Sérgio
Luís de Carvalho, no seu livro Nas bocas
do mundo – uma viagem pela história das expressões portuguesas (2.ª
edição, de 2014),
editado pelo Grupo Planeta, oferece-nos um valioso repositório da origem de
expressões portuguesas pelas diversas épocas, povos e setores.
Assim,
resulta a discriminação por épocas, de que, a seguir e apesar de minucioso, se
dá conta do seu sumário: Época Clássica (coisas dos gregos; e
coisas dos Romanos);
Idade Média (coisas de reis, nobres e cavaleiros; coisas da
justiça e da autoridade; coisas da religião; coisas da gente comum; e coisas
das artes e das letras);
Época Moderna (coisas de reis e de cavaleiros; coisas
da religião; coisas de soldados e marinheiros; coisas de outros povos; coisas
do dia a dia; coisas das artes e das letras; coisas de Lisboa e outras terras); e Época Contemporânea (coisas
da política; coisas de militares e da autoridade policial; coisas de ofícios e
técnicas; coisas do dia a dia; coisas da cultura, da comunicação e do desporto).
Muito
embora se trate de um valioso repositório, não será estranho que infirme de
algumas imprecisões. Assim, penso oportuno proceder ao meu esclarecimento sobre
a origem da expressão “dizer uma calinada”, glosada a páginas 50. É certo que o
autor confessa ter reservas, mas esclarece, a meu ver de forma enviesada.
Refere
Sérgio de Carvalho que a expressão é sinónima de “erro grosseiro”, que poderá
ter vindo das famosas catilinárias. A explicação histórica dada sobre
catilinárias é aceitável, mas não o significado. Daqueles discursos proferidos
no Senado por Marcus Tullius Cicero (106
aC – 43 aC) contra Lucius
Sergius Catilina (108/109 aC – 62 aC), o conspirador, resulta a
palavra “catilinária”, diferente de “calinada” ou “calinice”. A palavra “catilinária”,
em razão do tom enérgico e apostrófico das célebres quatro catilinárias, significa
“acusação enérgica e eloquente; acusação pública; acusação veemente; censura; descompostura;
repreensão forte; verrina.
Já
a palavra “calinada” vem de Calino, ou seja, Calino de Éfeso (em
grego, Καλλῖνος),
poeta elegíaco grego que viveu nos primeiros anos do século VII aC, de que
restam muito poucos vestígios escritos, pelo que se trata de um nome sobre o
qual pairam muitas dúvidas dado o ambiente brumoso em que se encontra a sua
memória. Ora, brumas, dúvidas dão facilmente lugar a confusões, erros e
dislates. Como, entre os canonistas, se vulgarizou a denominação de Tício e de
Tícia para identificar o autor de caso que, apesar de dever ser superiormente tratado,
tinha de ficar no anonimato, em razão do sigilo sacramental ou extrassacramental,
também entre os comediógrafos se passou a designar por “Calino” aquele que
desempenhava papéis mais ingénuos e por “calinada” ou “calinice” o erro ou a
asneira que desperta o riso por ser ingénua, simplória ou conotativa de
parvoíce ou idiotice. Assim, “calinada” ou “calinice” significa: dito ou ação
de calino, bobagem, tolice, dislate, disparate, parvoíce ou idiotice.
Por
seu turno, o Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2.ª
edição), faz derivar
“calinada” de “Calino”, não o grego, mas o antropónimo referente a um
negociante de quadros parisiense, que, em meados do século XIX, se fez
personagem de vaudevilles,
desempenhando papéis de bobo. E, como nome masculino e adjetivo biforme,
significa: tolo ou o que diz disparates.
Por
outro lado, o mesmo dicionário refere “calínico” (do
grego, Καλλίνικος),
nome masculino que diz respeito a certo bailado que se executava ao som de
flauta, entre os gregos. Todavia, o dicionário
de grego-português e português-grego, de Isidro Pereira SI (6.ª
edição) classifica o
vocábulo (composto de Καλός, belo + νίκη, vitória) como adjetivo e nome masculino,
a significar, respetivamente: que consegue uma bela vitória, vencedor,
glorioso; e coroa de vitória. Este dicionário também apresenta Χαλινός (com
Χ e não Κ), nome
masculino, a significar: rédea, freio, amarra, atadura.
Talvez
assim se compreenda que o dicionário de Aurélio Ferreira apresente também os termos
“calino”, com o significado de freio, “calinotomia”, com o significado de
frenotomia, e “calinotómico”, como relativo à calinotomia.
Por
sua vez, o Grande Dicionário da Língua
Portuguesa (edição de 1991), de José Pedro Machado,
apresenta o termo “calino” como adjetivo, que deriva do francês “calin” e a que
dá os significados de: estúpido, bronco, que diz disparates, indolente, quente.
