quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Só a demissão da Ministra da Saúde não resolve a crise no SNS

 

Na madrugada do dia 30 de agosto, chegava às redações a notícia de que a Ministra da Saúde, Marta Alexandra Fartura Braga Temido de Almeida Simões, apresentara ao primeiro-ministro o seu pedido de demissão, aduzindo não ter condições para continuar no cargo.

António Costa, referindo que, desta vez, não tinha como não aceitar o pedido, admitiu que a morte de uma grávida transferida do Hospital de Santa Maria para o Hospital de São Francisco Xavier tenha sido a “gota de água” que levou a ministra à demissão – mas não havia ausências ou falhas nas urgências em causa no Hospital de Santa Maria, nestes dias –, mas foi rápido a agradecer o trabalho e empenho da governante demissionária, nomeadamente na difícil gestão da pandemia e na preparação de documentos estruturantes para o sistema de Saúde, em especial o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que muitos dizem estar em situação caótica. Além disso, Costa adiantou que a substituição de Temido levará o seu tempo, pretendendo que a ministra se mantenha em funções para apresentar ao Conselho de Ministros a 15 de setembro os instrumentos regulamentadores do Estatuto do SNS e contribuir para a tomada de medidas de emergência e estruturantes a fim de se colmatarem as necessidades que a pandemia e a guerra puseram a nu.

Mais tarde, a opinião pública era informada de que também António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, e Maria de Fátima de Jesus Fonseca, secretária de Estado da Saúde, haviam solicitado a demissão dos respetivos cargos. Convém esclarecer que a demissão dos secretários de Estado é automática e concomitante com a do respetivo ministro (cf. CRP – Constituição da República Portuguesa, artigo 186.º, n.º 3). Porém, se esta expressão formal de pedido de demissão estiver conotada com a solidariedade ministerial, aquelas duas figuras públicas terão dificuldade em integrar o Governo com o/a novo/a ministro/a. E é pena porque Lacerda Sales foi, com raríssimas exceções, uma pedra basilar na difícil tarefa de tomada de decisões e na da ainda mais difícil de comunicação em tempos de pandemia, superando algumas das inabilidades comunicativas da Diretora-Geral da Saúde.

Consta que o primeiro-ministro enfraquecera o apoio pessoal à governante e que o Partido Socialista, a nível interno, lhe fazia muitas críticas. Mais claro é que o Presidente da República lhe fazia assíduas críticas, tendo chegado a verberar o atraso da vacinação da gripe em 2020 e a demarcar-se do programa de vacinação da covid-19 – isto, para não falar dos comentários que vem fazendo aos diplomas que promulga, de que os atinentes à Saúde não são exceção, bem como do protagonismo expresso nas suas declarações sobre saúde e virologia durante a pandemia. E já deixou recado ao sucessor, no sentido de que a gestão do SNS deve ser “mais autónoma e independente do Ministério da Saúde”, tendo-o feito a partir dum evento partidário.

As reações à demissão são, em geral, negativas: decisão súbita, mas esperada, pela incapacidade de gerir a pasta; governação nas costas dos profissionais de saúde; dificuldade de dialogar; e insuficiência das medidas para colmatar o caos das urgências dar médico de família a todos.

A ministra, secundada pelo primeiro-ministro, identificou o problema estrutural no SNS, que especificou, afirmando que a sua origem estava em medidas tomadas na década de 80 do século passado, que ninguém resolveu. É verdade que, na década de 70, se formaram médicos em excesso, se tivermos em conta a exiguidade do número de estruturas de então do SNS. Foi nessa altura que se criou o serviço médico à periferia e se começou a preconizar a medicina preventiva.

Entretanto, multiplicaram-se as estruturas do SNS: mais hospitais públicos, centros de saúde (que integraram os antigos serviços clínicos da Previdência Social), unidades de saúde familiar. Porém, por pressão internacional e da Ordem dos Médicos, diminuíram drasticamente as vagas de ingresso nos cursos de medicina e generalizou-se a apetência pelas especialidades. Por tudo e por nada, recorre-se ao especialista. E o médico de família, especialista em medicina geral e familiar, tem a especialidade mais pobre do ponto de vista social. Além disso, o acesso a ele é difícil para o cidadão comum e é-o muito mais nas férias, nas folgas e nas licenças várias, sobretudo as da parentalidade – isto, para não falar dos inúmeros milhares de cidadãos sem médico de família.

Decresceu o número de médicos e há especialidades, nomeadamente a de ginecologia e obstetrícia, em que não há pessoal suficiente.  Por outro lado, a proliferação de clínicas e hospitais privados retirou do SNS muitos profissionais, em regime de exclusividade ou em regime de acumulação, com prejuízo para o SNS. O setor privado paga bastante mais, os mais pobres não o frequentam e o escopo é faturar. O setor público paga mal e não oferece carreira atraente.

Temido diz que ninguém trabalhou para inverter a situação. Não é bem assim, porquanto se criaram mais escolas de formação médica e de medicina dentária. O próprio ex-ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, quis implantar a formação de profissionais de medicina geral e familiar, com um horizonte temporal de formação mais curto, o que levantou polémica na Ordem dos Médicos (OM), quando o problema é que não há quem nos atenda. E isso não significava que, de futuro, não continuassem a formação. E este Governo quis colmatar a falta de médicos de família com o recurso temporário a profissionais de medicina geral e familiar, o que a OM contestou.   

