Recebi há dias, por mão caridosa,
que agradeço, a informação de que “o consumidor pode recusar pagar o couvert que habitualmente os restaurantes
colocam na mesa dos clientes, sem ser pedido, mesmo que seja consumido”.
A informação transcreve a
conclusão a que chegou o presidente da apDC (associação
portuguesa de Direito do Consumo) no estudo que fez da matéria com base na lei de
defesa do consumidor.
Confesso que fiquei com algum
contentamento, já que, por vezes, esse couvert
que o restaurante já colocou nas mesas ou que disponibiliza, mal o cidadão consumidor
se senta, tem bom aspeto, é apetecível, mas representa um ónus que nem sempre
estamos dispostos a pagar.
No entanto, tirei-me do comodismo
da informação, deixei-me levar pela curiosidade e fui ler o diploma legal em
causa e confesso que concordo com o ilustre presidente da apDC apenas em parte,
mas fiquei com a pedra no sapato contra os nossos governantes em geral que
propõem leis razoáveis, por vezes, mas que não cumprem e não fazem cumprir.
***
A disposição legal invocada é o
n.º 4 do artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (que
revoga a Lei n.º 29/81, de 22 de agosto),
na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 47/2014, de 31 de julho, que a
republica.
O art.º 9.º, compendiando as
disposições sobre o “direito à proteção dos interesses económicos”, começa por
reconhecer o direito do consumidor à proteção dos seus interesses económicos,
com base na igualdade material dos
intervenientes, lealdade e boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na
vigência dos contratos.
Para prevenir abusos decorrentes da
pré-elaboração de contratos, impõe-se ao fornecedor de bens e ao prestador de
serviços: “a redação
clara e precisa, em carateres facilmente legíveis, das cláusulas contratuais
gerais, incluindo as inseridas em contratos singulares; e à não inclusão de cláusulas em contratos
singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor”. E, caso estas disposições não sejam observadas,
aquelas entidades atrás nomeadas ficam abrangidas pelo “regime das cláusulas
contratuais gerais”.
Já aqui
me apetece perguntar como é possível como é que a Banca e as Seguradoras usem e
abusem de cláusulas escritas com carateres de mínima visibilidade e/ou cláusulas
restritivas com vista à celebração de contratos adicionais, com mais encargos
para os consumidores.
Por sua
vez, o n.º 4 deste artigo (o que
mais nos interessa) dispõe:
“O
consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha
prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua
cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da
sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento
ou deterioração da coisa”.
E é exatamente esta disposição, não
exclusivamente dirigida à restauração, mas a ela aplicável, que nos interessa
discutir.
Entendo que o consumidor tem o direito (provavelmente,
também o dever, para não o tomarem por ingénuo ou colaborador à força) de não pagar o couvert que, antecipadamente ou sem ele o solicitar, lhe seja colocado
na mesa, desde que não o consuma.
Já algumas vezes me incluíram na conta da
refeição essas coisas que não comi, porque não pedi nem me apeteceram. Por isso,
não paguei e não me que obrigaram a pagar. Até me recordo que, num determinado
dia, entrei num restaurante com outras pessoas, tomámos a refeição e não fomos previamente
à busca do aperitivo que não estava na mesa, mas num lugar disponível comum
aonde os comensais teriam de se deslocar e retirar. Sabíamos que isso custaria
um euro por pessoa. Quando alguém se prontificou a pagar a conta – éramos três
pessoas, das quais eu era mais conhecida – tinham incluído os 3 euros pelos
aperitivos. Quando respondemos que não tínhamos consumido, só perguntaram se nem eu tinha comido. Mas não pagámos.
E nunca mais lá voltei.
Porém, quando acontece colocarem o couvert e eu me disponibilizo a comer, disponibilizo-me
a pagar, a menos que me digam que é ou foi oferta da casa – o que tem acontecido
com alguma frequência.
Parece-me que falar aqui de contrato em serviço
de restaurante, faz-nos resvalar numa fluidez inconsequente. Relendo o texto
citado do n.º 4 do artigo 9.º, confesso não me convencer muito da bondade de
consumir o couvert e não querer pagar,
por duas razões: pode entender-se que o consumo signifique a concordância implícita
com a proposta; ou, admitindo que tenho razão, se o prestador do serviço e
fornecedor do bem me incomodar com uma ação judicial, o tribunal até me pode
absolver, mas não por não dever pagar, mas pela desproporcionalidade do
litígio.
Será por isso que o legislador terá deixado cair
as sanções específicas explícitas para este tipo de casos?
Mesmo assim, em rigor, o couvert, entendido como o conjunto de alimentos ou aperitivos
identificados na lista de produtos como couvert,
fornecidos antes da refeição, só podem ser cobrados quando consumidos ou
inutilizados pelo cliente – dizem outros estudiosos.
