sábado, 7 de março de 2015

A propósito da obra completa do Padre António Vieira

O Diário de Notícias, de 5 de março, releva as notícias da oferta de exemplar de cada um dos 30 volumes da obra completa do Padre António Vieira ao Papa Francisco e da apresentação desta produção do Circulo de Leitores pelo Bispo português Dom Carlos Azevedo, delegado do Pontifício Conselho da Cultura.
A oferta ao Papa ocorreu por ocasião da Audiência Geral de quarta-feira, dia 4 de março, em São Pedro; a apresentação da obra de Vieira decorreu, na tarde do mesmo dia, no Instituto de Santo António, in Campo Marzio, também denominado como Santo António dos Portugueses, onde Vieira pregou importantes sermões.
A comitiva portuguesa que se apresentou perante o Papa era constituída por 15 pessoas e liderada por António Sampaio da Nóvoa, ora reitor emérito da Universidade de Lisboa, acompanhado do atual reitor António Cruz Serra. Integravam-na membros do Conselho de Administração e da Direção Editorial do Círculo de Leitores, assim como membros da comissão coordenadora do projeto Vieira Global, bem como o historiador José Eduardo Franco, que com Pedro Calafate coordenou a edição da obra do jesuíta português.
O referido diário dá ainda notícia da oferta, por parte da delegação portuguesa, ao Papa jesuíta argentino de “um quadro com um banda desenhada, de Patrícia Monteiro, que é um diálogo entre o Papa e o Padre António Vieira a falar sobre os temas principais da sua obra”.
Faz-me lembrar o texto em formato de entrevista À Conversa com o Padre António Vieira, de Manuel Maria em Farol das letras (vd http://faroldasletras.no.sapo.pt/padreantvieira.html, ac 201.03.06).
Segundo, Dom Carlos Azevedo, trata-se de “figuras muito diferentes no seu próprio percurso biográfico, mas são dois homens apaixonados pelo Evangelho”, evangelho que o português da Companhia de Jesus soube “ler no concreto da história” e “aplicá-lo ao concreto da política”, não tendo medo – como o Papa diz – “de sujar as mãos, de transformar aquilo que estava ao seu alcance”. O mesmo bispo preconiza que Vieira, no século XVII, “lutou por causas que são muito semelhantes às que hoje movem o Papa, de lutar pela libertação dos mais desfavorecidos, de defender causas da justiça social, de promover uma evangelização que tenha caráter concreto na política e um olhar novo sobre o mundo”. É “a espantosa existência de Vieira”, daquele que “dinamizou a sociedade do seu tempo com uma capacidade de intervenção e uma criteriosa reflexão psicológica que ainda hoje nos espanta como ele conhece bem o ser humano e, por isso, é alguém muito contemporâneo” (vd DN, 5 de março).
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Das mais de 15 mil páginas que compõem a obra (cerca de 3000 traduzidas do latim), que teve como principal mecenas a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em parceria com o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, “cerca de um quarto constituem escritos inéditos ou parcialmente inéditos”.
Até há pouco tempo, conheciam-se os mais de 200 sermões (nas escolas secundárias, estuda-se o Sermão de Santo António, conhecido como Sermão de Santo António aos Peixes), dava-se algum relevo às cartas (mais de 700) e faziam-se referências à Clavis Prophetarum e a outros escritos.
Sobre a Clavis Prophetarum, a Infopédia recorda esta obra “tão cansada e suada” da velhice de Vieira, por ele considerada “a sua obra capital”, que poderia ficar concluída no ano subsequente ao da morte do autor, de acordo com as palavras do Padre Bonucci, que o assistia com vista ao remate deste tratado profético. Este padre, apesar de encarregado de a completar depois do falecimento do português, acabou por não o fazer, dada a dificuldade que não conseguiu ultrapassar, mas coligiu outros escritos dispersos do seu mestre.
Em 1700, foi enviada para Roma uma cópia da Clavis, que lá se perdeu, apesar de ter já sido transcrita algumas vezes. Entretanto, em 1714, o autógrafo voltou a Lisboa, onde foi ordenado pelo padre Carlos António Casnedi, que estruturou os cadernos de Vieira e resumiu em latim o seu conteúdo, aditando-lhe algumas opiniões pessoais. A única parte publicada da obra era, até esta iniciativa do Círculo de Leitores, o resumo de Casnedi.
Vieira defende, na obra, algumas teses que, segundo a opinião do mencionado estudioso, chocariam algumas consciências. Pensava, por exemplo, que os ameríndios viviam na “ignorância invencível”, tanto de Deus como do direito natural, circunstância que os livrava do castigo eterno. Preconizava que deveria ser devolvida aos judeus a Terra Santa e permitida a reconstrução do Templo, para que, apesar de convertidos ao Cristianismo, pudessem oferecer os sacrifícios e praticar os demais ritos, de acordo com a lei de Moisés. Acreditava, por fim, na probabilidade da relativa iminência da segunda vinda do Senhor: “Não vos pertence conhecer o tempo nem o momento que o Pai estabeleceu em seu poder” (A 1,7).
- cf Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2015. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt/$clavis-prophetarum, ac 2015-03-06.