A ministra foi acusada de considerar criminosos os enfermeiros, quando disse não negociar com intervenientes que se subtraem à lei. Com efeito, uma greve não é decretada nem secundada por uma ordem, nem se deve estribar num fundo pecuniário alimentado por uma empresa. E disse que os médicos, além da competência técnica, precisavam de resiliência. A OM não gostou.

É óbvio que numa coisa a governante não tem razão: a queda do XXII Governo e os tempos anterior e subsequente às eleições não justificam o que se passa no SNS, pois o Governo só está em funções de gestão no caso de demissão, o que não sucedeu, e antes de o seu programa ser debatido no Parlamento, tempo muito curto (vd CRP, artigo 186.º, n.º 5). Já no caso das falhas nas urgências, Temido não tinha outra hipótese na conjuntura, a não ser autorizar horas extraordinárias ao pessoal dos quadros, contratar prestadores de serviços e recomendar a reformulação dos mapas de férias. Tudo isto foi mal aceite pela OA, que chegou a falar em escravidão no SNS e por alguns médicos que se esqueceram de que proferiram o juramento de Hipócrates, que os vincula inexoravelmente ao respeito da dignidade do doente e ao da vida humana, a menos que o juramento não passe de ritual a observar aquando da entrega da cédula.

É evidente que a mudança de ministro não resolve a situação. A única vantagem, se é que a há é a descompressão social na área da saúde, que pode beneficiar com a mudança de rostos.

De resto, o que importa é a mudança de políticas na área, que passam, nalguns casos, pela rutura a médio e longo prazo, por exemplo o estancamento da saída de profissionais do setor público para o privado, oferecendo mais regalias pecuniárias, carreira atraente e melhores equipamentos, o não recurso habitual a prestadores de serviços, o incremento da formação de mais profissionais, colocação de profissionais com formação de base a trabalhar em cuidados de saúde primários enquanto se candidatam e se formam na especialidade que pretendem e até a obrigação de os profissionais estarem durante um período razoável trabalhar, obviamente com justa remuneração, para a comunidade nacional que os formou. Entretanto, as medidas conjunturais tomadas pela ministra demissionária devem ser mantidas enquanto for necessário, tal como devem ser criados e cumpridos os instrumentos legais regulamentadores do SNS.   

É preciso tornar o SNS mais humano, mais justo e totalmente inclusivo. É preciso que os serviços de cuidados de saúde primários, além das consultas programadas, atendam o utente que surja no próprio dia. Só isso descongestionará os serviços de urgência em favor dos casos verdadeiramente urgentes. É preciso investir mais no SNS dotando os diversos hospitais do país dos equipamentos mais modernos, incluindo os de natureza robótica.

Será o futuro ministro capaz de resolver o problema do SNS a contento dos profissionais e dos cidadãos, pois são estes que justificam a existência do SNS e dos seus profissionais, por uma saúde ao alcance de todos, adversa de negócios obscenos e encarada como o exercício efetivo de um direito fundamental de todos e o cumprimento de um dever grave por todos? Veremos.

2022.08.31 – Louro de Carvalho

Morreu o político que descongelou a História do pós-guerra

 

Mikhail Sergeevich Gorbachev, o último presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou União Soviética, morreu na noite do dia 30 de agosto, aos 91 anos de idade, após severa e prolongada doença, como difundiu a agência de notícias russa RIA apoiada na informação do Hospital Central de Clínicas de Moscovo. O esforço do homem que promoveu o fim da guerra fria, para democratizar o sistema político do país e descentralizar a economia, originou a queda do regime comunista e o desmembramento da URSS em 1991.

Na segunda metade da década de 1980, as palavras glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação), em voga no regime soviético, entraram no léxico ocidental. O responsável foi justamente Gorbachev, primeiro, como secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) de 1985 a 1991 e, depois, como único presidente da União Soviética, em 1990-1991. Tendo como pano de fundo uma economia disfuncional, o seu destino político ficou traçado após o golpe da ala conservadora e a reação dos reformistas pró-liberais, liderada por Boris Ieltsin.

Em março de 1985, quando Gorbachev ascende a secretário-geral do PCUS e à liderança da União Soviética, o maior país do mundo em superfície e rival ideológico dos Estados Unidos (EUA) atravessava uma crise multifacetada. O reinado de Leonid Brejnev (1964-1982) deixou estagnado o país e com a guerra no Afeganistão. Os sucessores, Yury Andropov e Konstantin Chernenko, estavam anquilosados como o país. Em comparação com eles, o novo líder era mais jovem (54 anos) e tinha um programa cujo objetivo principal era pôr de pé a economia, para o que instaurou a modernização tecnológica com vista a aumentar a produtividade dos trabalhadores e aligeirar a burocracia. E, sob a política de glasnost, o seu Governo expandiu as liberdades de expressão e de informação e repudiou a herança do totalitarismo estalinista.

Em abril de 1986, enfrentou o desastre nuclear de Chernobyl, que negou, passados 20 anos, em artigo no Project Syndicate, tê-lo ocultado à comunidade internacional, apesar de as autoridades soviéticas só terem reconhecido o acidente dois dias depois e sob pressão das autoridades suecas.

Só um dia e meio depois o Kremlin teve conhecimento, e sem pormenores, do sucedido. Mais do que o lançamento da perestroika, o incidente talvez tenha sido a principal causa do colapso da União Soviética, cinco anos mais tarde. A catástrofe de Chernobyl constituiu um ponto de viragem histórico: houve a era anterior a Chernobyl e há a era seguinte. Mais do que qualquer outra coisa, tornou muito maior a possibilidade de liberdade de expressão na União Soviética a ponto de o sistema se ter tornado insustentável.  

