Ainda perto no tempo está o 13 de
março de 2013 em que o conclave elegeu para a cátedra de Pedro o cardeal
arcebispo de Buenos Aires Giorgio Mario Bergoglio, que assumiu o nome de
Francisco com o propósito de não se esquecer dos pobres, seguindo o pedido do cardeal
Cláudio Humes.
Como os demais grupos
disciplinares da Escola Secundária de Santa Maria da Feira, também o meu grupo,
o grupo 300 (Português e Francês) estava em reunião. Eu distribuíra uns bombons, alegando
como franco-atirador que do conclave em decurso iria sair o novo Papa, ao que
alguém mais atento ripostou que eu era aniversariante sexagenário (62
anos). O certo é que
no fim da reunião havia fumo branco e, passados os momentos da praxe, o então cardeal
protodiácono Jean-Louis Pierre Tauran, hoje cardeal presbítero e camerlendo, assomou
à loja principal da fachada da Basílica de São Pedro com a seguinte
proclamação: “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus Papam Eminentissimum
ac Reverendissimum Dominum, Dominum Georgium Marium Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem
Bergoglio qui sibi nomen imposuit Franciscum”.
E, logo que se organizou o cortejo pontifical, o
novo Bispo de Roma, apresentou-se ao povo a quem saudou afavelmente. Fazendo uma
explícita referência ao predecessor vivo por cuja vida e saúde rezou com a
multidão. Depois, inclinou-se perante a multidão para que rezasse por si e
lançou Urbi et Orbi a sua primeira bênção papal.
Confesso que fiquei contente com
a coincidência da sua eleição com o meu 62.º aniversário e fiquei com os olhos
postos nas suas palavras, gestos, atitudes e atividades. E, sem alinhar
acriticamente com a leitura anatematizante do passado liderado pelos dois seus
mais recentes predecessores, tenho de exprimir a minha satisfação pelos
resultados conseguidos nestes breves dois anos e pelo processo da marcha
eclesial sob a sua batuta, apesar da natural, embora supina, oposição interna.
***
Todos recordamos os problemas com
que se debateu Bento XVI sobretudo pelo ganho de volume (designadamente
a problemática da pedofilia e abuso sexual de menores por elementos do clero,
as finanças vaticanas, a inflexibilidade da Cúria Romana), pela timidez e falta de saúde do
alemão pastor (ele queixou-se da falta de forças do
corpo e do espírito)
e pelas marcas que trazia da liderança, alegadamente dogmática e persecutória que
imprimiu à Congregação da Doutrina da Fé (nomeadamente o cerco à
teologia da libertação e a alguns escritos cristológicos de teólogos).
É certo que Ratzinger tentou a
solução de problemas e encetou o combate a alguns e perspetivou reformas.
Todavia, a resistência da Cúria, as suas contradições de governança e a imagem
professoral eclipsante da sua simplicidade e bonomia tornaram exíguo o efeito
reformista e morigerador – o que levou o Pontífice à renúncia, consensualmente apreciada
pela abertura de portas que propiciou.
Veio o Papa do fim do mundo, que
impressionou pela simplicidade da indumentária e adereços, pelo tom coloquial, pelos
gestos, pela ultrapassagem de algumas pseudo-regras e pela audácia com que
passou a articular a doutrina cristológica e eclesiológica com as necessidades
do mundo são elementos marcantes do pontificado, aceitando o debate sobre problemáticas
até ao momento improváveis por evidentemente controversas e consentâneas com a
doutrina.
Este Papa, que herdou do
antecessor o Ano da Fé, cujo processo assumiu, publicou a encíclica Lumen Fidei, iniciada por Bento XVI, mas
o contudo programático do seu pontificado deve ser lido a partir da Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium, que se
esperava apenas pós-sinodal (sobre a Divina Revelação). E a Jornada Mundial da
Juventude (JMJ) do Rio de Janeiro, preparada sob a égide do Papa Ratzinger, já
foi um evento acompanhado e marcado pelo carisma do Papa Bergoglio, que está,
por sua vez, a impulsionar a JMJ de Cracóvia, a celebrar em 2016.
Mas logo a homilia da celebração
inaugural do exercício do múnus Petrino, a 19 de março de 2013, tem balizamento
já indiciante de novo período papal – o dinamismo do caminho em conjunto (daí
a importância que teve o sínodo extraordinário sobre a família, em 2014, e o
cuidado colocado na preparação do sínodo ordinário de 2015 sobe temática
similar) e a mística
da guarda (de Deus, do coração, dos irmãos e do mundo, sob o
signo de São José).