E, como nome masculino, derivado de Calino (antropónimo literário), dá-lhe o significado de
indivíduo parvo ou ingénuo. E apresenta outros termos como “calinada” ou
“calinice”, com as significações de “dito ou ação própria de calino”,
“patetice”, “ingenuidade”; “calínico”, com a significação de bailado grego que
se executava ao som de flauta (vd Aurélio Ferreira); “calinoplastia” e
“calinotomia”, com as significações, respetivamente, de “cirurgia plástica do
freio da língua” e “secção de um freio”.
Sendo
assim e nesta floresta de termos com origens lexicais e semânticas diferentes,
dá para entender a versatilidade e complexidade da “calinada”, “calinice”.
Resultará da brumosidade memorística em que caiu a produção do elegíaco grego?
Achar-se-á piada à “beleza” do vencedor pícaro que diz disparates (o
herói pícaro, no seu relato apenas sabe somar vitórias, muitas e estrondosas)? Um comerciante de quadros
transformou-se efetivamente num bobo? Ou será que uma língua presa tem
dificuldade proferir discurso de jeito e uma língua solta será capaz de dizer
os mais diversos e maiores disparates? E uma língua com freio postiço dirá coisa
com coisa?!
Não
esqueço que o Calino grego tem exortações sobre a guerra e certamente que
almeja as vitórias. E na guerra e nas vitórias nem tudo corre bem!
Semanticamente
similar, embora diferente de “catilinária” surge o termo “verrina” – de Caius Licinius Verres (120/119
aC – 43 aC), o
ladrão de imagens e outros tesouros artísticos – que significa “acusação,
censura ou exprobração violenta em discurso público”. Com este vêm os termos da
mesma família: “verrinar” (exprobrar ou acusar publicamente); “verrinário” (relativo
a verrina);
“verrineiro” (aquele que tem o hábito de censurar ou acusar por
meio de verrinas);
“verrinista” (pessoa que faz verrinas); e “verrinoso” (aquilo
que encerra verrina ou crítica acerba).
Mas,
como defende o autor do mencionado livro, o discurso verrinoso sofreu uma clara
evolução semântica em relação ao seu significado inicial. Hoje aplica-se o
termo “verrinoso” ao discurso “dito de forma acintosa, venenosa, com segundas
intenções”. Antigamente, pelo contrário, este discurso, para obter o seu efeito,
tinha de ser forte, sim, mas revestido de habilidade e inteligência, mas
“honesto e imparcial”. Caio Lúcio Verres era como homem de poder uma
“personagem desonesta e corrupta, mas com poderosos protetores em Roma”. Por
esta segunda circunstância, Cícero terá sido escolhido para preparar a acusação
contra o pretor da Sicília romana. Foi exatamente a honesta eloquência dos
discursos de Cícero, com ironia que baste, que levou à perda da ação judicial
por parte daquele pretor. Estes discursos passaram a ser conhecidos como as Verrinae Orationes (discursos contra
Verres), De Signis e De Supliciis.
***
Já agora, um pequeno excursus pelas personalidades em causa.
Calino de Éfeso
(~ 720 – 660 aC) era um poeta grego nascido em Éfeso,
cidade tida como o berço da civilização ocidental, na Ásia Menor. Foi um dos
primeiros poetas líricos gregos conhecidos e que viveu nos séculos VIII e VII
aC. Terá participado nas lutas da sua cidade contra os Magnésios da Ásia Menor
e contra os Cimérios, no final do século VIII aC. Escreveu, assim, poemas
patrióticos de temática bélica, onde encorajava os compatriotas na guerra
contra os inimigos, sendo considerado o criador do género. Escreveu também a
primeira elegia conhecida, supostamente para ser recitada com acompanhamento
melódico de flauta. Era honroso lutar pela sua família e pela cidade, pois a
morte bate à porta de todos.
Pelos poucos fragmentos que chegaram
até nós, foi um dos mais antigos poetas líricos gregos, fortemente influente na
poesia épica e com uma linguagem homérica. As fontes dos fragmentos dos seus
poemas são notadamente das citações de escritores posteriores e de vários
papiros conservados nos museus de Londres, Berlim e Paris.
Apesar de ser considerado o mais
antigo poeta lírico conhecido, há outros dois poetas que surgiram durante o
século VII aC, portanto, seus contemporâneos: Arquíloco de Paros e Tirteu
de Esparta, este ligado às guerras entre Esparta e Messénia, na segunda
metade do século.
Cícero (Arpino, 3 de janeiro de 106 aC – Formia,
7 de dezembro de 43 aC),
filósofo, orador, escritor, advogado e político romano, é visto como uma das
mentes mais versáteis da antiga Roma. Apresentou aos romanos as escolas
filosóficas gregas e criou o vocabulário filosófico latino, notabilizando-se
como linguista, tradutor e filósofo, orador impressionante e advogado de
sucesso. Apesar de sonhar com uma carreira política, em que não logrou grande brilhantismo,
ficou célebre pelo seu humanismo expresso nas suas produções filosóficas e
políticas, sob a forma de cartas, tratados e discursos.
