O enunciado em epígrafe é o tema em torno do qual gravita a reflexão
quaresmal da CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz), vertida para o púbico português
sob o formato de Mensagem.
Várias têm sido as mensagens quaresmais de diversas entidades, em que
sobressai a mensagem papal pela figura eclesial que é o Papa Francisco e pela
excelência do discurso e do conteúdo.
No entanto, a reflexão da CNJP merece particular atenção por diversos
motivos, entre os quais destaco: o alinhamento com o discurso papal; o
conhecimento da realidade portuguesa em que em parte se estriba a formulação da
mensagem; e o propósito de “metanoia”. Com efeito, os portugueses, em muitos
aspetos, deixaram-se invadir pela cultura da indiferença, recebendo assim
alguns dos malefícios da globalização, sem que tenham haurido o sumo dos seus
benefícios. Por outro lado, os portugueses são, em geral, confessos admiradores
de Francisco, que não talvez os seus melhores seguidores. Depois, há que
reconhecer que, entre os nossos compatriotas, muitos brilham na solidariedade,
na luta pelas grandes causas, no denodo filantrópico, no ativismo social e
cristão. Todavia, não se instaurou uma cultura do cuidado, estribada numa ética
que origine projetos consistentes rumo a uma eficácia que não deixe ninguém
fora dos benefícios da civilização e sem embarque nas condições
consubstanciadoras de vida em conformidade com as exigências da dignidade da
pessoa humana.
A reflexão inicia-se com um ponto sobre a interpelação que o Papa lança
aos católicos acerca da indiferença globalizada. Depois, em mais oito pontos, o
estado de coisas vem coadjuvado de pertinentes questões de reflexão, vindo a
conclusão final a coroar a reflexão com o sentido da consequente ação e a
formulação de uma nova bem-aventurança. Os católicos não podem, assim,
ficar indiferentes à situação encontrada, mas, iluminados pela tentativa de
resposta às questões que se lhes colocam, têm de construir uma plataforma que
dê suporte a um conjunto de procedimentos coerentes com o Evangelho feito vida
e alegria.
A
CNJP, partindo do conceito de católico
apresentado por Francisco na sua Mensagem Para a Quaresma sob o lema
“Fortalecei os vossos corações”, recorda que um católico será “aquele ou aquela
que professa o catolicismo, isto é, que procura ter uma perspetiva universal,
orientando-se para todos os seus irmãos”.
***
Evidencia
os enormes desequilíbrios sociais que infestam o mundo, com as fortunas de
muito poucos a aumentar face a inúmeras e enormes maiorias “que não têm o
essencial para viver” e as sociedades a produzir uma infinda espiral de
exclusões, induzida pela supremacia dos mercados cuja crise atravessa todos os
grupos sociais e abala ferozmente a classe média. Daqui se originam as ondas de
desemprego, pobreza, vulnerabilização familiar, exclusões, situações
explosivas… Em Portugal, com notória indiferença de muitos, assiste-se “ao
avolumar destes desequilíbrios”. Quase dois milhões vivem na situação ou na
iminência de pobreza.
Pressionados
pelo norte da Europa, precisamos de “coesão social”, em vez das atitudes
individualistas ou de desistência de achar soluções. Há necessidade de profundas
mudanças nas instituições nacionais e internacionais de governo no sentido de
se orientarem para a proteção dos mais frágeis e vulneráveis ou mesmo
excluídos, das minorias e dos grupos marginalizados, tomando as pessoas e as suas
circunstâncias como centro das preocupações e empenhamentos.
É, pois, de perguntar:
– Porque é que o “deus do
mercado” nos impede de adorar o Deus único, de Jesus, dos pobres, dos lázaros
de hoje?
E
impõe-se:
–
Em tempo de despojamento e conversão interior, meditar sobre o pecado da
indiferença e nas ações que cada um pode escolher fazer ou não, de modo que
nos tornemos homens e mulheres presentes no mundo e não presentes ao mundo de forma distanciada
e autoprotetora.
***
A
tentação da indiferença atinge os indivíduos. Ao sermos inundados diariamente
por notícias e imagens que testemunham o sofrimento humano dos outros (incluindo
numerosos grupos cristãos perseguidos)
bem como o terror em que vivem tantos países e populações, sentimos toda a
nossa incapacidade de intervir, que nos leva à postura de desistência e
tentativa de esquecer.
