O
jornal Público de hoje, 24 de março,
faz jus ao centenário da revista Orpheu
– Revista Trimestral de Literatura,
cujo n.º 1, referente ao primeiro trimestre (janeiro,
fevereiro e março)
saiu a público precisamente a 24 de março de 1915.
Foi
a revista que deu vez e voz ao movimento modernista português, surgido em 1913,
mas que teve a sua expressão pública em 1915 e que aglutinava o grupo de
escritores e artistas plásticos conhecidos como “Os de Orpheu” ou “Geração de
Orpheu”. Tratava-se de um projeto literário luso-brasileiro, propriedade da
firma Orpheu, Lda, sendo diretores Luís de Montalvor, para Portugal, e Ronald
de Carvalho, para o Brasil, e sendo seu editor António Ferro. A composição e
impressão foram obra da Tipografia do Comércio, em Lisboa. Os principais
colaboradores, além dos diretores, eram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
José de Almada Negreiros, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues e
José Pacheko.
Na
introdução ao n.º 1, o diretor para Portugal apresentava a orientação estética
da revista literária como sendo “um exílio de temperamentos de arte” estribado
num interessante “princípio aristocrático”, norteado por “desejos de bom gosto
e refinados propósitos em arte”.
Nela,
aqueles intelectuais (e outros de menor vulto), seguidores das novas formas e
dos novos temas, publicaram os seus primeiros poemas de intervenção contestando
a velha ordem literária. O primeiro número, correspondendo ao desejo dos
autores, fez escândalo e provocou a troça dos críticos. Os comentários brejeiros
punham a ridículo os jovens escritores, denominados de “doidos varridos”,
sobretudo em razão dos poemas “16”, de Sá-Carneiro, e “Ode Triunfal”, de Álvaro
de Campos, o heterónimo mais modernista de Pessoa.
O
segundo número, saído em junho do mesmo ano e correspondendo ao segundo
trimestre, que incluiu pinturas futuristas de Santa-Rita Pintor, suscitou
reações semelhantes.
Teve
esta revista trimestral de literatura curta duração. O terceiro número, apesar
de preparado para vir a lume (onde Pessoa pensava incluir
trabalhos do pintor Amadeu de Souza-Cardoso – “impressionista, cubista, futurista,
abstracionista? de tudo um pouco”),
não chegou ao público por penúria financeira. A empresa teve de fechar portas,
porque o patrocinador, o pai de Mário de Sá-Carneiro, ficou desolado com o
suicídio do filho poeta.
Não
obstante, o movimento aglutinado em torno da publicação não se desfez. Ao
invés, veio a ficar reforçado com a adesão de novos criadores e desenvolveu uma
atividade mais intensa e agressiva na denúncia inconformista da crise da
consciência intelectual escondida por trás da mediocridade académica e assaz
provinciana da produção literária predominante desde o declínio da Geração de 70 – denúncia viperinamente
expressa no Manifesto Anti Dantas, de
Almada Negreiros contra Júlio Dantas, considerado o corifeu dessa literatura envelhecida.
Apesar
da breve existência da revista, ela exerceu uma poderosa e indelével influência
na cultura portuguesa, inspirando movimentos subsequentes de renovação e
reviravolta na literatura, que ainda hoje tem expressão com lugar na Literatura.
A
tradição vanguardista e provocadora de Orpheu
foi continuada por outras revistas literárias Exílio e Centauro, em
1916, Portugal Futurista, em 1917, Contemporânea, em 1922-1926, e Atena, em 1924-1926. Alguns críticos
consideram a publicação eventual de Portugal
Futurista, em novembro de 1917, dirigida por Carlos Filipe Porfírio, como o
real terceiro número de Orpheu, com
trabalhos dos principais colaboradores, designadamente Raul Leal, Mário de
Sá-Carneiro (póstumo),
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Almada Negreiros, Santa-Rita pintor e Amadeu
de Souza-Cardoso.