Já edil, foi escolhido
pelos Sicilianos para seu defensor na causa que moveram contra Verres que os
espoliara. Produziu contra ele um discurso, a Actio Prima in Verrem e depois foi à Sicília recolher elementos
para a segunda série de discursos, a Actio
Secunda in Verrem, de que fazem parte o De Frumentis (sobre a desonestidade nas distribuições de trigo), o De Signis (sobre o roubo de obras de arte) e o De Supliciis (sobre as atrocidades de
Verres).
As Catilinárias (Orationes in Catilinam), pronunciadas contra
Catilina entre novembro e dezembro de 63, constituem uma valiosa peça de
oratória pela habilidade da argumentação, ironia nas alusões e variedade de
estilo.
Também são conhecidas as
peças oratórias em defesa de algumas personalidades, como: o Pro Murena, em defesa da nomeação de
Murena como cônsul para não dar possibilidades a Catilina; o Pro Archia, no termo do consulado de
Cícero; e o Pro Milone, em defesa de Milão, acusado de matar Clódio seu inimigo
político.
Verres (120/119 aC – 43
aC), político
romano, foi pretor na Sicília (73-71 aC). Ao deixar o cargo, foi acusado
pelos sicilianos de ter submetido tiranicamente as suas cidades a tributos
ilegais sobretudo sobre a produção de trigo (a Sicília era
uma das províncias mais ricas nesta produção) e de ter despojado os monumentos públicos e os
templos dos seus objetos de arte (Signa), além de ter infligido aos
habitantes enormes punições. Sob o processo de acusação conduzido por Cícero,
foi condenado a devolver aos sicilianos quarenta milhões de sestércios. Porém,
Verres exilou-se, a conselho do seu advogado, para Marselha, onde viveu até 43
aC, data em que foi proscrito por Marco António, por não ter devolvido as obras
de arte que Marco reclamava.
No
julgamento foi denunciado o facto de que, durante a terceira guerra Civil
contra Espártaco, usara os dinheiros de emergência e condenara à crucifixão os
escravos dos terratenentes ricos, que acusou de conspiração. Insinuara aos
terratenentes que a troco de dinheiro os escravos poderiam ser libertados e aos
terratenentes que apoiaram os escravos acusou-os de se unirem à revolta e
prendeu-os, mantendo-os na prisão até que pagassem o suborno da libertação.
Já
como questor pessoal do pretor Cneu
Cornélio Dolabela no seu governo proconsular da Província da Ásia,
colaborou no saque da província. Chamado Dolabela a Roma para enfrentar o
julgamento por iniquidade, Verres aduziu provas que o inocentavam a si, mas
condenavam o pretor. Verres assumiu, por consequência o pretorado, até que foi chamado
para a Sicília.
Catilina (108/109 aC – 62
aC), personagem envolta
em contradição e mistério, chegou a ver solicitado o seu apoio por Cícero. O facto
que persiste na documentação referente ao conjurado é a sua devassidão moral
ante os padrões romanos, perfil que Cícero nunca perdoou.
Filho de família patrícia decadente economicamente, Catilina prestou
serviço militar ao lado de Sila na guerra civil de 89 aC. Em 73, foi acusado de
violação de uma vestal, crime considerado mortal, mas de que foi absolvido. Foi
copretor em África em 68. Regressado a Roma, em 65, cai nas graças do povo
devido ao seu populismo político. Ganha a simpatia de César e o apoio dos
descontentes do sistema instalado, mas é objeto duma acusação de conspiração (não confirmada) para usurpar o poder e derrubar o senado.
Disputa as eleições para cônsul, em 64, mas perde-as para Cícero, facto de
que resulta a crescente inimizade entre os dois políticos, iniciando-se uma
feroz batalha política entre eles. No ano seguinte, perde novamente para Cícero
a eleição consular, pelo que, sob a pressão do vencedor, o senado decreta a lei
que dá poderes extraordinários ao cônsul para lidar com a ameaça do adversário.
Com as quatro catilinárias de Cícero – iniciadas com a célebre frase, Quousque
tandem abutere, Catilina, patienta nostra? – o senado ficou motivado a
ostracizar Catilina, que partiu para o exílio em Marselha, seguido por muitos
jovens. Visto ora como um revolucionário democrata ora como um louco demagogo,
recusa surpreendentemente o exílio e parte para uma guerra suicida contra
Cícero, mas com generais fracos e de pouco carácter, vindo a comprometer-se a
revolução. Cícero captura alguns dos principais partidários de Catilina e,
contra a posição de César no senado, condena-os à morte sem
julgamento. Apesar das recompensas oferecidas por Cícero, nem um único homem
abandonou Catilina, que enfrentou o exército do senado numa desproporção de
três para um e perdeu inevitavelmente a batalha.
***
Vamos lá! Por causa das sucessivas calinadas públicas, impõem-se hoje umas valentes
catilinárias, mas com o jeito de verrina. Quousque
tandem abutemini, politici, patienta nostra?
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