domingo, 1 de março de 2015

Sobre os direitos do consumidor

Recebi há dias, por mão caridosa, que agradeço, a informação de que “o consumidor pode recusar pagar o couvert que habitualmente os restaurantes colocam na mesa dos clientes, sem ser pedido, mesmo que seja consumido”.
A informação transcreve a conclusão a que chegou o presidente da apDC (associação portuguesa de Direito do Consumo) no estudo que fez da matéria com base na lei de defesa do consumidor.
Confesso que fiquei com algum contentamento, já que, por vezes, esse couvert que o restaurante já colocou nas mesas ou que disponibiliza, mal o cidadão consumidor se senta, tem bom aspeto, é apetecível, mas representa um ónus que nem sempre estamos dispostos a pagar.
No entanto, tirei-me do comodismo da informação, deixei-me levar pela curiosidade e fui ler o diploma legal em causa e confesso que concordo com o ilustre presidente da apDC apenas em parte, mas fiquei com a pedra no sapato contra os nossos governantes em geral que propõem leis razoáveis, por vezes, mas que não cumprem e não fazem cumprir.
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A disposição legal invocada é o n.º 4 do artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (que revoga a Lei n.º 29/81, de 22 de agosto), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 47/2014, de 31 de julho, que a republica.
O art.º 9.º, compendiando as disposições sobre o “direito à proteção dos interesses económicos”, começa por reconhecer o direito do consumidor à proteção dos seus interesses económicos, com base na igualdade material dos intervenientes, lealdade e boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos. 
Para prevenir abusos decorrentes da pré-elaboração de contratos, impõe-se ao fornecedor de bens e ao prestador de serviços: “a redação clara e precisa, em carateres facilmente legíveis, das cláusulas contratuais gerais, incluindo as inseridas em contratos singulares; e à não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor”. E, caso estas disposições não sejam observadas, aquelas entidades atrás nomeadas ficam abrangidas pelo “regime das cláusulas contratuais gerais”.
Já aqui me apetece perguntar como é possível como é que a Banca e as Seguradoras usem e abusem de cláusulas escritas com carateres de mínima visibilidade e/ou cláusulas restritivas com vista à celebração de contratos adicionais, com mais encargos para os consumidores.
Por sua vez, o n.º 4 deste artigo (o que mais nos interessa) dispõe:
O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa”. 
E é exatamente esta disposição, não exclusivamente dirigida à restauração, mas a ela aplicável, que nos interessa discutir.
Entendo que o consumidor tem o direito (provavelmente, também o dever, para não o tomarem por ingénuo ou colaborador à força) de não pagar o couvert que, antecipadamente ou sem ele o solicitar, lhe seja colocado na mesa, desde que não o consuma.
Já algumas vezes me incluíram na conta da refeição essas coisas que não comi, porque não pedi nem me apeteceram. Por isso, não paguei e não me que obrigaram a pagar. Até me recordo que, num determinado dia, entrei num restaurante com outras pessoas, tomámos a refeição e não fomos previamente à busca do aperitivo que não estava na mesa, mas num lugar disponível comum aonde os comensais teriam de se deslocar e retirar. Sabíamos que isso custaria um euro por pessoa. Quando alguém se prontificou a pagar a conta – éramos três pessoas, das quais eu era mais conhecida – tinham incluído os 3 euros pelos aperitivos. Quando respondemos que não tínhamos consumido, só perguntaram se nem eu tinha comido. Mas não pagámos. E nunca mais lá voltei.
Porém, quando acontece colocarem o couvert e eu me disponibilizo a comer, disponibilizo-me a pagar, a menos que me digam que é ou foi oferta da casa – o que tem acontecido com alguma frequência.
Parece-me que falar aqui de contrato em serviço de restaurante, faz-nos resvalar numa fluidez inconsequente. Relendo o texto citado do n.º 4 do artigo 9.º, confesso não me convencer muito da bondade de consumir o couvert e não querer pagar, por duas razões: pode entender-se que o consumo signifique a concordância implícita com a proposta; ou, admitindo que tenho razão, se o prestador do serviço e fornecedor do bem me incomodar com uma ação judicial, o tribunal até me pode absolver, mas não por não dever pagar, mas pela desproporcionalidade do litígio.
Será por isso que o legislador terá deixado cair as sanções específicas explícitas para este tipo de casos?
Mesmo assim, em rigor, o couvert, entendido como o conjunto de alimentos ou aperitivos identificados na lista de produtos como couvert, fornecidos antes da refeição, só podem ser cobrados quando consumidos ou inutilizados pelo cliente – dizem outros estudiosos.
