segunda-feira, 2 de março de 2015

Da globalização da indiferença a uma ética do cuidado

O enunciado em epígrafe é o tema em torno do qual gravita a reflexão quaresmal da CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz), vertida para o púbico português sob o formato de Mensagem.
Várias têm sido as mensagens quaresmais de diversas entidades, em que sobressai a mensagem papal pela figura eclesial que é o Papa Francisco e pela excelência do discurso e do conteúdo.
No entanto, a reflexão da CNJP merece particular atenção por diversos motivos, entre os quais destaco: o alinhamento com o discurso papal; o conhecimento da realidade portuguesa em que em parte se estriba a formulação da mensagem; e o propósito de “metanoia”. Com efeito, os portugueses, em muitos aspetos, deixaram-se invadir pela cultura da indiferença, recebendo assim alguns dos malefícios da globalização, sem que tenham haurido o sumo dos seus benefícios. Por outro lado, os portugueses são, em geral, confessos admiradores de Francisco, que não talvez os seus melhores seguidores. Depois, há que reconhecer que, entre os nossos compatriotas, muitos brilham na solidariedade, na luta pelas grandes causas, no denodo filantrópico, no ativismo social e cristão. Todavia, não se instaurou uma cultura do cuidado, estribada numa ética que origine projetos consistentes rumo a uma eficácia que não deixe ninguém fora dos benefícios da civilização e sem embarque nas condições consubstanciadoras de vida em conformidade com as exigências da dignidade da pessoa humana.
A reflexão inicia-se com um ponto sobre a interpelação que o Papa lança aos católicos acerca da indiferença globalizada. Depois, em mais oito pontos, o estado de coisas vem coadjuvado de pertinentes questões de reflexão, vindo a conclusão final a coroar a reflexão com o sentido da consequente ação e a formulação de uma nova bem-aventurança. Os católicos não podem, assim, ficar indiferentes à situação encontrada, mas, iluminados pela tentativa de resposta às questões que se lhes colocam, têm de construir uma plataforma que dê suporte a um conjunto de procedimentos coerentes com o Evangelho feito vida e alegria.
A CNJP, partindo do conceito de católico apresentado por Francisco na sua Mensagem Para a Quaresma sob o lema “Fortalecei os vossos corações”, recorda que um católico será “aquele ou aquela que professa o catolicismo, isto é, que procura ter uma perspetiva universal, orientando-se para todos os seus irmãos”.
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Evidencia os enormes desequilíbrios sociais que infestam o mundo, com as fortunas de muito poucos a aumentar face a inúmeras e enormes maiorias “que não têm o essencial para viver” e as sociedades a produzir uma infinda espiral de exclusões, induzida pela supremacia dos mercados cuja crise atravessa todos os grupos sociais e abala ferozmente a classe média. Daqui se originam as ondas de desemprego, pobreza, vulnerabilização familiar, exclusões, situações explosivas… Em Portugal, com notória indiferença de muitos, assiste-se “ao avolumar destes desequilíbrios”. Quase dois milhões vivem na situação ou na iminência de pobreza.
Pressionados pelo norte da Europa, precisamos de “coesão social”, em vez das atitudes individualistas ou de desistência de achar soluções. Há necessidade de profundas mudanças nas instituições nacionais e internacionais de governo no sentido de se orientarem para a proteção dos mais frágeis e vulneráveis ou mesmo excluídos, das minorias e dos grupos marginalizados, tomando as pessoas e as suas circunstâncias como centro das preocupações e empenhamentos.
É, pois, de perguntar:
– Porque é que o “deus do mercado” nos impede de adorar o Deus único, de Jesus, dos pobres, dos lázaros de hoje?
E impõe-se:
– Em tempo de despojamento e conversão interior, meditar sobre o pecado da indiferença e nas ações que cada um pode escolher fazer ou não, de modo que nos tornemos homens e mulheres presentes no mundo e não presentes ao mundo de forma distanciada e autoprotetora.
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A tentação da indiferença atinge os indivíduos. Ao sermos inundados diariamente por notícias e imagens que testemunham o sofrimento humano dos outros (incluindo numerosos grupos cristãos perseguidos) bem como o terror em que vivem tantos países e populações, sentimos toda a nossa incapacidade de intervir, que nos leva à postura de desistência e tentativa de esquecer.
