quinta-feira, 12 de março de 2015

Em torno da 'Operação Matança da Páscoa' e coisas afins

Passa hoje, 11 de março, o 40.º aniversário de um dos golpes militares marcantes da “revolução dos cravos”, que, após a tentativa falhada do golpe das Caldas da Rainha, a 16 de março, eclodiu a 25 de abril de 1974. A revolução, abreviadamente designada como “O 25 de Abril”, foi consensualmente acarinha pela população portuguesa por haver trazido ao país a democracia política de que o povo se sentia arredado desde 1926. Era a primavera das liberdades que, segundo o texto programático do MFA (Movimento das Forças Armadas) em torno do qual ela se consubstanciou, visava a democratização, da descolonização e o desenvolvimento.
A supervisão política competia à Junta de Salvação Nacional (JSN), formada por 7 oficiais-generais e presidida pelo então general António Sebastião Ribeiro de Spínola, que celeremente foi alcandorado a Presidente da República; a vigilância pelo cumprimento do programa do MFA competia à Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas, que juntamente com a JSN e com 7 cidadãos de reconhecido mérito, integrava o Conselho de Estado. Dado que o programa do MFA era de índole genérica e se entendia que deveria ser lido de forma evolutiva e dinâmica, consoante a modificação da realidade, o Conselho de Estado deveria produzir as leis constitucionais a promulgar pelo Presidente da República, até à aprovação da Nova Constituição, e o governo provisório deveria, de acordo com o seu programa, legislar através de decreto, que o Presidente da República promulgaria para valer como lei, além de dispor dos outros instrumentos de exercício do poder executivo.
Entretanto, rapidamente se criaram as condições de desconfianças entre a coordenadora do MFA e o Presidente da República. O Primeiro-Ministro Adelino da Palma Carlos quis propor o reforço do poder do Presidente pela via da elaboração de uma Constituição Política Provisória, eleição por voto direto, universal e secreto do Presidente da República, que viria a designar um Primeiro-Ministro que teria a liberdade de formar a sua equipa ministerial (os ministros e secretários de Estado eram até agora da escolha de Spínola). Por outro lado, a eleição da Assembleia Constituinte seria retardada por mais um ano em relação ao previsto.
Tal proposta foi rejeitada pelo Conselho de Estado por ser considerada um golpe de Estado palaciano e o Presidente nomeou outro Primeiro-Ministro, o brigadeiro Vasco dos Santos Gonçalves, que formou o II Governo Provisório com personalidades escolhidas por si próprio, apenas com um veto pontual de uma que outra personalidade da parte do Presidente.
A partir daí, o processo teve avanços consideráveis a ponto de ser constituído o COPCON (comando operacional do continente) sob o comando do general Francisco da Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, sendo comandante adjunto (e, na prática, o verdadeiro comandante) o brigadeiro Nuno Romão Otelo Saraiva de Carvalho, assim como veio a ser proferida pelo Presidente da República a declaração solene do direito das colónias portuguesas à autodeterminação e à independência, abrindo-se a porta para o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau proclamada unilateralmente em Madina do Boé, em 24 de setembro do ano anterior. Depois, foram reconhecidos como interlocutores das negociações para a independência os movimentos de libertação existentes, entendendo-se como sendo o mais complexo o caso de Angola por serem três os movimentes de libertação. Depois, ainda no verão, foi decretada a nacionalização dos bancos emissores.
Entrementes, o Presidente da República continuava a sua cruzada de esclarecimento e mobilização das forças “democráticas” contra o que ele chamava de avanço das forças radicais que intentavam a instauração de uma nova ditadura (Diga-se: à esquerda). Para o efeito deslocou-se a diversas unidades militares e a vários núcleos populacionais. Chegou mesmo a fazer apelo à maioria silenciosa que deveria manifestar-se, num país que estava doente.
Como consequência do borregamento da manifestação da maioria silenciosa, que fora autorizada para o dia 28 de setembro, mas neutralizada sob a acusação de pretexto de tentativa de golpe de direita, Spínola renunciou, a 30 de setembro, à presidência da República e a JSN ficou reduzida a 3 elementos: general Francisco da Costa Gomes, almirante António Alba Rosa Coutinho e almirante José Batista Pinheiro de Azevedo – que, depois de alguma hesitação, designaram Presidente da República o General Francisco da Costa Gomes, que se manteve na chefia das forças armadas. Depois, foi reconstituída a JSN e constituído o III governo provisório sob a presidência do ora general Vasco Gonçalves. A par disto, foram presas cerca de 300 pessoas, incluindo governantes do Estado Novo, ex-agentes da PIDE/DGS e figuras conotadas à direita como o jornalista Artur Agostinho e o advogado José Miguel Júdice.