Dado, porém, o entendimento de
outros de que, “desde que não solicitado”, o couvert tem de ser entendido como oferta sem que daí possa resultar
a exigência de qualquer preço, antes se concebendo como uma gentileza da casa,
algo de gracioso a que não corresponde eventual pagamento, o legislador, através
da portaria n.º 215/2011, de 31 de maio, estipula que nos estabelecimentos de
restauração ou de bebidas deve existir, ao dispor dos clientes, uma lista de
preços, obrigatoriamente redigida em português, com a indicação da composição e
preço do couvert, quando existente (vd
art.º 15.º /1 alínea a).
Coisa análoga se diga do custo de serviço, que não pode ser
cobrado se não estiver estipulado previamente. Já não sei se se pode proibir o consumidor
cliente de deixar espontaneamente gorjeta ao representante in loco do prestador do serviço. Confesso que é coisa que não me apetece
pagar, sobretudo se me sinto como que solicitado ou obrigado.
Depois, como é que se recusa o
pagamento do couvert comestível/bebível
e se assegura que a lei portuguesa é omissa quanto ao serviço de um análogo couvert de música ao vivo, embora a mencionada
Lei n.º 4/96 estabeleça o dever de informação detalhada ao consumidor dos preços
de bens e serviços disponíveis (vd art.º 8.º / 1-8).
***
Mas o
n.º 4 do art.º 9.º da Lei de Defesas do Consumidor tem pleno cabimento quanto à
remessa de bens por correio ao potencial cliente – sem ter havido encomenda ou
solicitação – sob condição de o destinatário pagar se quiser ficar com o bem,
mas o devolver, caso não pretenda aceitar a aquisição. Aqui, sim, o consumidor –
tenho seguido essa prática – não é obrigado a pagar, a devolver ou a conservar
(se o vierem visitar com vista à restituição). Não
solicitou, não paga, nem devolve, nem conserva. Pagar, devolver, conservar
implicam sempre custos.
Ora,
“[não cabe ao consumidor] o encargo da
sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento
ou deterioração da coisa”.
Já no
caso do couvert comestível / bebível,
perecimento ou deterioração da coisa consistirá em comer e/ou beber? Porque não
em cair da mesa, por exemplo, ou partir-se o cálice?
***
Porém,
aquilo que mais me incomoda é a hipocrisia dos homens que fazem esta lei (aliás como noutros casos), mas
que não tiram as consequências que dela deveriam tirar. Leiam-se, da citada Lei
de Defesa do Consumidor, o art.º 6.º (direito à formação e à educação) e o art.º 7.º (direito à informação em geral).
Destaco,
do art.º 6.º, o seguinte:
“Incumbe ao Estado a promoção de uma
política educativa para os consumidores, através da inserção nos programas e nas atividades escolares,
bem como nas ações de educação permanente, de matérias relacionadas com o
consumo e os direitos dos consumidores…
“Incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais desenvolver
ações e adotar medidas tendentes à formação e à educação do consumidor,
designadamente através de:
“Concretização, no sistema educativo, em particular no ensino básico e secundário, de programas e atividades de educação
para o consumo; “(…);
“Promoção de uma política nacional de formação de formadores e de técnicos
especializados na área do consumo. (…)”.
Quais os programas escolares ou as atividades que se
destinam a esta educação e formação? Qual a disciplina criada para o efeito ou
quais as disciplinas que podem e devem abordar estes temas no ensino básico e
no ensino secundário? É que não basta legislar, como não basta dizer que à
escola cabe responder a estes problemas levantados pela sociedade ou remeter
temas desta importância para a chamada transversalidade, clamando que é matéria
de todas as disciplinas (o que se aduziu para a eliminação da formação cívica).
E de quantos formadores e técnicos especializados nesta
área dispõe o país?
Por seu turno,
o artigo
7.º , entre outras coisas, dispõe o seguinte:
“Incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais desenvolver
ações e adotar medidas tendentes à informação em geral do consumidor,
designadamente através de: “(…)
“Criação de serviços municipais de
informação ao consumidor;
“Constituição de conselhos
municipais de consumo, com a representação, designadamente, de associações
de interesses económicos e de interesses dos consumidores; (…)”.
Bem gostava de saber quantos municípios
dispõem de serviços eficazes de informação ao consumidor ou quantos os municípios
que não têm conselhos municipais de consumo constituídos e a funcionar.
De resto, dispomos de leis, decretos e
portarias suficientes para encher o Diário
da República, mas sem consequências sérias no fornecimento de bens e
prestação de serviços.
Sem comentários:
Enviar um comentário