É, pois, de perguntar:
– Ao experimentamos a sensação de um avolumar da “espiral de violência” na sociedade, como podemos abraçar solidariamente o mundo com as nossas ações individuais e coletivas, unidos “à Igreja do Céu em oração” e inspirados pelo Cristo do Evangelho e pelo apóstolo Paulo das viagens apostólicas, como exorta o Papa Francisco?
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Ante a insegurança e ameaças, as injustiças permanentes e o atropelo dos direitos das minorias, incluindo as imigrantes, segundo o Papa, o sofrimento do próximo apela à conversão, porque a necessidade do irmão “recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência de Deus e dos irmãos”. Cada vez menos ousamos denunciar, nas ruas, as gritantes injustiças instaladas subtilmente nas nossas sociedades e países, a menos que sejam afetados os nossos interesses imediatos. Numa Europa envelhecida e virada para si mesma, consentimos no levantamento de muralhas entre “nós” e “os outros”.
Há que perguntar então:
– Vamos à raiz e causas indutoras do terrorismo? Queremos acolher, em “hospitalidade” e encontro, os imigrantes, em vez de querer integrá-los, quase à força? Como podemos tornar-nos mais acolhedores e hospitaleiros? Só com os turistas, que trazem divisas? Não teremos no nosso país as nossas Lampedusas? E que solidariedade com a do Mediterrâneo?
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Francisco pretende que tornemos as nossas comunidades “ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença”, atravessando o limiar que as põe em relação com a sociedade circundante, não se fechando em si mesmas. Queremos, pois, que a Igreja seja uma Igreja “do limiar” e que as nossas famílias sejam “comunidades do limiar”.
Há então que perguntar (são questões cuja resposta é do foro quer individual quer coletivo, ao nível da mudança das estruturas injustas em que vivemos e que queremos transformar):
– Que é uma família alargada? Como acolhemos, na Igreja, famílias e comunidades, os que vivem nas periferias (económicas, sociais, culturais, geográficas, étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras) reconhecendo-lhes estatuto e capacidade de autoafirmação? Visitamos os presos e doentes sem família e vamos à procura dos sem-abrigo? Apoiamos e acolhemos em nossas casas as famílias no limiar da pobreza? Como ajudamos os desempregados e apoiamos as crianças e jovens que se debatem com o insucesso escolar? Que solidariedade com as vítimas da violência doméstica, abusos sexuais e pedofilia? Como escutamos as solidões?
– Cuidamos dos idosos ou libertamo-nos deles depondo-os em verdadeiros “depósitos”, antecâmaras de tristeza, solidão e morte? Tornamo-nos indiferentes aos que nos deram a vida, a educação, os valores e cultura/s?
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Quando estamos bem e comodamente instalados, o coração cai na indiferença: esquecemos os outros, não nos interessando os seus problemas nem as tribulações e injustiças que sofrem: desemprego (com especial incidência nas mulheres e nos jovens), que atinge dramaticamente a sociedade portuguesa; pobreza infantil, que não cessa de aumentar. O trabalho já não integra a identidade do ser-se homem ou mulher, tornando-se apenas importante “ter um emprego” que garanta a “minha” sobrevivência e a dos “meus”, sem o qual caímos no “estigma” que leva à exclusão e à autoexclusão. Se a capacidade de resiliência é infinita, não o é paciência.
É, pois, de questionar:
– Ante os irmãos desempregados, preferimos a multiplicação dos pães e dos peixes (para obviar à fome do corpo e da alma) à disposição de encontrar modos de vida mais frugais e simples, para que “outros” (incluindo os habitantes dos antípodas, os chamados países do hemisfério sul) tenham um pouco mais? Como cristãos, pactuamos com o subemprego, a exploração pelo trabalho, a “globalização” do trabalho escravo e o assédio sexual, o “stalking” no trabalho, a discriminação no emprego das mulheres mães ou que desejam ter filhos? Que ética de justiça queremos? Justiça diferente para uns e para outros (quem paga e quem não pode pagar)? Como podemos ser agentes indignados pela falta de Justiça, à luz do ensinamento de Jesus, quando expulsa os vendilhões do templo?