Todavia, a coordenadora do MFA resistiu à constituição de um Conselho Superior de Revolução, sugerido por alguns e manteve o Conselho de Estado com a composição e poderes com que fora concebido. Entretanto, várias entidades eram recorrentemente acusadas de sabotagem económica, alguns acharam melhor exilar-se e a progressão do regime parecia caminhar mais à esquerda. Acabou por formar-se um grupo de militares sob a designação de Conselho dos Vinte que muito frequentemente se reunia e pronunciava sobre a situação político-militar, vigiando o avanço da revolução e caminhando para a exigência da institucionalização do MFA, que chegou a constituir-se como Movimento de Libertação de Portugal, vindo inclusivamente a pronunciar-se pela bondade da unicidade sindical.
Os acontecimentos de bastidores ficaram marcados por um projeto de lei constitucional (a ser submetido ao Conselho de Estado), de pendor ultrarradical, datado de 13 de dezembro de 1974, que determinava a possibilidade da prisão automática, por um período que poderia ir até seis anos, de um vastíssimo números de alegados fascistas, a começar por todos os governantes do Estado Novo, bem como de empresários suspeitos de sabotagem económica.
A maior parte das personalidades contactadas pelo Expresso (vd Revista do Expresso, de 7 de março) não se lembra do documento, que nunca terá sido presente ao Conselho de Ministros (nem teria de ser, por se tratar de lei com valor reforçado, lei constitucional). Porém, lembravam-se dele o coronel Gonçalves da Costa, chefe de gabinete do Ministro Melo Antunes, que achou o documento kafkiano, e Maria João Seixas, então uma das secretárias do então Conselheiro de Estado Vítor Alves. Maria João não sabe quem fez chegar o projeto ao gabinete do Conselheiro de Estado, mas lembra-se de que este mandara que enviasse uma cópia a Galvão Teles para que desse um parecer. Este causídico ficou aterrado com a leitura, mas, como não era especialista em direito penal, pediu ajuda ao colega José Sousa e Brito. E o projeto abortou. Vasco Lourenço lembra-se de que fora apreciado em Conselho de Estado, mas foi remetido para a gaveta.
Como contrapartida surgiu, por sugestão daqueles juristas, o projeto de lei de conteúdo algo semelhante aplicável aos elementos que foram da PIDE/DGS, materializado, mais tarde, na Lei n.º 8/75, de 25 de julho.
Entretanto, a 13 de dezembro de 1974, foram presos os irmãos Agostinho e José da Silva e o almirante Sarmento Rodrigues (ex-ministro das Colónias de Salazar), da Torre Alta, presos diretamente por Vasco Gonçalves no Palácio de São Bento; e o fundador do BIP, Jorge de Brito, bem como um banqueiro do Crédito Predial Português e outro da Sociedade Financeira. A seguir, no Conselho de Ministros de 17 de dezembro, a maior parte dos ministros criticou a prisão daquelas pessoas sem culpa formada ou o aproveitamento que a imprensa fez do facto, a partir dos comunicados do gabinete do Primeiro-Ministro e do MDP/CDE. Vasco Gonçalves argumentou dizendo que “aquelas medidas em qualquer momento teriam de ser tomadas” e Álvaro Cunhal declarou não fazer qualquer objeção àquelas medidas nem à forma como foram tomadas, já que “há uma opinião pública que não só não ficou alarmada, mas entusiasmada” (Algo que me faz lembrar processos da atualidade e alguns segmentos discursivos ditos e escritos por juízes hoje, num Estado já não de revolução!).
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Neste contexto de radicalização, surgiram rumores da existência duma lista de pessoas a abater por ocasião da Páscoa de 1975. É ‘A Matança da Páscoa’, também conhecida por “Operação Matança da Páscoa”, referida a uma operação militar, alegadamente de preparação de um golpe de estado de índole comunista no Portugal de 1975, com o apoio da União Soviética, que passaria pelo assassinato de várias pessoas contrárias ao alinhamento com Moscovo. Entre elas, incluir-se-iam 500 oficiais e 1000 civis apoiantes do ex-Presidente António de Spínola.
Com efeito, a 8 de março daquele ano, numa reunião em Madrid, na rua Yuan Bravo, domicílio de Barbieri Cardoso, com a presença do próprio Barbieri, do comandante Jorge Braga, Jorge Jardim, primeiros-tenentes Rolo e Nuno Barbieri, o engenheiro Santos e Castro prestou a informação de que o Chefe do Governo Espanhol, Arias Navarro, lhe tinha indicado que se iria produzir “A Matança da Páscoa”.
