O
Presidente da Comissão Europeia pronunciou-se, a 8 de março, em entrevista ao
semanário alemão Welt am Sonntag,
pela criação de um exército europeu, no pressuposto de que será uma forma de
contribuir para delinear uma política externa de defesa e segurança comuns
perante países como a Rússia e outros blocos extraeuropeus, no âmbito de um
projeto estratégico coerente.
Não
se trata, na intenção e opinião de Jean-Claude Juncker, de um exército a
mobilizar de imediato, mas para demonstrar ao exterior, em especial à Rússia,
que a União Europeia toma a sério a defesa dos seus valores. Constituirá uma
resposta comum aos desafios que se colocam à Europa no mundo, consubstanciando
a sua assunção das responsabilidades. Porém, não representará uma concorrência
com a NATO.
Também
já a Ministra da Defesa da Alemanha, Ursula von der Leyen, já se tinha
pronunciado em fevereiro a favor desta ideia, mas admitindo que não era para
implementar a curto prazo. Não obstante, entende que é uma ideia a pôr sobre a
mesa de estudo e a desenvolver, se efetivamente se caminha para uma verdadeira
União Europeia.
Se
os europeus querem uma união eficaz nos setores fundamentais – chamem-lhe
federação, chamem-lhe Estados Unidos da Europa – é óbvio que a defesa e a segurança
comuns têm de ser encaradas como valências fundamentais da UE, tão importantes
como a comunidade de mercado, união económica, união monetária, união bancária.
Este desiderato pode, a meu ver e em tese, ser satisfeito com umas forças
armadas europeias (e não só exército) ou com uma obrigação pactual de
cada país estar preparado para responder ao apelo da autoridade de defesa
europeia em tempo útil. Penso, no entanto, que esta segunda modalidade será de
mais difícil consecução, dado que os Estados-Membros estão a emagrecer cada vez
mais os orçamentos nacionais e os efetivos em pessoal para as suas forças
armadas. Ademais, a mobilização e prontidão “ad hoc” de uma força armada não é
fácil.
Como
reação da Rússia às declarações de Juncker, regista-se a declaração exemplar do
deputado russo Leonid Slutski, presidente da comissão parlamentar para os
Assuntos da Comunidade de Estados Independentes (criada com o
desabar da união Soviética),
na sua conta na rede social Twittter: “Estamos
perante uma versão europeia de paranoia: declarar a necessidade de criar um
exército unido para fazer frente à Rússia, a qual não tem o propósito de estar
em guerra com ninguém”.
Penso
que a criação de um exército europeu expressamente para fazer frente à Rússia
significa uma postura de prosápia, não eficaz e cujo objetivo não era
necessário enunciar. Em meu entender, a criação de umas forças armadas
europeias deverá acontecer, mas por outros motivos.
***
Entretanto, vozes há que se levantam contra a
ideia de um exército europeu comum. Entre essas, destaca-se Renato Epifânio,
presidente do Movimento Internacional Lusófono, no Público de 17 de março, que julga viável ter portugueses a
“defender a integridade territorial e a paz interna de países lusófonos”, mas
não a combater contra a Rússia.
Critica mesmo o Presidente da Comissão
Europeia na sua “fuga para a frente” ao idear a criação de um exército europeu,
no momento em que está iminente a desagregação europeia. E afirma que “nos
estão a deitar areia para os olhos” quando afiançam que “esse exército europeu seria
a melhor forma de conter a ‘ameaça russa’ na Ucrânia”, uma vez que, segundo o
colunista, “quem promoveu este conflito com a Rússia foi a própria União
Europeia, ainda que com o apoio dos EUA, ao fazer um rol de promessas à Ucrânia
que não poderia cumprir”. Mais: “ao ter incentivado uma atitude antirrussa
junto das autoridades ucranianas, tudo o que a União Europeia fez foi promover
a própria desintegração interna da Ucrânia, por mais que se venha a manter
alguma unidade formal, a bem do respeito das aparências diplomáticas”.
O distinto colunista chama a atenção para o facto de não se poder ignorar a
geografia europeia, o facto de viver na Ucrânia, em particular na sua zona
leste, uma extensa comunidade russófona e a partilha, de há séculos, da
história política da Ucrânia com a Rússia. Assim, acusa “o estado de alucinação
dos nossos governantes, a começar pela Comissão Europeia”, que parece querer
agora “fazer tábua rasa” do que se tem passado com a Ucrânia. E apela ao
realismo sob pena de se caminhar para o desastre, acreditando que “a própria
realidade se encarregará de fazer abortar essa proposta de um exército europeu”.
