Desde
que o mundo dos homens é mundo de homens a terra não chega para todos, não
porque seja pequena, mas porque dos homens emergem a cada passo grupos que
pretendem ser soberanos nas suas escolhas territoriais e dos recursos
disponíveis. A História é, em larga medida, a narrativa dos conflitos e das
guerras e respetiva máscara de solução – o que se agudiza quando se organizam Estados
com pretensões hegemónicas de feição imperialista.
O
próprio Antigo Testamento não é parco em cenário de guerras, escravidão,
invasões e exílios.
E,
em todas a guerras, em concomitância com as mesmas ou por consequência delas,
se perdem ingloriamente muitas vidas humanas como suas vítimas in facto esse (morrendo
em campo de batalha ou em operações de reconhecimento e apoio) ou in fieri (em razão de sequelas físicas,
psicológicas ou familiares).
Também,
por via das guerras, se perde imenso património, pois, as despesas de guerra
são incomensuráveis, mesmo para os países que se dizem neutrais. Mais:
desfazem-se ou mutilam-se pérolas irrecuperáveis da História.
A
estratégia da defesa erigiu fortificações, redutos, muralhas, atalaias,
esculcas, pontes. Porém a fúria invasora provocou a destruição, o saque, a
pilhagem e tornou escravos os prisioneiros a quem retirou a confissão de
segredos da parte dos inimigos e os seus despojos. Quando a guerra deixou de
envolver apenas os contendores, a destruição e as sequelas atingiram populações
em massa. As guerras deixaram de se desenrolar por batalhas entre militares, de
nascimento ou de conscrição, e passaram a atingir populações inteiras. E são os
vencedores quem escreve!
Portugal
tem memória do ambiente de desolação das invasões francesas e das guerras civis
(nomeadamente
entre absolutistas e liberais)
e da guerra colonial pelo sistema de guerrilha.
A
I Guerra Mundial desenvolveu a guerra química e a segunda chegou à utilização
da bomba atómica. Os bombardeamentos alternam entre o sistema massivo e o
sistema cirúrgico.
Antes,
a guerra vitimava os envolvidos e os das cercanias dos teatros de operações,
embora tivessem de ser mobilizados recursos de longe, nomeadamente víveres,
armas, animais, navios e carros e, mais tarde, os submarinos e os aviões; hoje,
a guerra assume as modalidades e os recursos mais diversos, como os
computadores e outros meios eletrónicos, o homem-bomba, o carro-bomba e o
avião-bomba, o míssil e o antimíssil. Mas a guerra deixa de se basear na
clássica indústria de guerra. Vai ao ponto de se valer da asfixia financeira de
povos inteiros, da sangria económica em nome da necessidade de resgate por via
da monstrualização das dívidas soberanas e faz crescer a aplicação de sanções
económicas a Estados e a blocos de Estados.
Se
antigamente a peste poderia ser uma gravosa consequência da guerra, hoje é a
fome, a deslocalização, os batalhões de refugiados e desenraizados.
Paralelamente,
funciona o tráfico de órgãos humanos, de pessoas (nomeadamente
mulheres e crianças),
a escravização pelo trabalho precário, por tempo excessivamente prolongado,
acima das possibilidades físicas e psicológicas do trabalhador, com salários manifestamente
baixos e indignantes. Campeia, por um lado, o silenciamento das vozes incómodas
por diversas formas (incluindo a prisão, a morte e o
encerramento de órgãos de comunicação)
e, por outro, afina-se a liberdade de expressão, mormente quando ela gera
inconveniências contra grupos significativos, que, por sua vez, reagem com
violência mortal.
Hoje,
os focos de conflito regional disseminam-se, avolumam-se. Põem-se Estados
contra as suas populações, criam-se Estados dentro de Estados sob o signo da mística
da guerra.
Dantes,
o património histórico-cultural era destruído na onda generalizada de
destruição bélica; hoje, atacam-se cirurgicamente até à destruição obras de
arte por motivos ideológicos de cariz civilizacional seletivo, como se verá a
seguir.
***
Filipe
Fialho da revista Visão, de 12 de
março, sob o título “Os artistas da barbárie”, escreve que “Em todas as guerras
– além das vidas humanas – se perdem peças irrecuperáveis da história”. Ora,
como bem refere, essa perda acontece por força de grandes embates bélicos e
ideológicos ou de pequenos conflitos. E exemplifica com “a sanha nazi em
eliminar a cultura e o povo judaicos” e com a operação dos Talibãs afegãos,
entre 1996 e 2001, que multiplicou os autos de fé e levou à dinamitação dos
budas de Bamiyan (implantados no século VI, antes da
erupção islamita) e
Ai-Khanoum, cidade fundada por Alexandre Magno no século IV aC.
Recentemente, os jihadistas, por motivos ideológico-religiosos, destruíram
mais e mais património histórico-cultural em Nimrod, Hatra e Mossul.
***
A milenar
cultura afegã é dominada pelo Islão. Não obstante, recebeu, ao longo dos
séculos, a influência do budismo e do zoroastrismo, bem como da arte
greco-romana, sobretudo a visível nos objetos da Arte Gândara lá existentes. E,
desde inícios do século XX, a arte do Afeganistão começou a utilizar técnicas
ocidentais e mesmo o exclusivo da masculinidade na autoria de obras de arte
cedeu ao destaque da produção artística da parte das mulheres.
