcrição de Francisco de Assis, a utilidade, a humildade e a castidade da água. A água é essencial para a vida. Com ela germinam as sementes, crescem e vicejam as plantas, se saciam os animais, se revigora o ser humano. Com ela se confecionam os alimentos, se refrescam os corpos. Mas ela é útil para a purificação do corpo e para a limpeza e asseio dos objetos e dos espaços.
Ao mesmo tempo, ela é casta em dois sentidos:
- Se não contaminada, é pura e cristalina, inodora e insípida. Porém, quando delicadamente doseada de sais minerais, o seu gosto torna-se agradável. E também é certo que, uma vez caída do céu, na forma de chuva ou de neve, não regressa à sua origem (não se evapora) sem ter cumprido a sua missão, isto é, sem ter fecundado e irrigado a terra. Neste, sentido se lhe assemelha a Palavra de Deus, que não voltará para o Senhor vazia, sem ter cumprido a sua missão, sem ter realizado a vontade de Deus (cf Is 55,10-11).
- Se necessário, para a evolução do Planeta ou para mostrar a revolta da Natureza contra os maus tratos que lhe dão os homens ou quando estes se descuidam na tomada de precauções, ela pode cast(ig)ar afogando, levando tudo à sua frente. A Bíblia recorda o seu poder ambivalente: submergiu a geração perversa e salvou os que se introduziram na Arca de Noé (Gn, cap 6-9).
Pela Palavra de Deus – e o Papa, como recurso à Esmolaria Apostólica, fez distribuir um repositório da Palavra pelos peregrinos (Evangelhos e Atos dos Apóstolos) – sabemos do valor espiritual vivificante da água.
Com João Batista era ministrado na água um batismo de penitência e purificação, ao qual se sujeitou o Messias e no qual se realizou a teofania trinitária: os céus abriram-se, o Espírito Santo pousou sob a forma de pomba sobre a cabeça de Jesus e ouviu-se a voz do Pai, Este é o meu filho muito amado em quem pus o meu enlevo (cf Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22; Jo 1,29-34).
O batismo de Cristo é efetivamente no Espírito. Porém, de acordo com a vontade de Cristo, os apóstolos perceberam que, pelas suas caraterísticas naturais, a água se tomou útil para significar a ação purificadora do Espírito e fecundante de vida divina. O Espírito pairou sobre as águas do Jordão como pairava sobre as águas no princípio (cf Gn 1,2). E o batismo em nome de Cristo, que perdoa os pecados e assinala a entrada na comunidade dos discípulos é feito com a água que simboliza do Espírito vivificante. Veja-se por exemplo o cap. 10 do Livro dos Atos dos apóstolos: “Pedro então declarou: Poderá alguém recusar a água do batismo aos que receberam o Espírito santo como nós? E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo” (At 10,46-48). A água é sinal do Espírito Santo que os circunstantes tinham recebido segundo o que reza o v. 44.
Tal como a água faz germinar o grão de trigo que se lançou à terra (se não se lançasse seria inútil, nunca se multiplicaria para dar fruto), também a água do Espírito faz germinar em vida pujante aquele que aceita sepultar-se com Cristo para depois ressuscitar e fazer discípulos, frutificando em apostolado do Reino (cf Jo 12,24).  
A água, por outro lado, serve de material a partir do qual Jesus opera, a instâncias de Sua Mãe, o primeiro sinal em Caná da Galileia, a transformação da água, de seis talhas de pedra cheias, em vinho de grande qualidade, que foi servido aos convivas (cf Jo 2,1-11), mostrando assim o apreço que tinha pelas bodas nupciais. A água da humanidade foi transformada em vinho da divindade, que alegra o coração do homem.
Do lado aberto de Jesus adormecido na cruz jorrou sangue e água por ação da lança do soldado (cf Jo 19,34-35). João vê neste fenómeno fisiologicamente natural o selo da confirmação da morte de Cristo em conformidade com as Escrituras e por consequência a glorificação do Mestre feita pelo Pai no Espírito.
No poço de Jacob, Jesus desafiou a samaritana a que lhe desse de beber. Perante a relutância da mulher, o interlocutor interpelou-a, “Se tu soubesses o dom de Deus…”. E, a partir da água do poço, falou da água que Ele dará e que serve para a vida eterna. E a mulher logo se entusiasmou e lançou o repto: “Senhor, dá-me dessa água para eu não ter sede nem ter de vir aqui tirá-la!”. Não percebera que se tratava da água viva do Espírito Santo, que faz adorar o Pai em espírito e verdade. Mas Jesus revelou-Se-lhe como o Messias e ela levou outros a acreditar (cf Jo 4,1-26).    
A água viva que Jesus apresenta no cap 7 de João é o Espírito Santo. Jesus, no último dia, o mais solene da festa, bradou: “Quem tem sede venha a Mim e beba. E quem crê em Mim que sacie a sua sede. Como diz a Escritura, hão de correr rios de água viva” (cf Jo 7,37-38). E João explica que Ele disse isto, referindo-se ao Espírito Santo que iam receber os que n’ Ele cressem (cf Jo 7,39). Um rio de água viva, resplendente como cristal e a sair do trono de Deus e do Cordeiro, é mostrado ao vidente apocalíptico (cf Ap 22,1).
A água de que bebiam do rochedo no deserto os hebreus era a prefiguração da água viva em Cristo, a bebida espiritual; agora os crentes bebem de um só Espírito (cf 1 Cor 10,3-4; 12,13).
Finalmente, a água viva do Espírito é fonte e marca de liberdade: “Ora o Senhor é o Espírito e onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade. E todos nós que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito” (2 Cor 3,17-18).
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Só é pena que nem sempre a Igreja se configure como pátria da liberdade dos filhos de Deus, bem como as sociedades que se dizem herdeiras e depositárias da herança do Espírito que liberta. E é indigno que os chamados filhos da liberdade, movidos pela mesquinhez dos interesses, tantas vezes enveredem por caminhos de libertinagem, vandalização dos recursos disponíveis, espezinhamento do próximo, opressão dos humildes.
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Pela sintonia ecológica entre a preocupação da ONU e a inquietação das Igrejas, aqui se deixa, em formato de decálogo, para que todos nos sintamos motivados, sensibilizados, atentos e solidariamente corresponsáveis
A Declaração Universal dos Direitos da Água (da ONU)
Art.º 1.º – A água faz parte do património do Planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão é plenamente responsável aos olhos de todos. 
Art.º 2.º – A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no art.º 3.º da Declaração dos Direitos do Homem. 
Art.º 3.º – Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimónia. 
Art.º 4.º – O equilíbrio e o futuro do nosso planeta dependem da preservação da água e dos seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e a funcionar normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende, em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam. 
Art.º 5.º – A água não é somente uma herança dos nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores. A sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como uma obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras. 
Art.º 6.º – A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor económico: precisa de se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo. 
Art.º 7.º – A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, a sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis. 
Art.º 8.º – A utilização da água implica o respeito pela lei. A sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo o homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.  
Art.º 9.º - A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos da sua proteção e as necessidades de ordem económica, sanitária e social. 

Art.º 10.º – O planeamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra. 

1 comentário:

  1. Parabéns.Poucas pessoas tem a água como presente de Deus.Infelizmente hoje vista com mercadoria.Existe poucas reflexões sobre a importância MISTICA da água.Divulgações sobre a importância da água do ponto de vista do SAGRADO,podem ser úteis para despertar a consciência e minimizar a poluição

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