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O projeto editorial do Círculo de Leitores a colocar ao acesso do grande público a primeira Obra Completa do Padre António Vieira – constituída por cartas, sermões, textos proféticos e escritos vários – é, na expressão de José Eduardo Franco, um dos diretores de Obra, uma primavera editorial. A envergadura do projeto implicou o trabalho de uma equipa luso-brasileira de 97 investigadores, paleógrafos, linguistas, filólogos, críticos literários, historiadores, teólogos, juristas, tradutores, revisores. Um monumental trabalho de bastidores para que os trinta volumes da coleção fossem publicados entre abril de 2013 e dezembro de 2014 (2014 é o ano do 4.º centenário da partida de Vieira para o Brasil, onde iniciou estudos no colégio dos Jesuítas). E a pesquisa deambulou por arquivos – públicos e privados – de Portugal, Brasil, França, Itália, Espanha, Holanda, México e Inglaterra – a partir de fontes manuscritas e impressas.
Na sessão de comemorativa da conclusão da Obra, a 3 de dezembro de 2014, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, Eduardo Lourenço, orador convidado, “sublinhou a capacidade de ver e dar a ver de Vieira”, enquanto Viriato Soromenho-Marques enveredou “pela ponte entre os escritos setecentistas de Vieira e a nossa contemporaneidade”.
Diga-se a este respeito que o jesuíta do século XVII viveu alguns anos em Roma e o Papa reinante ao tempo, Clemente X, teve um papel importante na luta do sacerdote, missionário, político e diplomata português contra a Inquisição.
A viagem pelos escritos vieirinos pôs ao de cima a seguinte curiosidade: Foi em Roma, entre 1669 e 1675, que o Padre António Vieira conseguiu extraordinária glória com os sermões que pregou, sobretudo perante a rainha Cristina da Suécia, que o convidara para seu pregador real, facto que levou o Prepósito-Geral os Jesuítas se tivesse impressionado tanto com a fluidez, a precisão e a majestade do seu verbo que lhe deu por obediência a missão de “ pôr por escrito o que dizia”. Isto, no dizer de José Eduardo Franco, por ser um homem de ação e um extraordinário escritor, mas alegar não dispor de tempo para a escrita.
Uma das ações do projeto Vieira Global, acima aludido, é a edição da súmula dos principais escritos do orador-escritor em várias línguas, estando já sobre a mesa uma quinzena de idiomas.
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Mas, qual é o panorama da obra completa vieirina?
A direção geral da edição é de José Eduardo Franco e Pedro Calafate. São trinta volumes organizados em quatro tomos – Epistolografia, Parenética, Profética, Varia, com as devidas anotações e a conveniente atualização.
O TOMO I é composto por cinco volumes, o seu coordenador geral é Carlos Maduro e é dedicado à EPISTOLOGRAFIA.
O volume I contém Cartas Diplomáticas e é coordenado por Carlos Maduro; o volume II contém Cartas da Missão / Cartas da Prisão e é coordenado por Miguel Real; o volume III contém Cartas de Roma e é coordenado por Ana Leal Faria; o volume IV contém Cartas de Lisboa / Cartas da Baía e é coordenado por Mary Del Priore e Paulo de Assunção; e o volume V contém Cartas Políticas e Papéis Vários e é coordenado por Ana Lúcia Oliveira.
O TOMO II é composto por quinze volumes, tem a coordenação geral de João Francisco Marques e é dedicado à PARENÉTICA (a maioria sermões, mas também outros discursos).
O volume I contém Sermões do Advento, do Natal e da Epifania e é coordenado por João Francisco Marques; o VOLUME II contém Sermões da Quaresma I e é coordenado por Aida Lemos e Micaela Ramon; o VOLUME III contém Sermões da Quaresma II e é coordenado por Luís Filipe Silvério Lima; o VOLUME IV contém Sermões da Quaresma e da Semana Santa e é coordenado por Valmir Francisco Muraro; o VOLUME V contém Sermões da Páscoa e do Pentecostes e é coordenado por Márcio Garcia; o VOLUME VI contém Sermões Eucarísticos e é coordenado por Alcir Pécora; o VOLUME VII contém Sermões de Nossa Senhora e é coordenado por João Adolfo Hansen; o VOLUME VIII contém Sermões do Rosário – Maria Rosa Mística I e é coordenado por Paulo Abreu e Carlos Maduro; o VOLUME IX contém Sermões do Rosário – Maria Rosa Mística II e é coordenado por Ernesto Rodrigues; o VOLUME X contém Sermões Hagiográficos I, ou Sermões dos Santos, e é coordenado por Carlota Urbano, José Carlos Lopes de Miranda e Margarida Miranda; o VOLUME XI contém Sermões Hagiográficos II, ou Sermões dos Santos, e é coordenado por David Sampaio e Martinho Soares; o VOLUME XII contém Sermões de São Francisco Xavier e é coordenado por Nelson Veríssimo; o VOLUME XIII contém Sermões de Incidência Política e é coordenado por Luís Machado de Abreu; o VOLUME XIV contém Sermões Fúnebres e é coordenado por João Francisco Marques; e o VOLUME XV contém Sermões e Discursos Vários e é coordenado por Fernando Cristóvão.
O TOMO III é composto por seis volumes, tem a coordenação geral de Pedro Calafate e é dedicado à PROFÉTICA.
O VOLUME I contém a História do Futuro e é coordenado por Pedro Calafate; o VOLUME II contém a Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício e é coordenado por Paulo Borges; o VOLUME III contém a Apologia das Coisas Profetizadas e é coordenado por Adma Muhana; o VOLUME IV contém Autos do Processo de Vieira na Inquisição e é coordenado por Adma Muhana; o VOLUME V contém A CHAVE DOS PROFETAS (Clavis Prophetarum), Livro I, tradução de António Guimarães Pinto; e o VOLUME VI contém A CHAVE DOS PROFETAS (Clavis Prophetarum), Livros II e III, tradução de António Guimarães Pinto.
O TOMO IV é composto por quatro volumes, é seu coordenador geral José Eduardo Franco e é intitulado de VARIA, pois contém textos de índole diversa.
O VOLUME I contém Escritos Políticos e é coordenado por Pedro Barbas Homem; o VOLUME II contém Escritos sobre os Judeus e a Inquisição e é coordenado por Guilherme d’Oliveira Martins; o VOLUME III contém Escritos sobre os Índios e é coordenado por Ricardo Ventura; e o VOLUME IV contém POESIA E TEATRO é coordenado por João Bortolanza.