***
Por seu turno, António Figueiredo Lopes, no DN, de hoje, dá conta de que as declarações de Juncker “apanharam
de surpresa grande parte dos líderes europeus”, suscitando “reparos no próprio
Parlamento Europeu” e desencadearam a reação “da NATO a recomendar que se
evitem duplicações e se reforce a complementaridade UE/NATO”.
Por mim, considero ambígua a advertência da NATO. Percebo a sua preocupação
com as duplicações, mas apelar para o reforço da complementaridade permite uma
leitura de admissibilidade do exército europeu. Por exemplo, umas forças
armadas europeias robustas constituiriam uma considerável aba de reforço da
NATO e poderiam intervir sempre que à NATO não conviesse intervir como NATO,
mas apenas como retaguarda de apoio.
Figueiredo Lopes – que, além do desempenho de outros cargos governativos,
foi secretário de Estado e Ministro da Defesa Nacional e da Administração
Interna e desfruta, como poucos, de larga experiência internacional e conhecimento
geopolítico – questiona o interesse do assunto para Portugal, mas, de imediato,
exprime a opinião de que, “pelo seu posicionamento estratégico” e “pela sua
história, a União Europeia e a NATO são vitais para a segurança e a defesa
nacional”.
Refere o articulista que a ideia da militarização europeia não é nova,
sendo que “o primeiro esforço para a criação de um exército europeu comum com
uma direção política única” se reporta à tentativa de constituição da “Comunidade
Europeia de Defesa, no início da década de 50”. Depois, aponta “o aparecimento
de uma nova ordem mundial” e de “uma nova tipologia de ameaças, riscos e
conflitos” que se seguiram ao termo da “guerra fria” na reta final do último
quartel do século XX. E entende que então a UE, que fora “desenhada como um
projeto de paz, estabilidade e desenvolvimento”, sentiu ter de “preparar-se
para novas missões, num cenário geopolítico e estratégico particularmente
preocupante” em relação às fronteiras “a leste e a sul”.
É sabido que a letárgica UEO (União da Europa
ocidental), criada em 1954, foi
extinta em 2011, passando os seus instrumentos principais para a UE. É certo
que nos seus últimos anos de existência teve “papel relevante como suporte
institucional para a intervenção autónoma em operações de gestão de crises e em
missões humanitárias” em que os EUA não pudessem ou não quisessem participar.
Em 1998, começaram a dar-se passos para que a política comum de segurança e
defesa viesse a integrar os tratados, trabalhando-se na “constituição dos instrumentos
políticos, civis e militares adequados à sua concretização”. Com o Tratado de
Lisboa, a Europa passou a dispor de condições para se assumir “como ator global
da paz, com capacidade para lançar operações autónomas, com ou sem o apoio da
NATO”.
Na opinião de Figueiredo Lopes, não é prioritária tanto a criação de um
exército europeu comum, mas a vontade política para ativar os mecanismos
previstos no Tratado de Lisboa, nomeadamente: a cooperação estruturada
permanente e a utilização dos agrupamentos táticos, o aumento do investimento
no setor tecnológico e industrial para colmatação das fragilidades operacionais
e reforçar a cooperação entre as diversas forças armadas e a ação em parceria
da parte dos Estados-Membros, já que dificilmente um Estado disporá por si só
de todas as capacidades para cumprir tão complexas missões.
Ora, tendo sentido a proposta do Presidente da Comissão Europeia, ela pode
constituir um fenómeno de queima de etapas, dados os termos e o momento em que
foi apresentada.
***
A mim, parece-me mais isenta a posição de Figueiredo Lopes que a de Renato
Epifânio. Este parece pôr de parte a ideia por indesejável e inviável, ao passo
que aquele, parecendo julgar a favor da viabilidade e da desejabilidade de um
exército europeu, pelas boas razões que aduz, põe apenas em causa a
oportunidade e o modo como a questão foi equacionada pelo atual e algo
temerário presidente da Comissão, havendo que proceder, antes, à intensificação
da União.
Além da necessidade de o poder político europeu necessitar, a meu ver, de
umas forças armadas para assegurar a credibilidade do poder e a eficácia da
intervenção estratégica, complementar da diplomacia, há outras razões, entre as
quais as da coerência com o projeto europeu e do combate sistémico ao terrorismo.