É, pois, de perguntar:
– Ao experimentamos a sensação de
um avolumar da “espiral de violência” na
sociedade, como podemos abraçar solidariamente o mundo com as nossas ações
individuais e coletivas, unidos “à Igreja do Céu em oração” e inspirados pelo
Cristo do Evangelho e pelo apóstolo Paulo das viagens apostólicas, como exorta
o Papa Francisco?
***
Ante a
insegurança e ameaças, as injustiças permanentes e o atropelo dos direitos das
minorias, incluindo as imigrantes, segundo o Papa, o sofrimento do próximo
apela à conversão, porque a necessidade do irmão “recorda-me a fragilidade da minha
vida, a minha dependência de Deus e dos irmãos”. Cada vez menos ousamos
denunciar, nas ruas, as gritantes injustiças instaladas subtilmente nas nossas
sociedades e países, a menos que sejam afetados os nossos interesses imediatos.
Numa Europa envelhecida e virada para si mesma, consentimos no levantamento de
muralhas entre “nós” e “os outros”.
Há que perguntar então:
– Vamos à raiz e causas indutoras
do terrorismo? Queremos acolher, em “hospitalidade” e encontro, os imigrantes,
em vez de querer integrá-los, quase à força? Como podemos tornar-nos mais acolhedores
e hospitaleiros? Só com os turistas, que trazem divisas? Não teremos no nosso
país as nossas Lampedusas? E
que solidariedade com a do Mediterrâneo?
***
Francisco
pretende que tornemos as nossas comunidades “ilhas de misericórdia no meio do
mar da indiferença”, atravessando o limiar que as põe em relação com a sociedade
circundante, não se fechando em si mesmas. Queremos, pois, que a Igreja seja
uma Igreja “do limiar” e que as nossas famílias sejam “comunidades do limiar”.
Há então que perguntar (são questões cuja
resposta é do foro quer individual quer coletivo, ao nível da mudança das
estruturas injustas em que vivemos e que queremos transformar):
– Que é uma família alargada?
Como acolhemos, na Igreja, famílias e comunidades, os que vivem nas periferias (económicas, sociais, culturais,
geográficas, étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras)
reconhecendo-lhes estatuto e capacidade de autoafirmação? Visitamos os presos e
doentes sem família e vamos à procura dos sem-abrigo? Apoiamos e acolhemos em
nossas casas as famílias no limiar da pobreza? Como ajudamos os desempregados e
apoiamos as crianças e jovens que se debatem com o insucesso escolar? Que
solidariedade com as vítimas da violência doméstica, abusos sexuais e pedofilia?
Como escutamos as solidões?
– Cuidamos dos idosos ou
libertamo-nos deles depondo-os em verdadeiros “depósitos”, antecâmaras de
tristeza, solidão e morte? Tornamo-nos indiferentes aos que nos deram a vida, a
educação, os valores e cultura/s?
***
Quando
estamos bem e comodamente instalados, o coração cai na indiferença: esquecemos os
outros, não nos interessando os seus problemas nem as tribulações e injustiças
que sofrem: desemprego (com especial incidência nas mulheres e
nos jovens), que
atinge dramaticamente a sociedade portuguesa; pobreza infantil, que não cessa
de aumentar. O trabalho já não integra a identidade do ser-se homem ou mulher,
tornando-se apenas importante “ter um emprego” que garanta a “minha”
sobrevivência e a dos “meus”, sem o qual caímos no “estigma” que leva à
exclusão e à autoexclusão. Se a capacidade de resiliência é infinita, não o é
paciência.
É, pois, de questionar:
– Ante os irmãos desempregados,
preferimos a multiplicação dos pães e dos peixes (para obviar à fome do corpo e da
alma) à disposição de encontrar modos de vida mais
frugais e simples, para que “outros” (incluindo
os habitantes dos antípodas, os chamados países do hemisfério sul)
tenham um pouco mais? Como cristãos, pactuamos com o subemprego, a exploração
pelo trabalho, a “globalização” do trabalho escravo e o assédio sexual, o “stalking” no trabalho, a discriminação
no emprego das mulheres mães ou que desejam ter filhos? Que ética de justiça
queremos? Justiça diferente para uns e para outros (quem paga e quem não pode pagar)?
Como podemos ser agentes indignados pela falta de Justiça, à luz do ensinamento
de Jesus, quando expulsa os vendilhões do templo?