Talvez por isso Francisco tenha resolvido empreender a produção de uma
encíclica sobre a ecologia, a publicar em junho ou julho do corrente ano.
Do ponto de vista doutrinal, são
marcantes a referência recorrente a Jesus Cristo, a misericórdia e ternura de
Deus, a imagem da Igreja como casa das bem-aventuranças e de portas abertas, em
missão de saída às periferias e como que o hospital de campanha ao serviço da
humanidade ferida. Depois, vem a necessidade do enfoque tanto no Deus da
misericórdia e do perdão como no homem, sobretudo naquele que sofre a
marginalização, a opressão e o descarte; a urgência de acolher quem procura a
Igreja, de ir à procura daqueles que estão longe, de apostar no respeito da
dignidade das pessoas, na promoção dos seus direitos e no apelo ao cumprimento
dos seus deveres, pugnando pela paz e pela justiça. É preciso que os pastores,
trabalhando nas periferias e imersos na realidade, fiquem com o odor das
ovelhas.
Por outro lado, não deixa de olhar
com especial atenção aqueles e aquelas que, assumindo a radicalidade da
consagração batismal, decidiram consagrar-se de forma mais íntima e específica
ao Cristo da história e do Evangelho pela profissão dos valores evangélicos da
pobreza voluntária, da obediência inteira e da castidade perpétua – a viver em
comunidade ou no meio do mundo. E assim proclamou o Ano da Vida Consagrada, a
decorrer neste momento até ao dia 2 de fevereiro de 2016.
Para que seja anunciada com
eficácia a presença do Reino de Deus, é preciso denunciar o sistema financeiro
que impõe o deus dinheiro, enaltece a supremacia do mercado, gera a economia
que mata, avilta a sociedade, criando o mundo crescente dos cada vez mais
pobres espezinhado pelo cada vez mais pequeno círculo dos cada vez mais ricos.
Neste contexto, os cristãos têm que ser verdadeiras testemunhas do Cristo morto
e ressuscitado, que está sobretudo do lado dos pobres e doentes. Os pastores
têm de deixar a ambição carreirista, aceitar caminhar em regime sinodal,
dialogar com os líderes políticos, não se acorrentar a regimes políticos,
incrementar o diálogo ecuménico e inter-religioso, ter a coragem de interceder
junto de Deus, atravessar-se junto de todos os poderes pelo seu povo e caminhar
à frente do povo, no meio ou na retaguarda consoante as prementes necessidades
do momento do rebanho.
Mas o Papa almeja a reforma das
estruturas e articula o discurso da afabilidade com o da dureza. Quem não se
lembra, por exemplo, do discurso das quinze doenças ou tentações e pecados da
Cúria, em meu entender aplicáveis a todas as estruturas sociais, económicas e
políticas?
Escolheu um conselho de cardeais,
provindos dos diversos continentes, para com ele refletirem sobre a redefinição
da constituição da Cúria Romana; empreendeu dois momentos de renovação do sacro
colégio cardinalício, com quem concertou uma reperspetivação da sua missão.
Para colocar travão, prevenir e
combater o flagelo da pedofilia e abuso sexual de menores por parte do clero,
resolveu optar pela tolerância zero e criou a comissão com competências na
matéria.
Ao nível da justiça, economia e
finanças, tomou as seguintes medidas:
·
Por
quirógrafo de 24 de junho de 2013, e publicado a 26, estabelecimento de uma Comissão
de Inquérito para o Instituto das Obras de Religião (IOR) para o Santo Padre conhecer
melhor a posição jurídica e as atividades do Instituto, permitindo uma melhor organização
do mesmo com a missão da Igreja Universal e da Sé Apostólica, no contexto mais
geral das reformas que for oportuno realizar por parte das instituições que coadjuvam
a Sé Apostólica.
·
Por
quirógrafo de 18 de julho de 2013, publicado a 19, instituição de uma Pontifícia
Comissão de Inquérito sobre a organização da estrutura económico-administrativa
da Santa Sé.
·
Por
carta apostólica em forma de Motu Proprio:
- Jurisdição do Estado da cidade
do Vaticano em matéria penal, a 11 de julho de 2013, para “prevenir e combater
a criminalidade, favorecendo a cooperação judiciária internacional em matéria
penal”, no pressuposto de que “o bem comum está cada vez mais ameaçado pela
criminalidade transnacional e organizada, pelo uso impróprio do mercado e da
economia, bem como pelo terrorismo (na sequência da lei n.º
119, de 21 de novembro de 1987, que aprova o sistema judiciário do Estado e da Cidade
do Vaticano).