Há tantas diretivas da União que os Estados-Membros têm de incorporar (atinentes às políticas, à agricultura, às pescas, às florestas, à
concorrência, às empresas públicas, à indústria, ao comércio, ao orçamento, à
colaboração policial…). E como não equacionar a necessidade de umas forças armadas, até porque o
terrorismo espreita de todos os lados e com novas modalidades? Só acreditando que
a polícia é suficiente para assegurar a segurança comum, coisa em que nem a
França já acredita…
Ora a União Europeia dispõe de instituições
constitucionais políticas: o Parlamento Europeu (PE), eleito por sufrágio
direto, universal e secreto; o Conselho da União
Europeia (CUE), vulgarmente conhecido como Conselho de Ministros, que
representa os Governos dos Estados-membros, cujos interesses defendidos buscam
um acordo comum; a Comissão Europeia (CE), o executivo da UE;
e o Conselho
Europeu (não confundir com o Conselho
da UE),
formado pelos chefes de Estado ou de Governo dos países da União Europeia, que reúne
quatro vezes por ano (de acordo com a Lei Única
Europeia, deve reunir pelo menos duas vezes por ano ou mais, em sessão
extraordinária, convocada pelo seu presidente) para analisar as grandes questões
europeias e dar à União os impulsos necessários e definir as suas prioridades e
orientar as políticas globais.
Dispõe outrossim a UE de instituições
não propriamente políticas, como o Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias (vulgarmente conhecido como
Tribunal Europeu de Justiça), tribunal supremo, assistido por um tribunal inferior chamado de Tribunal
de Primeira Instância (TPI) e um Tribunal
da função Pública, com o objetivo de reduzir a carga de trabalho do
tribunal principal; e o Tribunal de Contas Europeu, que garante
a correta aplicação dos fundos dos contribuintes europeus.
Depois, vem a instituição financeira,
o Banco
Central Europeu (BCE), responsável pela política monetária europeia – o banco central da moeda
única europeia.
Há ainda ouros órgãos e agências. Os órgãos são comparáveis a
instituições de menor nível (embora não beneficiem
deste estatuto), com funções concretas, mas a área em que se podem implantar é
transversal ou, eventualmente, aplicada por campos mais específicos, mas com
amplos poderes que vão muito além da gestão. São independentes no exercício das
suas funções. As agências, por sua vez, são filiais de outras instituições, mas
com autonomia funcional, geralmente qualificadas em áreas especializadas da
gestão delegada.
Como órgão de garantia, temos o Provedor de Justiça Europeu. Como órgãos consultivos, o Comité Económico e Social Europeu, que representa sindicatos, organizações patronais, ONGs
e outras organizações socioeconómicas de importância europeia; e o Comité das Regiões, que representa as
autoridades regionais e locais, as suas perspetivas e interesses. Como órgão financeiro, temos o Banco Europeu de Investimento (BEI), que tem como missão contribuir para um
desenvolvimento regional equilibrado através da integração económica e coesão
social.
Há como órgãos interinstitucionais: o Serviço das Publicações Oficiais das
Comunidades Europeias, que edita, imprime e
distribui informação sobre a UE e as suas atividades; o Serviço Europeu de Seleção de Pessoal, que seleciona o pessoal das instituições da UE e
de outras agências; e a Autoridade para a Proteção
de Dados (AEPD), que garante o respeito, por parte das
instituições e órgãos da UE, do direito dos indivíduos à privacidade no
processamento de dados pessoais.
Quanto
às agências, temos as Agências para a Política Externa e de Segurança Comum e as Agências de
Coordenação e Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal.
Ao primeiro grupo pertencem: o Instituto de Estudos de Segurança
da União Europeia, que contribui para a construção de uma cultura
europeia comum de segurança e promove a discussão estratégica; e o Centro
de Satélites da União Europeia.
As segundas foram criadas para ajudar os Estados-Membros a
cooperar no combate ao crime organizado internacional. Executam as tarefas
respeitantes ao âmbito do diálogo, da assistência e da cooperação entre
polícias, alfândegas, serviços de imigração e da justiça dos Estados-Membros. São
a Europol,
responsável por facilitar as operações de luta contra o crime na União
Europeia; e a Eurojust, que reforça a cooperação judiciária entre os
Estados-Membros.
***
Permita-se-me o repto: quem reparar no elenco de instituições, órgãos e
agências exposto, verá, a não ser que não queira ver, que só flautam umas forças
armadas europeias, para ajudar à festa, melhor, à concretização do desígnio
europeu.
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