Insatisfeito com a ausência de resultados, Gorbachev iniciou, em 1987, as reformas mais profundas do sistema económico e político. A nível da perestroika, promoveu a primeira democratização do sistema político com a introdução de eleições com vários candidatos para cargos partidários e governamentais, bem como o voto secreto. Porém, a perestroika a nível da economia enfrentou a resistência por parte dos burocratas do PCUS e do regime, que não queriam ceder o controlo da atividade económica do país. Mas, em 1988, Gorbachev remodela o poder legislativo e o executivo, acabando o monopólio do PCUS: para o novo parlamento bicamaral, o Congresso dos Deputados do Povo, alguns membros são escolhidos diretamente pelo povo em eleições com vários candidatos. Em 1989, o Congresso elegeu entre as suas fileiras um novo Soviete Supremo que, ao invés do antecessor, tinha poderes legislativos. E Gorbachev foi eleito seu presidente, mantendo a presidência nacional.

***

Filho de camponeses (pai russo e mãe ucraniana), Gorbachev nasceu a 2 de março de 1931, em Privolnoye, região de Stavropol, no Cáucaso do Norte. Aos 15 anos aderiu à Komsomol (Juventude Comunista) e nos quatro anos seguintes conduziu uma ceifeira-debulhadora num kolkhoz (quinta coletiva) em Stavropol. Em 1952, entrou na Faculdade de Direito de Moscovo, onde se formou em Direito em 1955. Tornou-se membro do PCUS, ocupou vários cargos na Komsomol e em organizações partidárias em Stavropol, tornando-se primeiro secretário do comité do partido em 1970. E até 1978 dirigiu essa região do sul da Rússia. Entretanto, formou-se em Economia em 1967.

Nomeado membro do Comité Central do PCUS em 1971, foi nomeado secretário do partido para a agricultura em 1978. Passados dois anos, tornou-se o membro mais novo do Politburo.

Desde o início das suas funções como secretário-geral do PCUS, marcou a diferença na política externa, ao cultivar boas relações com Margaret Thatcher, Ronald Reagan ou Helmut Kohl. Em janeiro de 1986, declarou ter proposto a redução dos armamentos e o fim das armas nucleares até ao ano 2000. Meses depois, dá-se o encontro histórico com o presidente dos EUA Ronald Reagan, em Reiquejavique, culminando, em dezembro de 1987, com a assinatura de um acordo para a destruição dos arsenais de mísseis de médio alcance com ogivas nucleares.

O degelo provocado pela perestroika repercutiu-se numa série de eventos na viragem da década. Em 1989, Gorbachev apoiou os comunistas reformistas nos países do bloco soviético. À medida que as revoluções decorreram nos países de Leste, concordou com a retirada das tropas soviéticas, bem como com a reunificação da Alemanha. Em consequência, em 1990, foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz. Contudo, não houve paz em várias repúblicas, ressaltando os conflitos entre o Azerbaijão e a Arménia, na Geórgia, no Usbequistão, entre a Inguchétia e a Ossétia do Norte, bem como a repressão das tropas soviéticas após a declaração da independência da Lituânia.

Em março de 1990, Gorbachev foi eleito pelo Congresso dos Deputados do Povo para o cargo de presidente da URSS e abriu a via para a legalização de outros partidos políticos. Mas a abertura política alimentou os nacionalismos das várias repúblicas e não foi acompanhada de um plano alternativo no atinente à economia estatal planificada, entrando esta em colapso, o que amplificou o descontentamento generalizado. Em agosto de 1991, com os Estados bálticos (Estónia, Leónia e Lituânia) e a Geórgia em secessão, os comunistas de linha dura retiveram Gorbachev e a família em prisão domiciliária, na Crimeia, enquanto se dava, em Moscovo, um golpe militar. Face às divisões entre as forças de segurança e os apoios das repúblicas, foi Boris Ieltsin a personificar a ordem e a jugular o golpe, subindo para um tanque e condenando o plano. E o projeto de reformular a União Soviética através do tratado de estados soberanos, sob um presidente, um exército e uma política externa, fracassou. Ieltsin e a Rússia, de que era o presidente, assumiram o controlo da situação e lideraram a Comunidade de Estados Independentes (CEI), com o apoio da Bielorrússia e da Ucrânia.

Disse Gorbachev que foi “o pior erro estratégico”, que aceitou para não transformar a crise numa guerra. E, em 25 de dezembro de 1991, renunciou à presidência da União Soviética, que deixou de existir nesse dia. Esta é a grande mágoa deste homem que foi casado com Raisa (uma ucraniana, que faleceu em 1999 e junto da qual vai ser sepultado) e que diz ter lutado o melhor que pôde para manter a União, mas que falhou, como disse, em entrevista canal de televisão RT (Rússia Today), aos 80 anos. E, em 1996, com a memória fresca da penúria e do colapso económico dos anos do fim da URSS, os eleitores escolheram Ieltsin nas presidenciais da Rússia, tendo atribuído ao antigo líder da URSS menos de 1% dos votos, embora Gorbachev considerasse ter recebido mais votos e que as únicas eleições justas e livres decorreram entre 1989 e 1991.

Crítico do papel da NATO, concordou com Donald Trump na asserção de que a Aliança Atlântica é obsoleta. Ressentido com a promessa quebrada do secretário de Estado norte-americano James Baker de que a NATO não expandiria “nem mais um centímetro” para leste após a reunificação alemã, contra a intervenção militar no Kosovo sem mandato da ONU, Gorbachev aplaudiu, como referia o The Washington Post, a anexação da Crimeia, em 2014, por Vladimir Putin, que agora manifesta tristeza pela sua morte.