***
Sendo
o direito à saúde um direito indelével do ser humano (Deus
criou-nos “seres encarnados”),
cumpre almejar uma ética da/na saúde que não discrimine ninguém. A indiferença
à dor e sofrimento do outro não configura uma negação da parábola do Bom
Samaritano. Teremos, pois, de ser “autores” e “sujeitos” da própria saúde de um
modo solidário, isto é, pensando nos outros, em quem que não tem sequer médico
ou hospital e condições mínimas de saúde e sobrevivência, não nos conformando com
uma saúde segregada e segregadora.
Também
o lazer é um direito humano. Mas este não pode ser apenas luxo de uns quantos. Devemos
usar solidariamente os tempos de lazer, saboreando a vida, apesar das suas
restrições, na beleza, arte, cultura, desporto…, na convicção de que “tudo é
dom de Deus”.
Há, pois, que perguntar:
– Queremos uma saúde para quem
pode pagar e outra para quem não pode pagar? Somos indiferentes à solidão, abandono,
maus-tratos, negligência, quando se trata de “alguns outros”? Qual o papel, nas nossas vidas quotidianas, do
voluntariado, da gratuidade, do dom e daquilo que nos é dado?
***
Porque o
mundo tende a fechar-se em si mesmo, diz o Papa – “o povo de Deus tem
necessidade de renovação para não cair na indiferença nem se fechar em si
mesmo”. Por conseguinte, a educação das novas gerações para uma consciência mundial
e planetária constitui um desafio
para os educadores e professores. É pertinente ensinar-lhes a descentrarem-se,
a recusarem perspetivas etnocêntricas; e a tornarem-se corresponsáveis por um
“mundo aberto”, autónomo e interdependente. É urgente educar a todos numa
escola inclusiva, que não segregue, facilitando, simultaneamente, o acesso de cada
um à excelência de que for capaz.
Impõem-se as perguntas:
– Como conciliar a prerrogativa
da “liberdade de escolha” com a possibilidade de ter “liberdade de escolha”?
Como fazer contracorrente à exclusão escolar?
***
Concluindo, se a Deus não é indiferente o
mundo, que Ele ama, também o não pode ser aos cristãos. Devemos, pois, beber em
Cristo, Fonte de Água Viva o fundamento humano da universalidade do nosso
catolicismo.
Contra
a globalização da indiferença a CNJP propõe como necessária uma Ética do Cuidado, enquanto movimento do coração para fora que, simultaneamente, fortalece por
dentro o coração de cada um: “uma ética do
cuidado com tudo e com todos”.
Pegando
no testemunho de Maria
de Lourdes Pintasilgo, a CNJP recorda que
o cuidado abarca as atitudes e as ações que testemunham que os humanos, suas comunidades e nações são interdependentes, conscientes da existência do outro e prontos a
comprometerem-se com os outros. A ética do cuidado supera a meta macroeconómica
da melhoria de qualidade de vida “algures”
no futuro distante; reside mais numa prática e menos num conjunto de princípios pré-definidos; e implica um ‘hábito geral da mente’ centrado no cuidar.
Por
seu turno, Francisco convida-nos a passar “do paradigma do excesso ao paradigma
da partilha e da solidariedade universal”. Pretendemos ressignificar, aqui e
agora, o sentido da comunhão dos santos (um artigo do Símbolo
dos Apóstolos), “a
comunhão de todas as coisas santas”, deixando que “o amor vença a
indiferença”. É imperioso tornar todas as coisas santas”, como antídoto à globalização
da indiferença, ao pecado da indiferença desejando que essa participação
nas coisas santas – “aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas
tudo é para todos” – se torne uma verdadeira prática do “cuidado”.
A
CJNP sugere que “balbuciemos as Bem-Aventuranças na certeza das nossas limitações
mas, simultaneamente, com a fé de que, com a ajuda de Deus, saberemos “fortalecer
os nossos corações”. E propõe uma nova bem-aventurança, que integra as que
conhecemos:
Bem-aventurados vós
os que tendes um coração forte, solidário e atento, que experimentais o cuidado
em dimensões cada vez mais abrangentes, interligadas e complexas, porque fareis
vosso o Reino de Deus!
***
Finalmente,
confesso que me deu imenso gosto este esquisso de análise e de síntese precária
daquilo que penso urgente refletir para construção de uma esperança efetiva
indutora de uma significativa mudança.
Gostei
de ver uma evocação explícita da insigne Maria de Lourdes Pintasilgo por parte da
CNJP nesta mensagem, pelo que lhe dirijo o meu “Bem Haja”.
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