- Prevenção e combate à lavagem de
dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição
de massa, a 8 de agosto de 2013, na sequência da ação iniciada pelo Motu Proprio de Bento XVI, para a
prevenção e o combate às atividades ilegais em campo financeiro e monetário, e instituindo
a Comissão de Segurança Financeira, com
a finalidade de coordenar as Autoridades competentes da Santa Sé e do estado da
Cidade do Vaticano nas matérias enunciadas. A Autoridade de Informação Financeira
(AIF) exerce a função de vigilância
sensata das entidades que desempenham profissionalmente uma atividade financeira.
- Aprovação do novo Estatuto da
Autoridade de Informação Financeira, a 15 de novembro de 2013, reformulando o Motu Proprio “A Sé Apostólica”, de 30 de
dezembro de 2010, de Bento XVI, que estabeleceu a criação da AIF e a dotou do
seu primeiro estatuto.
- Fidelis dispensator et prudens, para a constituição de uma nova
estrutura de coordenação para os assuntos económicos da Santa Sé e do Vaticano,
a 24 de fevereiro de 2014: conselho para
a economia; secretaria para a
economia; e auditor geral.
- Transferência da Secção
Ordinária da Administração da Sé Apostólica à Secretaria para a Economia, a 8
de julho de 2014. Por conseguinte, a Administração do Património da Santa Sé já
não será dividida em secções e, no futuro, desempenhará unicamente as tarefas
que até agora dependiam da Secção
Extraordinária.
- Estatutos de novos Organismos Económicos – Estatuto
do Conselho para a Economia, Estatuto da Secretaria para a Economia e Estatuto
do ofício do Auditor Geral – a 22 de fevereiro de 2015. Define para cada
organismo a natureza e competência, natureza, funções, estrutura e pessoal.
***
Na solicitude
pelas Igrejas e pela Sociedade, Francisco envia delegados seus a diversos
lugares para a resolução de questões e celebração de efemérides, mantém vivo, atuante
e com novo elã o serviço diplomático. E ele próprio assinala com mensagens programáticas
os diversos eventos eclesiais: Urbi et
Orbi; para a Quaresma; para a Jornada Mundial da Juventude; para os dias mundiais
da Paz, das Comunicações Sociais, da Vida Consagrada, das Missões, de Oração
pelas Vocações, do Doente, do Migrante; e diversas Mensagens Pontifícias.
E,
apesar do incómodo que as viagens lhe causam, o Papa Francisco já visitou: em
2013, o Brasil (22 a 29 de julho); em, 2014, a Terra Santa (24
a 26 de maio), a
Coreia do Sul (13 a 18 de agosto); a Albânia (21
de setembro); o Parlamento
Europeu e o Conselho da Europa (25 de novembro); a Turquia (28
a 30 de novembro); e,
em 2015, o Sri Lanka e as Filipinas (12 a 19 de janeiro). E, na Itália, visitou: em
2013, a ilha de Lampedusa (8 de julho), Cagliari na ilha da Sardenha (22
de setembro) e Assis
(4
de outubro); em
2014, Cassano all’ Jonio na Calábria (21 de junho), as dioceses de Campobasso-Boiano
e Isernia-Venafro (5 de julho), Caserta (26 de julho) e o Sacrário de Redipuglia no centenário
do início da I Guerra Mundial (13 de setembro); e, em 2015, Pompeia e Nápoles
(21
de março).
Exerce o
seu magistério eclesiástico e a magistratura de acolhimento e influência, além
das mencionadas encíclica e exortação apostólica, com a alocução antes do Angelus, as audiências gerais, as
cartas, as cartas apostólicas, as constituições apostólicas, as homilias, os
discursos, as orações, as entrevistas e as pequenas mensagens através do Twitter (este na
sequência de Bento XVI).
Mimoseou os fiéis com as quase diárias homilias matinais na Domus Sanctae Marthae, onde optou por residir,
em detrimento do Palácio Apostólico, alegadamente por gostar de viver com as pessoas.
E dá, contra as expectativas de muitos, testemunho de grande amizade com Bento
XVI, que a ela corresponde mesmo publicamente, embora com muita discrição.
Procedeu
a canonizações de vários beatos, nomeadamente João XXIII e João Paulo II, a
algumas canonizações equipolentes, a beatificações como a do Servo de Deus
Paulo VI e trouxe para a ribalta a beatificação de Óscar Romero.
E a
justiça social, causa da paz e a Teologia da Libertação ganharam novo fôlego!
Só é de
esperar que toda a onda de renovação se torne imparável e alastrante, a
oposição interna seja vencível e a eficácia externa seja mais que de tom e de politicamente
correta. Que o mundo oiça e se sinta mobilizado!
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