Mas o atual líder russo foi alvo, várias vezes, dos seus reparos. Um deles é o seu papel na instauração de nova guerra fria e de nova corrida aos armamentos, em especial ao nuclear. Em outubro de 2019, tendo os EUA acusado Moscovo de desrespeitar o Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermédio e se ter retirado do acordo, escreveu estarem à vista de todos as tendências perigosas existentes, destacando duas: o desrespeito pelo direito internacional e a militarização da política mundial. E, considerando aquele tratado o pilar mais importante da estabilidade estratégica, preconiza conversações para a sua destruição não agravar a ameaça de guerra.

O homem que nos anos finais da vida se confessou social-democrata e se mostrou admirador dos escritos tardios de Lenine, reformista em vez de revolucionário, afirmou, no livro The New Russia (2015), que os soviéticos nunca conheceram o socialismo e que “os valores que enformam o socialismo são tão relevantes hoje como ontem”.

Apreciado internacionalmente, mas desvalorizado no seu país, o propulsor da glasnost e da perestroika, acabou a acreditar que o seu trabalho e os seus esforços não foram em vão, como disse, em entrevista, à Der Spiegel, a 17 de abril de 2017. Ficará para a História o juízo sobre o nome cujo falecimento suscita as condolências, os elogios (e alguns reparos) do mundo político.

2022.08.31 – Louro de Carvalho

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Ao invés do que alguns esperavam, o Papa não anunciou a renúncia

 

Concluíram-se, na tarde de 30 de agosto, os trabalhos da Reunião dos Cardeais com o Papa, iniciada no dia 29, sobre a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, que pretende a reforma de toda a administração da Cúria Romana. O encontro ocorreu em clima fraterno e contou com a presença de quase 200 cardeais, patriarcas orientais e superiores da Secretaria de Estado.

Os trabalhos em grupos linguísticos e os debates na Sala Nova do Sínodo deram lugar à discussão livre de muitos aspetos relacionados com o documento e com a vida da Igreja, enquanto a última sessão do dia 30 foi dedicada ao Ano Santo de 2025, dedicado ao tema da Esperança. E, com a celebração da Santa Missa, presidida pelo Papa Francisco, na Basílica Vaticana, concluiu-se o encontro e cada participante retornará à sua diocese ou ao seu posto na Cúria Romana.

Os cardeais presentes na reunião convocada e desejada por Francisco para refletir sobre a reforma da Cúria Romana falaram de “confronto fraterno” e “clima dialogante”. É uma Cúria que, “não pertence apenas ao Papa, mas a toda a Igreja”.

Na última tarde, Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, apresentou o Jubileu de 2025. Os dois dias de encontro viram, pela primeira vez nos quase dez anos de pontificado, quase todo o Sacro Colégio reunir-se em torno do Papa.

Como no dia 29, a sessão do último dia, contou com os cardeais, os patriarcas e os superiores da Secretaria de Estado divididos em grupos linguísticos para refletirem, seguindo a diretriz fornecida nas últimas semanas, sobre os elementos de novidade e sobre os desafios que a Praedicate Evangelium traz à Cúria Romana e à Igreja universal. Entre esses, conta-se o papel dos leigos, a transparência financeira, a sinodalidade, a estrutura de organogramas curiais, a missionariedade e o anúncio do Evangelho numa era como a atual.

O cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, comentou que é difícil apontar só um tema, porque a Praedicate Evangelium toca todas as dimensões da Igreja, do ponto de vista da estrutura e da organização da Cúria. Assim, com o diálogo entre os que vêm das Igrejas particulares e os que trabalham em Roma toca-se um pouco de tudo, o que reflete bem “a amplitude e profundidade do documento”.

O confronto entre cardeais ‘da Cúria’ e os pastores provenientes de áreas distantes do mundo, que se conheceram, alguns pela primeira vez, e compartilharam os resultados dos grupos de trabalho da tarde do dia anterior foi a fonte de maior “enriquecimento”. “O tom e a experiência são os de um encontro fraterno”. Reconhecem que trabalham juntos, mesmo que separados por quilómetros. A novidade é, segundo Czerny, colocar na mesa coisas que não são novas, mas que representam desafios e dificuldades, como a transparência financeira. Trata-se de desafios para todos, mesmo com ritmos e experiências diferentes.

O cardeal-arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, falou de “grandes passos em frente”. Boné branco na cabeça, sorriso conciliador, no intervalo dos trabalhos para o almoço, o eminente purpurado compartilhou com os media internacionais a sua satisfação pelo andamento desses dias, em que todos os purpurados se ouviram mutuamente, com muita comunhão e disponibilidade para ouvir e os recém-criados cardeais relataram as situações dos seus países. E, acima de tudo, o Santo Padre, que, apesar das dificuldades físicas de saúde, tem o coração e a alma em funcionamento pleno, encorajou os membros do Sacro Colégio a seguirem em frente.

Segundo o cardeal Fernando Filoni, Grão-Mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, impõe-se uma reforma para toda a Igreja. Disse Filoni que a última coisa que Francisco disse aos cardeais é que se abriu um processo, se começou a partir de uma base, mas não se terminou ali. O Papa sentiu-se confortado com o que ouviu e feliz porque é um processo feito em conjunto, ou seja, a Cúria não pertence ao Papa, mas a toda a Igreja, a cuja comunhão o Papa preside. Toda a Cúria, todas as dioceses concorrendo e, ao mesmo tempo, dando a sua preciosa contribuição, com sacerdotes, leigos, ideias, etc., fazem com que a Praedicate Evangelium, que é uma base, não seja expressão apenas de uma pessoa, mas pertença de toda a Igreja. 

O cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova Iorque, fala de uma “bela experiência” e de uma reunião “extraordinariamente edificante”. Segundo o purpurado nova-iorquino, feliz por este encontro aguardado com ansiedade, falaram “como amigos, como irmãos, com imensa caridade e profundo amor pela Igreja, sobre questões muito práticas”.

Certamente, entre cardeais de diferentes latitudes e longitudes, não faltaram as diferenças de pontos de vista, mas as discussões foram realizadas de forma serena e “pacífica”. O cardeal alemão Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, usou estes termos, assegurando: “Há uma vontade de trabalhar juntos. Realmente tocou-me pelo clima que se respira. Todos agradecemos ao Papa pelas suas palavras proféticas.”

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A formação, a espiritualidade da Cúria e, sobretudo, a questão dos leigos e o seu possível papel na direção de Dicastérios foram os temas sobre os quais as reflexões e discussões dos cardeais se concentraram durante a reunião a portas fechadas com o Papa sobre a Praedicate Evangelium.

No primeiro dia, após a saudação do Papa no início dos trabalhos, seguida de breve discurso do decano do Colégio Cardinalício, o cardeal Giovanni Battista Re, os cerca de 200 cardeais, patriarcas e superiores da Secretaria de Estado, reunidos na Nova Sala do Sínodo, distribuíram-se por grupos linguísticos, durante os quais foram feitas propostas, apresentadas ideias e pedidos esclarecimentos. Em seguida, foi realizada uma sessão plenária.

O tema principal foi o dos leigos em funções de liderança. Com efeito, o ponto 10 da Praedicate Evangelium – publicada a 19 de março e em vigor desde 5 de junho – afirma que “todo o cristão, em virtude do Batismo, é um discípulo-missionário, na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus”, o que não se pode deixar de ter em conta na atualização da Cúria, pelo que “a sua reforma deve prever o envolvimento de leigas e leigos, mesmo em funções de governo e de responsabilidade”. 

Sobre o tema, foram solicitados estudos aprofundados em clima de confronto sereno.

O cardeal Paolo Lojudice, arcebispo de Siena, explicou ao Vatican News:

“Quando se trabalha em pequenos grupos, é mais fácil confrontarem-se uns com os outros e dialogarem. O tema que conhecemos é o confronto aberto e sereno sobre a nova Constituição e, em particular, sobre a sua aplicação, sobre como colocá-la em prática. Nos grupos, mais do que novos elementos, tivemos a contribuição de algumas ideias... É possível que haja passagens que ajudem a compreender alguns elementos menos claros, menos evidentes, em particular o que diz respeito à presença de leigos nas funções de governo nos Dicastérios. Esta é uma porta aberta que esperamos que possa percorrer da melhor maneira possível.”

O mesmo purpurado falou de um “excelente clima” na Sala Sinodal e descreveu a reunião como um ponto de partida: “Os tempos são necessariamente longos para fazer uma reforma. O Papa preocupa-se e tem-se preocupado com isso desde o início, pois é um dos pontos centrais do pontificado... Creio que mais cedo ou mais tarde chegaremos a uma consciência diferente, onde tudo é missão e missionariedade e poderá parecer paradoxal.”

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A encerrar o encontro dos cardeais com o Papa, a Capela Papal da Basílica de São Pedro recebeu os novos cardeais e o Colégio Cardinalício para uma celebração eucarística presidida pelo próprio Pontífice, concluindo um encontro de dois dias a portas fechadas entre Francisco e os pouco menos de 200 cardeais, que aprofundou a Praedicate Evangelium

A homilia proferida pelo Santo Padre refletiu sobre uma dupla admiração: a de Paulo ante o desígnio de salvação de Deus (cf Ef 1,3-14) e a dos discípulos, incluindo o próprio Mateus, no encontro o Ressuscitado, que os enviou em missão (cf Mt 28,16-20). Dois territórios de estar em Cristo e com Cristo, onde, segundo o Bispo de Roma, “sopra forte o vento do Espírito Santo” e de onde brota o encorajamento para os cardeais saberem “maravilhar-se com o desígnio de Deus”, amando “apaixonadamente a Igreja”, prontos para servir em missão a todos os povos, missão sempre acompanhada da grata admiração pela história da salvação, através do “louvor, bênção, adoração e gratidão que reconhece a obra de Deus”. Mas, como recordou o Papa, esta admiração também pode ser experimentada de outra forma: “Desta vez, não é o próprio plano de salvação que nos encanta, mas o facto – ainda mais surpreendente – de que Deus nos envolve no seu plano: é a realidade da missão dos apóstolos com Cristo ressuscitado”.

Os onze discípulos ouviram as palavras do Ressuscitado para evangelizarem o mundo com a promessa final de “esperança e consolação: Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos”, palavras quem dois mil anos depois, “ainda têm força para fazer vibrar os nossos corações”. É uma admiração não diferente da vivida pelos cardeais reunidos agora com o Papa:

“Irmãos, esta admiração é um caminho de salvação! Que Deus a mantenha sempre viva em nós, porque nos liberta da tentação de nos sentirmos ‘à altura’, de nutrir a falsa segurança de que hoje é diferente, não como era no início, hoje a Igreja é grande, é sólida, e nos situamos nos graus eminentes da sua hierarquia. (…) Há verdade nisso, mas também tanto engano, com que o Mentiroso tenta mundanizar os seguidores de Cristo e torná-los inofensivos.”

