quarta-feira, 18 de março de 2015

A nova barbárie, agora sobre o Património Cultural

Desde que o mundo dos homens é mundo de homens a terra não chega para todos, não porque seja pequena, mas porque dos homens emergem a cada passo grupos que pretendem ser soberanos nas suas escolhas territoriais e dos recursos disponíveis. A História é, em larga medida, a narrativa dos conflitos e das guerras e respetiva máscara de solução – o que se agudiza quando se organizam Estados com pretensões hegemónicas de feição imperialista.
O próprio Antigo Testamento não é parco em cenário de guerras, escravidão, invasões e exílios.
E, em todas a guerras, em concomitância com as mesmas ou por consequência delas, se perdem ingloriamente muitas vidas humanas como suas vítimas in facto esse (morrendo em campo de batalha ou em operações de reconhecimento e apoio) ou in fieri (em razão de sequelas físicas, psicológicas ou familiares).
Também, por via das guerras, se perde imenso património, pois, as despesas de guerra são incomensuráveis, mesmo para os países que se dizem neutrais. Mais: desfazem-se ou mutilam-se pérolas irrecuperáveis da História.
A estratégia da defesa erigiu fortificações, redutos, muralhas, atalaias, esculcas, pontes. Porém a fúria invasora provocou a destruição, o saque, a pilhagem e tornou escravos os prisioneiros a quem retirou a confissão de segredos da parte dos inimigos e os seus despojos. Quando a guerra deixou de envolver apenas os contendores, a destruição e as sequelas atingiram populações em massa. As guerras deixaram de se desenrolar por batalhas entre militares, de nascimento ou de conscrição, e passaram a atingir populações inteiras. E são os vencedores quem escreve!
Portugal tem memória do ambiente de desolação das invasões francesas e das guerras civis (nomeadamente entre absolutistas e liberais) e da guerra colonial pelo sistema de guerrilha.
A I Guerra Mundial desenvolveu a guerra química e a segunda chegou à utilização da bomba atómica. Os bombardeamentos alternam entre o sistema massivo e o sistema cirúrgico.
Antes, a guerra vitimava os envolvidos e os das cercanias dos teatros de operações, embora tivessem de ser mobilizados recursos de longe, nomeadamente víveres, armas, animais, navios e carros e, mais tarde, os submarinos e os aviões; hoje, a guerra assume as modalidades e os recursos mais diversos, como os computadores e outros meios eletrónicos, o homem-bomba, o carro-bomba e o avião-bomba, o míssil e o antimíssil. Mas a guerra deixa de se basear na clássica indústria de guerra. Vai ao ponto de se valer da asfixia financeira de povos inteiros, da sangria económica em nome da necessidade de resgate por via da monstrualização das dívidas soberanas e faz crescer a aplicação de sanções económicas a Estados e a blocos de Estados.
Se antigamente a peste poderia ser uma gravosa consequência da guerra, hoje é a fome, a deslocalização, os batalhões de refugiados e desenraizados.
Paralelamente, funciona o tráfico de órgãos humanos, de pessoas (nomeadamente mulheres e crianças), a escravização pelo trabalho precário, por tempo excessivamente prolongado, acima das possibilidades físicas e psicológicas do trabalhador, com salários manifestamente baixos e indignantes. Campeia, por um lado, o silenciamento das vozes incómodas por diversas formas (incluindo a prisão, a morte e o encerramento de órgãos de comunicação) e, por outro, afina-se a liberdade de expressão, mormente quando ela gera inconveniências contra grupos significativos, que, por sua vez, reagem com violência mortal.
Hoje, os focos de conflito regional disseminam-se, avolumam-se. Põem-se Estados contra as suas populações, criam-se Estados dentro de Estados sob o signo da mística da guerra.
Dantes, o património histórico-cultural era destruído na onda generalizada de destruição bélica; hoje, atacam-se cirurgicamente até à destruição obras de arte por motivos ideológicos de cariz civilizacional seletivo, como se verá a seguir.
***
Filipe Fialho da revista Visão, de 12 de março, sob o título “Os artistas da barbárie”, escreve que “Em todas as guerras – além das vidas humanas – se perdem peças irrecuperáveis da história”. Ora, como bem refere, essa perda acontece por força de grandes embates bélicos e ideológicos ou de pequenos conflitos. E exemplifica com “a sanha nazi em eliminar a cultura e o povo judaicos” e com a operação dos Talibãs afegãos, entre 1996 e 2001, que multiplicou os autos de fé e levou à dinamitação dos budas de Bamiyan (implantados no século VI, antes da erupção islamita) e Ai-Khanoum, cidade fundada por Alexandre Magno no século IV aC.
Recentemente, os jihadistas, por motivos ideológico-religiosos, destruíram mais e mais património histórico-cultural em Nimrod, Hatra e Mossul.