Como notas parentéticas, gosto de referir que o coordenador geral do Tomo I, Carlos Maduro, é professor do quadro do Agrupamento de Escolas de Santa Maria da Feira, colega de trabalho no primeiro ano de funcionamento do Agrupamento e último da minha situação de atividade docente. É de acrescentar que nos Sermões da Quaresma se incluem a Septuagésima, a Sexagésima (ficou célebre o de 31 de janeiro de 1655, sobre a Palavra de Deus) e a Quinquagésima – da preparação para Quaresma – desaparecidas do ano litúrgico, hoje integradas na primeira parte do Tempo Comum. Também os Sermões do Pentecostes incluem os do tempo depois do Pentecostes, hoje integrados na segunda parte do Tempo Comum.
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E aqui fica uma singela referência à obra daquele que Fernando Pessoa cognominou de “Imperador da Língua Portuguesa”, paladino no seu tempo e a seu modo da defesa dos direitos dos homens, tecendo a malha discursiva com a citação bíblica a partir da qual procede a um poderoso raciocínio que o conduz necessariamente à clareza concludente das demonstrações que pretende expor, através de um forte visualismo, para gáudio ou interpelação do auditório.
António Sérgio vê no discurso vieirino a índole concetista, servida pelos recursos do cultismo que implicam a agudeza do concetismo como a superabundância de metáforas, os jogos verbais e a descrição analógica, decorrente de uma imaginação material que estonteia e faz pasmar.

Segundo Margarida Vieira Mendes, a linguagem não está no discurso de Vieira principalmente “para transportar as ideias”, mas “para as tornar visíveis, imitando-lhes a configuração, como um seu simulacro material”. A estruturação linguística, que se interpenetra com a lógica mental, ganha uma espessura própria de todo palpável na sua hiperfiguração materializada nas enumerações, anáforas, reiterações, gradações, antíteses, simetrias, sinonímias, paronímias, precisão dos termos selecionados. Todos estes artifícios se orientam para a produção e visualização de conceitos que tornam o discurso tal que, ouvido ou lido de modo desatento, parece fazer-nos parar no jogo, mas, se refletido e assimilado, nos transporta para o ambiente da densidade de pensamento e para a fruição estética na pista do belo, mesmo que seja o belo horrível, bem à boa moda setecentista. É o belo horrível que é necessário recuperar hoje a ver se, neste mundo de hedonismo, exploração fraude alargada e miséria demolidora, se conseguem construir os pilares da prudência, da justiça, da coragem e da moderação sobre os quais possa assentar a esperança firmada na fé.

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