No mesmo dia, Spínola é avisado pelos serviços secretos espanhóis e franceses de que está em marcha a operação “A Matança da Páscoa”, com o objetivo de neutralizar 500 oficiais do Quadro Permanente e 1000 civis que lhe eram fiéis. As organizações da extrema direita militar, através do general Tavares Monteiro, fazem-lhe chegar idêntica mensagem. Durante estes dias, circulam múltiplos boatos sobre a dita operação atribuídos quer aos serviços secretos de alguns países europeus, como a Alemanha, a Espanha e a França, quer ao KGB, quer à CODICE.
O conhecimento da operação desencadeou o golpe reativo do 11 de março.
Assim, a 9 desse mês, Spínola, convicto da veridicidade da operação resultante de plano do Partido Comunista Português, dos militares radicais do COPCON e da 5.ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas (que era a estrutura institucional responsável pela elaboração da documentação ideológica da marcha revolucionária e respetivo esclarecimento das massas), apoiados pela União Soviética, prepara as operações e conta com uma larga base de apoio militar.
No dia 10, Spínola partiu de Massamá disfarçado com barbas postiças, acompanhado da mulher, rumo à Base Aérea de Tancos, comandada pelo coronel Rafael Durão.
E, no dia 11, a partir de Tancos, onde estava pronta a força desencadeadora do golpe, dois aviões T6 e quatro helicópteros sobrevoaram e atacaram com rajadas de metralhadora o quartel do RAL 1, perto do aeroporto de Lisboa.
Como é de todos conhecido, o golpe foi dado muito rapidamente como perdido e, pouco antes das15 horas, a emissora nacional transmitiu o primeiro comunicado do gabinete do Primeiro-Ministro, que garantia que “a aliança entre o Povo e as Forças Armadas demonstrará, agora como sempre, que a revolução é irreversível”. E Spínola escapou-se de helicóptero para Talavera de La Reina, em Espanha, aonde chegou com a mulher e 15 oficiais, e, dias depois, exilou-se no Brasil.
Mais tarde, Vasco Lourenço, referindo-se à operação, defendeu não ter havido lista nenhuma, mas que tinham sido os serviços de informação (americanos ou russos) que puseram esse boato a circular com o fim de “lançar a casca de banana aos spinolistas”. Esta opinião é perfilhada também por Manuel Alfredo de Mello, afirmando que “foi estendida a casca de banana ao Spínola e os seus apaniguados caíram, deixando a retaguarda de um lado da resistência ao PCP desmantelada”. Com efeito, em 2014, aquando da publicação de documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos referentes à política externa norte-americana entre os anos 1969 e 1977, foi divulgado que Frank Carlucci e William Hyland indicavam António de Spínola como sendo, à data, o maior risco para os objetivos norte-americanos.
O falhanço do golpe deixa a via escancarada para a ala radical do Movimento das Forças Armadas, tanto ao nível militar como político. Dissolvida a JSN e o Conselho de Estado, foi criado o Conselho da Revolução (pela Lei n.º 5/75, de 14 de março), constituído exclusivamente por militares, com os poderes da JSN e do Conselho de Estado extintos e com o escopo de vigiar pela pureza da revolução. Pelo mesmo diploma constitucional foi instituída a Assembleia do Movimento das Forças Armadas, constituída por representantes dos três ramos das forças armadas, competindo ao Conselho da Revolução definir a sua composição.
Manteve-se a promessa de eleições para a Assembleia Constituinte, mas passou a discutir-se abertamente a dialética entre a via democrática (no estilo da democracia representativa de tipo ocidental) e a via revolucionária (democracia popular, de participação direta).
O Conselho da Revolução decretou a nacionalização da banca e dos seguros, de que resultou indiretamente a nacionalização da imprensa, da rádio e da televisão. A Rádio Renascença, que escapou ao abrigo do Concordata, passou por uma grave crise de funcionamento. E começou a preparar-se a nacionalização dos meios de produção, sob a égide do Presidente Costa Gomes e a ação dos IV e V Governos Provisórios. 
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Nada tem a ver a “Operação Matança da Páscoa” com a “matança da Páscoa”, de abril de 1506, em que, no cômputo de alguns dias, iniciado a 19 de abril, subjugadas pela raiva popular de Lisboa, morreram entre duas a quatro mil pessoas, na sua maioria cristãos novos, tendo o massacre sido travado pelas forças enviadas pelo rei.

O PREC faz-me lembrar o lavrador que carregou mal a besta e quer endireitar a carga em andamento. Se estava à direita, força-a para a esquerda e vice-versa; e se lhe falha a força de uma das mãos, pior. Conseguiu o desejável equilíbrio o 25 de novembro de 1975? Parece que os “aparelhos” se enferrujaram, o Estado ficou a saque e o povo perdeu a “vis” política!  

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