***
A milenar cultura afegã é dominada pelo Islão. Não obstante, recebeu, ao longo dos séculos, a influência do budismo e do zoroastrismo, bem como da arte greco-romana, sobretudo a visível nos objetos da Arte Gândara lá existentes. E, desde inícios do século XX, a arte do Afeganistão começou a utilizar técnicas ocidentais e mesmo o exclusivo da masculinidade na autoria de obras de arte cedeu ao destaque da produção artística da parte das mulheres.
Os monumentos do país foram altamente danificados pelas operações de guerra. Mas a destruição das gigantescas estátuas de Buda que existiam na província de Bamiyan foi ação dos Talibãs por serem consideradas idólatras. Segundo a UNESCO, outros sítios famosos ou lugares históricos incluem as cidades de Herat,Ghazni e Balkh. E o minarete de Jam, no vale de Hari Rud, é património cultural da Humanidade.
Remonta à Antiguidade a guerra como fenómeno constante na região onde hoje se situa o Afeganistão. Já no século VI aC o local foi ocupado pela civilização bactriana, formada por um povo que incorporava elementos culturais hindus, gregos e persas. Depois, o território foi atacado por sucessivos invasores.
Em 1979, foi a vez de a União Soviética ocupar o Afeganistão. Todavia, apesar da destruição maciça provocada pela sustentação logística, lutas subsequentes ente as várias fações dos Mujahidin levaram os fundamentalistas do Talibã a apropriarem-se da maior parte do território do país. E, em 1997, os Talibãs mudaram o nome do país de “Estado Islâmico do Afeganistão” para “Emirado Islâmico do Afeganistão”.
Nos últimos anos, o país foi assolado pela seca, que leva à existência de inanição a atingir entre 3 e 4 milhões de afegãos.
Como resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 às torres gémeas de Nova Iorque e ao Pentágono, cuja autoria foi reivindicada pelo então líder da Al Qaueda Osama Bin Laden – herói para os Talibãs – os Estados Unidos e forças aliadas lançaram, a 7 de outubro do mesmo ano, uma campanha militar, como parte da sua estratégia político-militar antiterrorista, para caça e aprisionamento de suspeitos de atividades terroristas no Afeganistão, enviando-os para a base de Guantánamo, em Cuba.
***
Mui recentemente, o ISIS ou Daesh (o autoproclamado Estado Islâmico) demonstrou não tolerar as relíquias e monumentos contrários ao Alcorão. Os seguidores da organização fundamentalista, tendo proclamado, no passado mês de junho, um novo Califado, supostamente a alargar-se do Shael à Ásia Central, sem pôr de parte a Península Hispânica, consideram imperioso destruir tudo o que incremente a idolatria e contrarie os ensinamentos do Livro e do profeta, sobretudo o património civilizacional anterior à fé islâmica, o património da idade da ignorância (das trevas ou do paganismo) anterior à submissão dos homens e das mulheres ao Deus único, Alá, e à sua lei, a sharia. E daí a vandalização de museus, bibliotecas e outros objetos e lugares milenares sírios e iraquianos, alguns classificados pela UNESCO como Património da Humanidade, apesar da indignação geral.
Embora Irina Bokova, diretora geral da UNESCO, tenha solicitado o envolvimento do Conselho de Segurança e do Tribunal Penal Internacional, alegando que a atuação do ISIS constitui crime de guerra, que não pode ser silenciado, o seu pedido foi em vão.
Ora, os jihadistas, utilizando martelos pneumáticos e escavadoras, terraplanaram grande parte da cidade de Nimrod (antiga capital do império assírio, no norte do Iraque), fundada no século III aC.
Antes, os fiéis do ISIS deram cabo das esculturas do Museu da Civilização em Mossul, incluindo um dos ex-libris da civilização assíria, os touros alados com cabeça humana (os Lamassu), com perto de 28 séculos de história. Tudo isto constitui um “genocídio cultural”.
Também um outro lugar mítico da velha Mesopotâmia, Hatra, a 80 quilómetros a sul de Mossul, cujas muralhas resistiram a duas investidas das legiões romanas, terá sucumbido aos explosivos do ISIS. Após o ataque, o Governo do Iraque pediu aos EUA o bombardeio das posições jihadistas para preservação do património insubstituível.
Só na Síria, em 2014, as estatísticas da ONU, falam por si: 24 lugares de grande valor cultural foram destruídos, 266 foram danificados e nenhum dos seis classificados como património da humanidade escapou. 
E, como opina o citado Filipe Fialho, “a barbárie continua à solta” e com foros de liberdade. Com os fundamentalistas sob assédio devido à ofensiva militar para os retirar de Tikrit, o vandalismo e o saque de sítios arqueológicos pode crescer. E a ONU continua a observar!
***
Para concluir, aqui deixo, um pequeno excerto do Sermão histórico e panegírico, do Padre António Vieira, nos anos da Rainha Dona Maria Francisca de Saboia, sobre o mal da guerra:
[…] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, as cidades, os castelos, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que ou não se padeça ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro: – o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a sua honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro. […]”.


Sem comentários:

Enviar um comentário