O Papa, dirigindo-se especialmente aos 20 novos cardeais criados no recente Consistório, disse:

A Palavra de Deus hoje desperta em nós admiração de estar na Igreja, de ser Igreja! E é isso que torna atraente a comunidade dos crentes, primeiro para si e depois para todos: o duplo mistério de ser abençoado em Cristo e ir com Cristo ao mundo. Essa admiração não diminui em nós com o passar dos anos, nem diminui com o crescimento das nossas responsabilidades na Igreja. (…) Fortalece-se, torna-se mais profunda.”

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Deus queira que o processo reformista da Cúria Romana vá por diante e se replique nas Cúrias Diocesanas, de modo que a Igreja, onde quer que viva, sirva cabalmente o Reino de Deus!

2022.08.30 – Louro de Carvalho

Crise energética em Conselho Extraordinário de Ministros da UE

 

Os ministros europeus da Energia, como anunciou, a 29 de agosto, a presidência checa da União Europeia (UE), vão reunir-se num Conselho extraordinário a 9 de setembro, para debaterem uma “solução ao nível europeu” para a acentuada crise energética, exacerbada pela guerra.

Quando os preços da energia, especialmente do gás, batem máximos e a UE teme um corte no fornecimento energético russo devido à resposta europeia à guerra da Ucrânia, Jozef Síkela, ministro da Indústria e Comércio da República Checa, apontou a necessidade de “reparar o mercado energético” comunitário, sendo a solução ao nível da UE a melhor.

E o primeiro-ministro checo, Petr Fiala, frisou que “os preços elevados da energia são um problema à escala europeia, que é necessário resolver ao nível europeu”, pelo que já falou com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pois, antes do Conselho de Energia da UE, é preciso encontrar forma de ajudar pessoas e empresas, a acertar com os líderes europeus.

No mesmo dia, Ursula von der Leyen, defendeu uma “intervenção de emergência e uma reforma estrutural” no mercado da eletricidade da UE, admitindo “as limitações” da configuração atual, exacerbadas pela crise. Com efeito, na atual configuração, o mercado grossista da UE é um sistema de preços marginais, pelo que os produtores de eletricidade recebem o mesmo pela energia que vendem num dado momento, dependendo o valor final da fonte energética, com as renováveis mais baratas do que os combustíveis fósseis.

Visto que a UE depende muito das importações de combustíveis fósseis, nomeadamente vindas da Rússia, o atual contexto geopolítico levou a preços voláteis na eletricidade, além do gás.

O anúncio desta reunião extraordinária surge também quando países como Portugal adotam medidas para aliviar as faturas do gás.

Questionada pela Lusa, a Comissão Europeia defendeu, no dia 26, “medidas limitadas” no gás, em Portugal, “em termos das quantidades abrangidas”, para evitar o aumento do consumo na UE, embora saudando a proposta do Governo para alargar a regulamentação do mercado.

Está em causa a meta da redução voluntária de 15% do consumo de gás até à primavera de 2023, para aumentar o armazenamento nos Estados-membros e criar uma almofada perante eventual rutura no fornecimento russo. De facto, as tensões geopolíticas devidas à guerra na Ucrânia têm afetado o mercado energético europeu, já que a UE importa 90% do gás que consome, sendo a Rússia responsável por cerca de 45% dessas importações, em níveis variáveis entre os Estados-membros (em Portugal, em 2021, o gás russo representou menos de 10% do total importado).

O anúncio do Conselho de Ministros da Energia em referência vem alinhado com o anúncio, pela presidente da Comissão Europeia, no mesmo dia 29, de uma intervenção de emergência no setor elétrico, devido ao disparo dos preços nos últimos meses, à boleia dos preços recorde no gás natural. Na verdade, a Comissão tem estado a preparar a dita intervenção de forma a combater a escalada dos preços grossistas, contaminados pelas cotações recorde do gás natural, pois o disparo dos preços da eletricidade expõe as limitações do atual desenho de mercado, desenvolvido para circunstâncias diferentes, sendo agora necessária a reforma estrutural do mercado de eletricidade. Revelando que, dentro de duas semanas, irá ao Canadá negociar uma parceria estratégica para diversificação das fontes de aprovisionamento da UE, a Presidente da Comissão reiterou que a prioridade é “acabar com a nossa dependência dos combustíveis fósseis da Rússia”. Mas a Europa precisará de outras matérias-primas e isso “não pode criar novas dependências”, devendo a Europa “diversificar o aprovisionamento e construir laços com parceiros fiáveis”.

O anúncio de Ursula von der Leyen surge no dia em que o preço dos contratos futuros da eletricidade na Alemanha para o ano 2023 atingiu um valor recorde de 1050 euros por megawatt hora (MWh), que acabou por descer para cerca de 800 euros por MWh.

Já no dia 26, o mercado de contratos futuros de eletricidade em França colocou o preço dos contratos para 2023 acima dos 1000 euros por MWh, alimentando receios quanto à evolução da fatura de energia dos consumidores. Neste contexto, a reformulação dos mercados elétricos visará torná-los menos permeáveis à alta volatilidade dos preços do gás natural, um combustível cuja cotação nos contratos de referência na Europa (os TTF, negociados na Holanda) permanece em patamares elevados, refletindo a incerteza quando à capacidade da Europa de encontrar rapidamente novas fontes de gás que substituam o gás russo.