***
E
o que é o modernismo? Basicamente pode definir-se, nas artes, como o movimento
artístico renovador que marcou as primeiras décadas do século XX, nomeadamente
a literatura, as artes plásticas e a música e se pautou pela rutura frontal com
as formas tradicionais.
Tem
funda relação com os seguintes movimentos, do século XX, congéneres e afins,
que o integram em certa medida:
O
futurismo – enunciado por Marinetti, em 1909 – estriba-se numa noção dinâmica e
enérgica da vida moderna, virada para o futuro, com a exaltação da força, da
velocidade, e da tecnologia, e com a rejeição do passado e da tradição. Os seus
principais sinais eram o movimento e a velocidade, a violência, a rutura com o
passado e com o seu moralismo.
O
decadentismo – caraterizado pelo comprazimento com os extremos do simbolismo e
do nefelibatismo – liga-se ao cansaço civilizacional, ao tédio, à busca de novas
sensações, mais intensas e fruídas no extravagante, no mórbido e no requinte da
forma.
O
paulismo – criado por Fernando Pessoa com o poema “Impressões do Crepúsculo”,
iniciado com a palavra “Pauis” – prima pela criação e descrição de ambientes
sombrios e de águas escuras e estagnadas (“paradas”), nas quais o poeta não se
encontra. Derivado do simbolismo e do decadentismo, é caraterizado pelo desejo
de transmitir impressões vagas e difusas, pelo recurso frequente à sinestesia,
aos pontos de suspensão ou reticências, ao uso recorrente da maiúscula, à
construção da frase nominal, à acumulação de metáforas, à tendência para o
esteticismo, para a evocação de paisagens crepusculares e/ou esfumadas e para a
expressão do absurdo, da melancolia e do tédio.
O
intersecionismo – assumido por Fernando Pessoa e caraterizado pela interseção
ou sobreposição de elementos díspares, assemelhando-se às sobreposições
dinâmicas da pintura futurista – encontra-se por exemplo no poema “Chuva
Oblíqua”.
O
sensacionismo – teorizado nos escritos pessoanos – assume contornos mais vastos
que o futurismo, de que apenas recebe influência. Deriva do simbolismo francês,
do panteísmo transcendentalista português e de um conjunto de coisas de que
outros movimentos são expressões ocasionais. Traduz-se na vivência das sensações,
tanto da parte do poeta como da parte das pessoas que o circundam. Segundo Pessoa,
a “única realidade da vida é a sensação” e “a consciência da sensação” é a “única
realidade em arte”. A sensação tanto pode ser a impressão das coisas na alma
como a emoção produzida no espírito por notícias e factos importantes.
O
cubismo – caraterizado pelo abandono de formas essenciais (poliedros,
cilindros, cones…),
fragmentando os volumes, despersonalizando a arte de pintar através de
grafismos simplificados e utilizando, por vezes, a colagem (cartão,
papel, espelhos…)
com a finalidade de quebrar a dureza da representação sem perspetiva – tratava as
formas da natureza através de figuras geométricas, representando as partes de um
objeto no mesmo plano. Surgiu com Paul Cézanne, Pablo Picasso e Georges Braque.
Nesta conceção de arte, a representação do mundo não passava a ter qualquer
compromisso com a aparência real das coisas.
O
dadaísmo – surgido, em 1916, em Nova Iorque e Zurique, como reação artística
contra a guerra – tinha como escopo a abolição da literatura e arte
tradicionais, preconizando a máxima liberdade na relação do pensamento com a
expressão literária e artística, sendo, neste aspeto, o antecessor do
surrealismo, que haveria de aparecer mais tarde, no segundo quartel do século
XX. Este enaltece os modos de pensar e sentir livres de toda a preocupação
racional, estética ou moral, radicando a criação nos automatismos psíquicos, no
subconsciente e no sonho.