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Sendo o direito à saúde um direito indelével do ser humano (Deus criou-nos “seres encarnados”), cumpre almejar uma ética da/na saúde que não discrimine ninguém. A indiferença à dor e sofrimento do outro não configura uma negação da parábola do Bom Samaritano. Teremos, pois, de ser “autores” e “sujeitos” da própria saúde de um modo solidário, isto é, pensando nos outros, em quem que não tem sequer médico ou hospital e condições mínimas de saúde e sobrevivência, não nos conformando com uma saúde segregada e segregadora.
Também o lazer é um direito humano. Mas este não pode ser apenas luxo de uns quantos. Devemos usar solidariamente os tempos de lazer, saboreando a vida, apesar das suas restrições, na beleza, arte, cultura, desporto…, na convicção de que “tudo é dom de Deus”.
Há, pois, que perguntar:
– Queremos uma saúde para quem pode pagar e outra para quem não pode pagar? Somos indiferentes à solidão, abandono, maus-tratos, negligência, quando se trata de “alguns outros”? Qual o papel, nas nossas vidas quotidianas, do voluntariado, da gratuidade, do dom e daquilo que nos é dado?
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Porque o mundo tende a fechar-se em si mesmo, diz o Papa – “o povo de Deus tem necessidade de renovação para não cair na indiferença nem se fechar em si mesmo”. Por conseguinte, a educação das novas gerações para uma consciência mundial e planetária constitui um desafio para os educadores e professores. É pertinente ensinar-lhes a descentrarem-se, a recusarem perspetivas etnocêntricas; e a tornarem-se corresponsáveis por um “mundo aberto”, autónomo e interdependente. É urgente educar a todos numa escola inclusiva, que não segregue, facilitando, simultaneamente, o acesso de cada um à excelência de que for capaz.
Impõem-se as perguntas:
– Como conciliar a prerrogativa da “liberdade de escolha” com a possibilidade de ter “liberdade de escolha”? Como fazer contracorrente à exclusão escolar?
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Concluindo, se a Deus não é indiferente o mundo, que Ele ama, também o não pode ser aos cristãos. Devemos, pois, beber em Cristo, Fonte de Água Viva o fundamento humano da universalidade do nosso catolicismo.
Contra a globalização da indiferença a CNJP propõe como necessária uma Ética do Cuidado, enquanto movimento do coração para fora que, simultaneamente, fortalece por dentro o coração de cada um: “uma ética do cuidado com tudo e com todos”.
Pegando no testemunho de Maria de Lourdes Pintasilgo, a CNJP recorda que o cuidado abarca as atitudes e as ações que testemunham que os humanos, suas comunidades e nações são interdependentes, conscientes da existência do outro e prontos a comprometerem-se com os outros. A ética do cuidado supera a meta macroeconómica da melhoria de qualidade de vida “algures” no futuro distante; reside mais numa prática e menos num conjunto de princípios pré-definidos; e implica um ‘hábito geral da mente’ centrado no cuidar.
Por seu turno, Francisco convida-nos a passar “do paradigma do excesso ao paradigma da partilha e da solidariedade universal”. Pretendemos ressignificar, aqui e agora, o sentido da comunhão dos santos (um artigo do Símbolo dos Apóstolos), “a comunhão de todas as coisas santas”, deixando que “o amor vença a indiferença”. É imperioso tornar todas as coisas santas”, como antídoto à globalização da indiferença, ao pecado da indiferença desejando que essa participação nas coisas santas – “aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para todos” – se torne uma verdadeira prática do “cuidado”.
A CJNP sugere que “balbuciemos as Bem-Aventuranças na certeza das nossas limitações mas, simultaneamente, com a fé de que, com a ajuda de Deus, saberemos “fortalecer os nossos corações”. E propõe uma nova bem-aventurança, que integra as que conhecemos:
Bem-aventurados vós os que tendes um coração forte, solidário e atento, que experimentais o cuidado em dimensões cada vez mais abrangentes, interligadas e complexas, porque fareis vosso o Reino de Deus!
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Finalmente, confesso que me deu imenso gosto este esquisso de análise e de síntese precária daquilo que penso urgente refletir para construção de uma esperança efetiva indutora de uma significativa mudança.

Gostei de ver uma evocação explícita da insigne Maria de Lourdes Pintasilgo por parte da CNJP nesta mensagem, pelo que lhe dirijo o meu “Bem Haja”.

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