Embora o anúncio da presidente da Comissão Europeia não pormenorize em que consistirá a intervenção de emergência e o redesenho do mercado elétrico, cresceu o interesse da Europa por um tipo de soluções que desvincule o preço grossista da eletricidade do preço do gás.

Foi isso que Portugal e Espanha procuraram fazer com o mecanismo ibérico que entrou em vigor a 15 de junho, após receber luz verde de Bruxelas, criando um regime temporário (até maio de 2023) que estipula um custo de referência para o gás natural de forma a incentivar as centrais de ciclo combinado a praticarem preços mais baixos na venda de eletricidade à rede, o que faz baixar o preço recebido pelos restantes produtores. O mecanismo tem permitido, segundo os cálculos dos dois governos, poupanças nos preços grossistas da eletricidade de 15% a 20% face ao custo que a eletricidade teria na Península Ibérica se não existisse o mecanismo. Por exemplo, os preços médios grossistas para 30 de agosto estão nos 202 euros por MWh em Portugal e Espanha (459 euros por MWh, incluindo custo da compensação para as centrais a gás), enquanto a França pagará em média 744 euros por MWh, a Alemanha 660 euros, Itália 644 euros e a Holanda 607 euros.

No dia 26, Robert Habeck, ministro alemão da Economia, declarou, segundo o Handelsblatt, que o Governo quer reformular o seu sistema elétrico, desacoplando o preço da energia elétrica da escalada do preço do gás, em linha com o que Portugal e Espanha estão a fazer.

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Entretanto, as associações empresariais nacionais, algumas delas chamadas a contribuir com para o plano de poupança energética português, que deverá ser conhecido até ao final de setembro, insistem na adoção de medidas estruturais de redução de consumos e eficiência energética.

A ADENE – Agência para a Energia recolheu propostas junto de várias associações setoriais. E, entre as entidades consultadas, a Associação Portuguesa de Centros Comerciais (APCC) releva a importância da implementação de medidas estruturais, como “a agilização dos mecanismos de licenciamento para centrais de autoconsumo”, sendo a energia fotovoltaica em grandes edifícios uma importante forma de reduzir a nossa dependência energética.

Já no atinente a medidas imediatas de poupança, a APCC defende três eixos distintos de atuação: climatização, iluminação e meios mecânicos. Na climatização, a medida mais importante é o acerto das temperaturas para 19º no inverno e 26º no verão. Na iluminação, destaca-se a conclusão da passagem para iluminação eficiente (LED) e os acertos de iluminação em áreas não comerciais (parques de estacionamento, áreas técnicas, entre outras). E, quanto aos meios mecânicos, o acerto de velocidades em elevadores e escadas rolantes. Segundo a APCC, estas medidas imediatas podem vir a ter um impacto total de 10% na redução dos consumos.

A Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), que contribuiu com propostas através da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, realça que “o desafio de consumir menos energia, não pode estar separado da necessidade de produzir mais e melhor energia”.

Para a associação, “a resposta à situação de crise energética deve passar sobretudo pela consulta e envolvimento dos diferentes setores de atividade e por iniciativas de duração limitada”.

A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) reitera a necessidade de implementação de um programa que permita aos agricultores produzirem energia renovável para autoconsumo, sendo o excedente introduzido na rede. E sustenta que devem ser garantidos incentivos que promovam a adoção, “por parte de todos”, de soluções energeticamente mais eficientes, como a renovação da frota dos tratores agrícolas.

Já a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) diz, em comunicado, estar disponível para discutir a redução dos horários de funcionamento dos estabelecimentos, superiores à média europeia. Como medidas a adotar no curto prazo, a CCP admite o controlo de temperaturas em estabelecimentos comerciais ou edifícios de serviços e a diminuição da iluminação noturna (montras e iluminação pública), como é adotado noutros países europeus, mas advertiu para a “necessidade de garantir o reforço da segurança e policiamento”. Adicionalmente, defende incentivos fiscais para a adoção de soluções energeticamente mais eficientes como, por exemplo, lâmpadas LED e painéis fotovoltaicos e, no setor dos transportes, destacou o apoio à renovação de frotas para veículos que consumam menos combustível.

Também a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) defende que o Governo deve disponibilizar programas de apoio à eficiência energética dirigidos às empresas, de acesso direto e simplificado. Porém, o contributo das empresas da restauração, similares e do alojamento turístico para a redução de 7% no consumo de energia, não pode passar por restrições às suas atividades, nomeadamente a redução de horários, nem por “quaisquer outras obrigações que se revelem penalizadoras” para as atividades económicas do setor.

A EURATEX, associação patronal europeia do setor têxtil, quer o lançamento urgente de uma estratégia única europeia para lidar com a crise energética que fixe o máximo de 80 euros por megawatt hora (MWh) para o gás natural. E o UNIPER, primeiro importador e armazenador de gás na Alemanha, que tem sido afetado pela redução de 80% das entregas de gás russo, frisa que, enquanto os preços da energia continuarem a aumentar na Europa, a necessidade de liquidez aumentará, pelo que os governos não podem regatear os apoios por compensação das perdas.

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O disparo de preços no setor elétrico e no dos combustíveis aumenta exorbitantemente os custos de produção e circulação empresarial e dos serviços e, além de pôr em risco a sobrevivência das pessoas com exíguos recursos, fragiliza grandemente a classe média, que, até há uns anos a esta parte, tinha uma vida relativamente folgada e agora corre perigo de engrossar o já enorme rol dos necessitados. Porque não reduzir para a taxa mínima do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) sobre os bens do setor energético e dos combustíveis, bem como sobre os bens essenciais?

