quinta-feira, 26 de março de 2015

Calinadas, catilinárias e verrinas

Sérgio Luís de Carvalho, no seu livro Nas bocas do mundo – uma viagem pela história das expressões portuguesas (2.ª edição, de 2014), editado pelo Grupo Planeta, oferece-nos um valioso repositório da origem de expressões portuguesas pelas diversas épocas, povos e setores.
Assim, resulta a discriminação por épocas, de que, a seguir e apesar de minucioso, se dá conta do seu sumário: Época Clássica (coisas dos gregos; e coisas dos Romanos); Idade Média (coisas de reis, nobres e cavaleiros; coisas da justiça e da autoridade; coisas da religião; coisas da gente comum; e coisas das artes e das letras); Época Moderna (coisas de reis e de cavaleiros; coisas da religião; coisas de soldados e marinheiros; coisas de outros povos; coisas do dia a dia; coisas das artes e das letras; coisas de Lisboa e outras terras); e Época Contemporânea (coisas da política; coisas de militares e da autoridade policial; coisas de ofícios e técnicas; coisas do dia a dia; coisas da cultura, da comunicação e do desporto).
Muito embora se trate de um valioso repositório, não será estranho que infirme de algumas imprecisões. Assim, penso oportuno proceder ao meu esclarecimento sobre a origem da expressão “dizer uma calinada”, glosada a páginas 50. É certo que o autor confessa ter reservas, mas esclarece, a meu ver de forma enviesada.
Refere Sérgio de Carvalho que a expressão é sinónima de “erro grosseiro”, que poderá ter vindo das famosas catilinárias. A explicação histórica dada sobre catilinárias é aceitável, mas não o significado. Daqueles discursos proferidos no Senado por Marcus Tullius Cicero (106 aC – 43 aC) contra Lucius Sergius Catilina (108/109 aC – 62 aC), o conspirador, resulta a palavra “catilinária”, diferente de “calinada” ou “calinice”. A palavra “catilinária”, em razão do tom enérgico e apostrófico das célebres quatro catilinárias, significa “acusação enérgica e eloquente; acusação pública; acusação veemente; censura; descompostura; repreensão forte; verrina.
Já a palavra “calinada” vem de Calino, ou seja, Calino de Éfeso (em grego, Καλλῖνος), poeta elegíaco grego que viveu nos primeiros anos do século VII aC, de que restam muito poucos vestígios escritos, pelo que se trata de um nome sobre o qual pairam muitas dúvidas dado o ambiente brumoso em que se encontra a sua memória. Ora, brumas, dúvidas dão facilmente lugar a confusões, erros e dislates. Como, entre os canonistas, se vulgarizou a denominação de Tício e de Tícia para identificar o autor de caso que, apesar de dever ser superiormente tratado, tinha de ficar no anonimato, em razão do sigilo sacramental ou extrassacramental, também entre os comediógrafos se passou a designar por “Calino” aquele que desempenhava papéis mais ingénuos e por “calinada” ou “calinice” o erro ou a asneira que desperta o riso por ser ingénua, simplória ou conotativa de parvoíce ou idiotice. Assim, “calinada” ou “calinice” significa: dito ou ação de calino, bobagem, tolice, dislate, disparate, parvoíce ou idiotice.
Por seu turno, o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2.ª edição), faz derivar “calinada” de “Calino”, não o grego, mas o antropónimo referente a um negociante de quadros parisiense, que, em meados do século XIX, se fez personagem de vaudevilles, desempenhando papéis de bobo. E, como nome masculino e adjetivo biforme, significa: tolo ou o que diz disparates.
Por outro lado, o mesmo dicionário refere “calínico” (do grego, Καλλίνικος), nome masculino que diz respeito a certo bailado que se executava ao som de flauta, entre os gregos. Todavia, o dicionário de grego-português e português-grego, de Isidro Pereira SI (6.ª edição) classifica o vocábulo (composto de Καλός, belo + νίκη, vitória) como adjetivo e nome masculino, a significar, respetivamente: que consegue uma bela vitória, vencedor, glorioso; e coroa de vitória. Este dicionário também apresenta Χαλινός (com Χ e não Κ), nome masculino, a significar: rédea, freio, amarra, atadura.
Talvez assim se compreenda que o dicionário de Aurélio Ferreira apresente também os termos “calino”, com o significado de freio, “calinotomia”, com o significado de frenotomia, e “calinotómico”, como relativo à calinotomia.
Por sua vez, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (edição de 1991), de José Pedro Machado, apresenta o termo “calino” como adjetivo, que deriva do francês “calin” e a que dá os significados de: estúpido, bronco, que diz disparates, indolente, quente. E, como nome masculino, derivado de Calino (antropónimo literário), dá-lhe o significado de indivíduo parvo ou ingénuo. E apresenta outros termos como “calinada” ou “calinice”, com as significações de “dito ou ação própria de calino”, “patetice”, “ingenuidade”; “calínico”, com a significação de bailado grego que se executava ao som de flauta (vd Aurélio Ferreira); “calinoplastia” e “calinotomia”, com as significações, respetivamente, de “cirurgia plástica do freio da língua” e “secção de um freio”.