Os monumentos
do país foram altamente danificados pelas operações de guerra. Mas a destruição
das gigantescas estátuas de Buda que existiam na província de Bamiyan foi ação
dos Talibãs por serem consideradas idólatras. Segundo a UNESCO, outros sítios
famosos ou lugares históricos incluem as cidades de Herat,Ghazni e Balkh. E o
minarete de Jam, no vale de Hari Rud, é património cultural da Humanidade.
Remonta à
Antiguidade a guerra como fenómeno constante na região onde hoje se situa o
Afeganistão. Já no século VI aC o local foi ocupado pela civilização bactriana,
formada por um povo que incorporava elementos culturais hindus, gregos e
persas. Depois, o território foi atacado por sucessivos invasores.
Em 1979, foi
a vez de a União Soviética ocupar o Afeganistão. Todavia, apesar da destruição
maciça provocada pela sustentação logística, lutas subsequentes ente as várias
fações dos Mujahidin levaram os fundamentalistas do Talibã a apropriarem-se da
maior parte do território do país. E, em 1997, os Talibãs mudaram o nome do
país de “Estado Islâmico do Afeganistão” para “Emirado Islâmico do Afeganistão”.
Nos últimos
anos, o país foi assolado pela seca, que leva à existência de inanição a
atingir entre 3 e 4 milhões de afegãos.
Como resposta
aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 às torres gémeas de Nova
Iorque e ao Pentágono, cuja autoria foi reivindicada pelo então líder da Al
Qaueda Osama Bin Laden – herói para os Talibãs – os Estados Unidos e forças
aliadas lançaram, a 7 de outubro do mesmo ano, uma campanha militar, como parte
da sua estratégia político-militar antiterrorista, para caça e aprisionamento
de suspeitos de atividades terroristas no Afeganistão, enviando-os para a base
de Guantánamo, em Cuba.
***
Mui
recentemente, o ISIS ou Daesh (o autoproclamado Estado Islâmico) demonstrou não tolerar as relíquias e monumentos
contrários ao Alcorão. Os seguidores da organização fundamentalista, tendo
proclamado, no passado mês de junho, um novo Califado, supostamente a
alargar-se do Shael à Ásia Central, sem pôr de parte a Península Hispânica,
consideram imperioso destruir tudo o que incremente a idolatria e contrarie os
ensinamentos do Livro e do profeta, sobretudo o património civilizacional
anterior à fé islâmica, o património da idade da ignorância (das trevas
ou do paganismo) anterior à
submissão dos homens e das mulheres ao Deus único, Alá, e à sua lei, a sharia.
E daí a vandalização de museus, bibliotecas e outros objetos e lugares
milenares sírios e iraquianos, alguns classificados pela UNESCO como Património
da Humanidade, apesar da indignação geral.
Embora Irina
Bokova, diretora geral da UNESCO, tenha solicitado o envolvimento do Conselho
de Segurança e do Tribunal Penal Internacional, alegando que a atuação do ISIS
constitui crime de guerra, que não pode ser silenciado, o seu pedido foi em
vão.
Ora, os
jihadistas, utilizando martelos pneumáticos e escavadoras, terraplanaram grande
parte da cidade de Nimrod (antiga capital do império assírio, no norte do Iraque), fundada no século III aC.
Antes, os fiéis
do ISIS deram cabo das esculturas do Museu da Civilização em Mossul, incluindo
um dos ex-libris da civilização assíria, os touros alados com cabeça humana (os Lamassu), com perto de 28 séculos de história. Tudo isto
constitui um “genocídio cultural”.
Também um
outro lugar mítico da velha Mesopotâmia, Hatra, a 80 quilómetros a sul de
Mossul, cujas muralhas resistiram a duas investidas das legiões romanas, terá
sucumbido aos explosivos do ISIS. Após o ataque, o Governo do Iraque pediu aos
EUA o bombardeio das posições jihadistas para preservação do património
insubstituível.
Só na Síria,
em 2014, as estatísticas da ONU, falam por si: 24 lugares de grande valor
cultural foram destruídos, 266 foram danificados e nenhum dos seis
classificados como património da humanidade escapou.
E, como
opina o citado Filipe Fialho, “a barbárie continua à solta” e com foros de
liberdade. Com os fundamentalistas sob assédio devido à ofensiva militar para
os retirar de Tikrit, o vandalismo e o saque de sítios arqueológicos pode
crescer. E a ONU continua a observar!
***
Para
concluir, aqui deixo, um pequeno excerto do Sermão histórico e panegírico, do Padre
António Vieira, nos anos da Rainha Dona Maria Francisca de Saboia, sobre o mal
da guerra:
“
[…] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das
vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela
tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, as cidades, os
castelos, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a
guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal
algum que ou não se padeça ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro: –
o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem
seguro o seu suor; o nobre não tem segura a sua honra; o eclesiástico não tem
segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos
templos e nos sacrários, não está seguro. […]”.
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