***
Foi,
como já vem referido, a revista Orpheu
que deu vez e voz públicas ao modernismo em Portugal, tendo os homens da
“Geração do Orpheu”, acima mencionados, constituído o nervo nuclear do Primeiro
Modernismo. Doze anos depois de 1915, vem a “segunda geração modernista”, que
reconhece a importância daquela revista de literatura nas páginas da revista Presença – Folha de Arte e Crítica –
fundada por Branquinho da Fonseca, José Régio e João Gaspar Simões, editada em
Coimbra entre 1927 e 1940 e em que tiveram relevo grandes vultos da Literatura
Portuguesa como, além dos fundadores, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Adolfo
Casais Monteiro, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Pedro Homem de Mello,
Tomás de Figueiredo e Eça Leal. É o “Segundo Modernismo”.
O
movimento que gravitou em torno desta publicação inseriu-se na linha de
pensamento, estética e intervenção do Primeiro Modernismo, continuou a luta
pela crítica livre contra o academismo literário e artístico e, apoiado na
psicanálise freudiana, bateu-se pela supremacia da intuição sobre a razão, do
individual face ao coletivo e do psicológico sobre o social e. Além da produção
nacional, a revista abrigou textos de escritores europeus, sobretudo franceses.
Antes
e a par do movimento modernista, surgiram no país outras revistas que enunciavam
diferentes soluções estéticas e políticas para recuperar o atraso português. Tais
eram a Nação Portuguesa, de feição conservadora,
e a Seara Nova, de tendências
progressistas e democráticas. A primeira, pulicada entre 1914 e 1938 e
dirigida, entre outros, por Alberto Monsaraz, António Sardinha e Manuel Múrias,
assume-se como órgão do “integralismo lusitano”. Na segunda, da iniciativa de
Raul Proença, em 1921, colaboraram investigadores como o historiador Jaime Cortesão
e António Sérgio e os escritores Aquilino Ribeiro, Câmara Reis e Raul Brandão.
Depois
da segunda geração modernista, surge um grupo de jovens estudantes de Coimbra,
que adotam o combativismo da Geração de
70, do século anterior, cujo socialismo utópico denunciam e, inspirados
pelo marxismo, se iniciam na luta contra a opressão. Surgem, neste contexto, os
cultores do neorrealismo, abertamente em rutura com o movimento da Presença. Contra o individualismo e
psicologismo dominantes, Ferreira de Castro introduz, com os seus romances Emigrantes e A Selva, a análise de problemas de natureza social. Vêm, a seguir,
Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Álvaro Cunhal, Mário Dionísio,
José Gomes Ferreira e outros, que tratam os problemas, as tristezas e as misérias
do povo trabalhador, oprimido pela ganância de uma minoria reinante de rosto
capitalista, ajustando à realidade portuguesa o rigor temático e formal do neorrealismo
europeu.
Todavia,
o modernismo fez escola e foi notável, se bem que os seus corifeus não o foram
total e exclusivamente. Exemplo desta asserção é o indizível Pessoa na sua
multilateralidade pessoal e literária.
Leia-se
a seguinte poesia de Álvaro de Campos para recordação do poeta poliédrico.
Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades!
Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades!
A chegada pela manhã a cais ou a gares
Cheios de um silêncio repousado e claro!
Os primeiros passantes nas ruas das
cidades a que se chega...
E o som especial que o correr das horas
tem nas viagens...
Os ónibus ou os elétricos ou os
automóveis...
O novo aspeto das ruas de novas terras...
A paz que parecem ter para a nossa dor
O bulício alegre para a nossa tristeza
A falta de monotonia para o nosso coração
cansado!...
As praças nitidamente quadradas e grandes,
As ruas com as casas que se aproximam ao
fim,
As ruas transversais revelando súbitos
interesses,
E através disto tudo, como uma coisa que
inunda e nunca transborda,
O movimento, o movimento
Rápida coisa colorida e humana que passa e
fica...
Os portos com navios parados.
Excessivamente navios parados,
Com barcos pequenos ao pé esperando...
Álvaro
de Campos, s/d
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