Sendo assim e nesta floresta de termos com origens lexicais e semânticas diferentes, dá para entender a versatilidade e complexidade da “calinada”, “calinice”. Resultará da brumosidade memorística em que caiu a produção do elegíaco grego? Achar-se-á piada à “beleza” do vencedor pícaro que diz disparates (o herói pícaro, no seu relato apenas sabe somar vitórias, muitas e estrondosas)? Um comerciante de quadros transformou-se efetivamente num bobo? Ou será que uma língua presa tem dificuldade proferir discurso de jeito e uma língua solta será capaz de dizer os mais diversos e maiores disparates? E uma língua com freio postiço dirá coisa com coisa?!
Não esqueço que o Calino grego tem exortações sobre a guerra e certamente que almeja as vitórias. E na guerra e nas vitórias nem tudo corre bem!
Semanticamente similar, embora diferente de “catilinária” surge o termo “verrina” – de Caius Licinius Verres (120/119 aC – 43 aC), o ladrão de imagens e outros tesouros artísticos – que significa “acusação, censura ou exprobração violenta em discurso público”. Com este vêm os termos da mesma família: “verrinar” (exprobrar ou acusar publicamente); “verrinário” (relativo a verrina); “verrineiro” (aquele que tem o hábito de censurar ou acusar por meio de verrinas); “verrinista” (pessoa que faz verrinas); e “verrinoso” (aquilo que encerra verrina ou crítica acerba).
Mas, como defende o autor do mencionado livro, o discurso verrinoso sofreu uma clara evolução semântica em relação ao seu significado inicial. Hoje aplica-se o termo “verrinoso” ao discurso “dito de forma acintosa, venenosa, com segundas intenções”. Antigamente, pelo contrário, este discurso, para obter o seu efeito, tinha de ser forte, sim, mas revestido de habilidade e inteligência, mas “honesto e imparcial”. Caio Lúcio Verres era como homem de poder uma “personagem desonesta e corrupta, mas com poderosos protetores em Roma”. Por esta segunda circunstância, Cícero terá sido escolhido para preparar a acusação contra o pretor da Sicília romana. Foi exatamente a honesta eloquência dos discursos de Cícero, com ironia que baste, que levou à perda da ação judicial por parte daquele pretor. Estes discursos passaram a ser conhecidos como as Verrinae Orationes (discursos contra Verres), De Signis e De Supliciis.
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Já agora, um pequeno excursus pelas personalidades em causa.
Calino de Éfeso (~ 720 – 660 aC) era um poeta grego nascido em Éfeso, cidade tida como o berço da civilização ocidental, na Ásia Menor. Foi um dos primeiros poetas líricos gregos conhecidos e que viveu nos séculos VIII e VII aC. Terá participado nas lutas da sua cidade contra os Magnésios da Ásia Menor e contra os Cimérios, no final do século VIII aC. Escreveu, assim, poemas patrióticos de temática bélica, onde encorajava os compatriotas na guerra contra os inimigos, sendo considerado o criador do género. Escreveu também a primeira elegia conhecida, supostamente para ser recitada com acompanhamento melódico de flauta. Era honroso lutar pela sua família e pela cidade, pois a morte bate à porta de todos.
Pelos poucos fragmentos que chegaram até nós, foi um dos mais antigos poetas líricos gregos, fortemente influente na poesia épica e com uma linguagem homérica. As fontes dos fragmentos dos seus poemas são notadamente das citações de escritores posteriores e de vários papiros conservados nos museus de Londres, Berlim e Paris.
Apesar de ser considerado o mais antigo poeta lírico conhecido, há outros dois poetas que surgiram durante o século VII aC, portanto, seus contemporâneos: Arquíloco de Paros e Tirteu de Esparta, este ligado às guerras entre Esparta e Messénia, na segunda metade do século.
Cícero (Arpino, 3 de janeiro de 106 aC – Formia, 7 de dezembro de 43 aC), filósofo, orador, escritor, advogado e político romano, é visto como uma das mentes mais versáteis da antiga Roma. Apresentou aos romanos as escolas filosóficas gregas e criou o vocabulário filosófico latino, notabilizando-se como linguista, tradutor e filósofo, orador impressionante e advogado de sucesso. Apesar de sonhar com uma carreira política, em que não logrou grande brilhantismo, ficou célebre pelo seu humanismo expresso nas suas produções filosóficas e políticas, sob a forma de cartas, tratados e discursos.