Dado, porém, o entendimento de outros de que, “desde que não solicitado”, o couvert tem de ser entendido como oferta sem que daí possa resultar a exigência de qualquer preço, antes se concebendo como uma gentileza da casa, algo de gracioso a que não corresponde eventual pagamento, o legislador, através da portaria n.º 215/2011, de 31 de maio, estipula que nos estabelecimentos de restauração ou de bebidas deve existir, ao dispor dos clientes, uma lista de preços, obrigatoriamente redigida em português, com a indicação da composição e preço do couvert, quando existente (vd art.º 15.º /1 alínea a).
Coisa análoga se diga do custo de serviço, que não pode ser cobrado se não estiver estipulado previamente. Já não sei se se pode proibir o consumidor cliente de deixar espontaneamente gorjeta ao representante in loco do prestador do serviço. Confesso que é coisa que não me apetece pagar, sobretudo se me sinto como que solicitado ou obrigado.
Depois, como é que se recusa o pagamento do couvert comestível/bebível e se assegura que a lei portuguesa é omissa quanto ao serviço de um análogo couvert de música ao vivo, embora a mencionada Lei n.º 4/96 estabeleça o dever de informação detalhada ao consumidor dos preços de bens e serviços disponíveis (vd art.º 8.º / 1-8).
***
Mas o n.º 4 do art.º 9.º da Lei de Defesas do Consumidor tem pleno cabimento quanto à remessa de bens por correio ao potencial cliente – sem ter havido encomenda ou solicitação – sob condição de o destinatário pagar se quiser ficar com o bem, mas o devolver, caso não pretenda aceitar a aquisição. Aqui, sim, o consumidor – tenho seguido essa prática – não é obrigado a pagar, a devolver ou a conservar (se o vierem visitar com vista à restituição). Não solicitou, não paga, nem devolve, nem conserva. Pagar, devolver, conservar implicam sempre custos.
Ora, “[não cabe ao consumidor] o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa”.
Já no caso do couvert comestível / bebível, perecimento ou deterioração da coisa consistirá em comer e/ou beber? Porque não em cair da mesa, por exemplo, ou partir-se o cálice?
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Porém, aquilo que mais me incomoda é a hipocrisia dos homens que fazem esta lei (aliás como noutros casos), mas que não tiram as consequências que dela deveriam tirar. Leiam-se, da citada Lei de Defesa do Consumidor, o art.º 6.º (direito à formação e à educação) e o art.º 7.º (direito à informação em geral).
Destaco, do art.º 6.º, o seguinte:
Incumbe ao Estado a promoção de uma política educativa para os consumidores, através da inserção nos programas e nas atividades escolares, bem como nas ações de educação permanente, de matérias relacionadas com o consumo e os direitos dos consumidores…
“Incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais desenvolver ações e adotar medidas tendentes à formação e à educação do consumidor, designadamente através de: 
“Concretização, no sistema educativo, em particular no ensino básico e secundário, de programas e atividades de educação para o consumo; “(…);
“Promoção de uma política nacional de formação de formadores e de técnicos especializados na área do consumo. (…)”.
Quais os programas escolares ou as atividades que se destinam a esta educação e formação? Qual a disciplina criada para o efeito ou quais as disciplinas que podem e devem abordar estes temas no ensino básico e no ensino secundário? É que não basta legislar, como não basta dizer que à escola cabe responder a estes problemas levantados pela sociedade ou remeter temas desta importância para a chamada transversalidade, clamando que é matéria de todas as disciplinas (o que se aduziu para a eliminação da formação cívica).
E de quantos formadores e técnicos especializados nesta área dispõe o país?
Por seu turno,
o artigo 7.º , entre outras coisas, dispõe o seguinte:
“Incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais desenvolver ações e adotar medidas tendentes à informação em geral do consumidor, designadamente através de: “(…)
Criação de serviços municipais de informação ao consumidor
Constituição de conselhos municipais de consumo, com a representação, designadamente, de associações de interesses económicos e de interesses dos consumidores; (…)”.
Bem gostava de saber quantos municípios dispõem de serviços eficazes de informação ao consumidor ou quantos os municípios que não têm conselhos municipais de consumo constituídos e a funcionar.

De resto, dispomos de leis, decretos e portarias suficientes para encher o Diário da República, mas sem consequências sérias no fornecimento de bens e prestação de serviços.

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