Já edil, foi escolhido pelos Sicilianos para seu defensor na causa que moveram contra Verres que os espoliara. Produziu contra ele um discurso, a Actio Prima in Verrem e depois foi à Sicília recolher elementos para a segunda série de discursos, a Actio Secunda in Verrem, de que fazem parte o De Frumentis (sobre a desonestidade nas distribuições de trigo), o De Signis (sobre o roubo de obras de arte) e o De Supliciis (sobre as atrocidades de Verres).
As Catilinárias (Orationes in Catilinam), pronunciadas contra Catilina entre novembro e dezembro de 63, constituem uma valiosa peça de oratória pela habilidade da argumentação, ironia nas alusões e variedade de estilo.
Também são conhecidas as peças oratórias em defesa de algumas personalidades, como: o Pro Murena, em defesa da nomeação de Murena como cônsul para não dar possibilidades a Catilina; o Pro Archia, no termo do consulado de Cícero; e o Pro Milone, em defesa de Milão, acusado de matar Clódio seu inimigo político.
Verres (120/119 aC – 43 aC), político romano, foi pretor na Sicília (73-71 aC). Ao deixar o cargo, foi acusado pelos sicilianos de ter submetido tiranicamente as suas cidades a tributos ilegais sobretudo sobre a produção de trigo (a Sicília era uma das províncias mais ricas nesta produção) e de ter despojado os monumentos públicos e os templos dos seus objetos de arte (Signa), além de ter infligido aos habitantes enormes punições. Sob o processo de acusação conduzido por Cícero, foi condenado a devolver aos sicilianos quarenta milhões de sestércios. Porém, Verres exilou-se, a conselho do seu advogado, para Marselha, onde viveu até 43 aC, data em que foi proscrito por Marco António, por não ter devolvido as obras de arte que Marco reclamava.
No julgamento foi denunciado o facto de que, durante a terceira guerra Civil contra Espártaco, usara os dinheiros de emergência e condenara à crucifixão os escravos dos terratenentes ricos, que acusou de conspiração. Insinuara aos terratenentes que a troco de dinheiro os escravos poderiam ser libertados e aos terratenentes que apoiaram os escravos acusou-os de se unirem à revolta e prendeu-os, mantendo-os na prisão até que pagassem o suborno da libertação.
Já como questor pessoal do pretor Cneu Cornélio Dolabela no seu governo proconsular da Província da Ásia, colaborou no saque da província. Chamado Dolabela a Roma para enfrentar o julgamento por iniquidade, Verres aduziu provas que o inocentavam a si, mas condenavam o pretor. Verres assumiu, por consequência o pretorado, até que foi chamado para a Sicília.
Catilina (108/109 aC – 62 aC), personagem envolta em contradição e mistério, chegou a ver solicitado o seu apoio por Cícero. O facto que persiste na documentação referente ao conjurado é a sua devassidão moral ante os padrões romanos, perfil que Cícero nunca perdoou.
Filho de família patrícia decadente economicamente, Catilina prestou serviço militar ao lado de Sila na guerra civil de 89 aC. Em 73, foi acusado de violação de uma vestal, crime considerado mortal, mas de que foi absolvido. Foi copretor em África em 68. Regressado a Roma, em 65, cai nas graças do povo devido ao seu populismo político. Ganha a simpatia de César e o apoio dos descontentes do sistema instalado, mas é objeto duma acusação de conspiração (não confirmada) para usurpar o poder e derrubar o senado.
Disputa as eleições para cônsul, em 64, mas perde-as para Cícero, facto de que resulta a crescente inimizade entre os dois políticos, iniciando-se uma feroz batalha política entre eles. No ano seguinte, perde novamente para Cícero a eleição consular, pelo que, sob a pressão do vencedor, o senado decreta a lei que dá poderes extraordinários ao cônsul para lidar com a ameaça do adversário.
Com as quatro catilinárias de Cícero – iniciadas com a célebre frase, Quousque tandem abutere, Catilina, patienta nostra? – o senado ficou motivado a ostracizar Catilina, que partiu para o exílio em Marselha, seguido por muitos jovens. Visto ora como um revolucionário democrata ora como um louco demagogo, recusa surpreendentemente o exílio e parte para uma guerra suicida contra Cícero, mas com generais fracos e de pouco carácter, vindo a comprometer-se a revolução. Cícero captura alguns dos principais partidários de Catilina e, contra a posição de César  no senado, condena-os à morte sem julgamento. Apesar das recompensas oferecidas por Cícero, nem um único homem abandonou Catilina, que enfrentou o exército do senado numa desproporção de três para um e perdeu inevitavelmente a batalha.
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Vamos lá! Por causa das sucessivas calinadas públicas, impõem-se hoje umas valentes catilinárias, mas com o jeito de verrina. Quousque tandem abutemini, politici, patienta nostra?

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