2022.08.29 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A humildade alavanca a concretização do Reino de Deus no mundo

O Evangelho do XXII domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 14,1.7-14) propõe a reflexão sobre alguns valores basilares na resposta ao desafio do Reino: humildade, gratuidade e amor desinteressado. No “caminho de Jerusalém”, Jesus aparece como comensal, em dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus. Seria a refeição solene que se tomava por volta do meio-dia, ao voltar da sinagoga, para a qual se convidam os hóspedes e durante a qual persiste a discussão em torno das textos proclamados e escutados no culto sinagogal.
Enquanto Marcos e Mateus apresentam os fariseus como adversários de Jesus, Lucas mostra-os próximos de Jesus, que até O convidam para casa e se sentar à mesa com eles.
Os fariseus, um dos principais grupos religioso-políticos daquela sociedade, dominavam o culto sinagogal e estavam presentes em todos os passos religiosos dos israelitas, com a preocupação de transmitir a todos o amor pela Torah, quer escrita, quer oral. Porém, absolutizando a Lei (Torah), esqueciam as pessoas e ultrapassavam o amor e a misericórdia; considerando-se puros, desprezavam o povo, que não podia, por causa da ignorância e da vida dura que levava, cumprir integralmente os preceitos da Torah. Ciosos da sua capacidade, integridade e superioridade, não eram modelos de humildade, o que explicará a sua luta pelos lugares de honra.
Para o mundo, o banquete é o espaço do encontro fraterno, onde os convivas partilham do alimento e criam laços de comunhão, de proximidade, de familiaridade, de irmandade. Jesus surge, não raro, em banquetes, não por ser “comilão e bêbedo” (cf Mt 11,19), mas porque, sendo sinal de comunhão, de encontro, de familiaridade, o banquete anuncia a realidade do Reino.
No enquadramento do banquete do passo evangélico em causa, Jesus fala do banquete do Reino. A todos os que nele querem participar recomenda a humildade e denuncia a atitude dos que levam a vida na lógica de ambição, de poder, de reconhecimento, de superioridade. Ao mesmo tempo, garante que para este banquete todos são convidados e que a gratuidade e o amor desinteressado caraterizam as relações estabelecidas entre todos os participantes do banquete.
Num primeiro momento, o trecho em reflexão aborda a humildade. A recomendação de Jesus aos convidados que disputavam os lugares de honra não é novidade: já o Antigo Testamento aconselhava a não ocupar os primeiros lugares (cf Pr 25,6-7), mas aqui figura como apresentação do Reino e da lógica do Reino: um espaço de irmandade, fraternidade, comunhão, partilha e serviço, que exclui qualquer atitude de superioridade, orgulho, ambição ou domínio. Por isso, quem quiser entrar neste espaço, tem de fazer-se pequeno, simples, humilde. Esta é, , a lógica que Jesus propôs aos discípulos. Ele próprio, na ceia de despedida e primeira do novo Reino, lavou lhes lavou os pés e os constituiu em comunidade de amor e de serviço – avisando que, na comunidade do Reino, os primeiros serão os servos de todos (cf Jo 13,1-17).
Num segundo momento, emergem a gratuidade e o amor desinteressado, que se unem pelo tema do Reino, como postura fundamental de quem participa no banquete do Reino.
Jesus põe em causa, em nome da lógica do Reino, a prática de convidar para o banquete só os amigos, os irmãos, os parentes, os vizinhos ricos. Nas refeições dos fariseus, não convinha haver alguém de nível menos elevado, pois a comunidade de mesa vinculava os convivas e não convinha estabelecer laços com gente desclassificada e pecadora. Além disso, os fariseus tendiam, como todas as pessoas, de todas as épocas e culturas, a convidar os que podiam retribuir da mesma forma. Assim, tudo desembocava no intercâmbio de favores e não na gratuidade e desinteresse.
E, em nome do Reino, vai mais além. Segundo Ele, é preciso convidar “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”, que eram considerados pecadores notórios, amaldiçoados por Deus, pelo que estavam proibidos de entrar no Templo para não profanar aquele lugar sagrado. Ora, são esses que devem ser os convidados para o banquete. É óbvio que Jesus já não fala só da refeição em casa do fariseu, mas sobretudo do que esse banquete anuncia e prefigura: o banquete do Reino.
Jesus traça, pois, os contornos do Reino: é semelhante a um banquete onde os convidados estão unidos por laços de familiaridade, irmandade, comunhão, para o qual são convidados todos, sem exceção (inclusive os que a cultura social e religiosa exclui e marginaliza); as relações entre os que aderem ao banquete não são marcadas pelos jogos de interesses, mas pela gratuidade e pelo amor desinteressado; e os participantes devem despir-se de qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, para adotarem uma atitude de humildade, de simplicidade, de serviço.
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Já no texto escolhido para a 1.ª leitura (Sir 3,19-21.30-31, um sábio do início do século II a.C. aponta a humildade como caminho para agradar a Deus e aos homens, ter êxito e ser feliz.
Os selêucidas dominavam a Palestina e o helenismo começara o trabalho pernicioso de minar a cultura e os valores de Israel. Muitos, seduzidos pelo fulgor da cultura helénica, abandonavam os valores dos pais e a aderiam aos valores do invasor. Então Jesus Ben Sira, judeu tradicional, orgulhoso da fé e dos valores israelitas, escreve para defesa do património religioso e cultural do judaísmo, tentando convencer os compatriotas de que Israel possui, na Torah revelada por Deus, a verdadeira sabedoria, muito superior à sabedoria grega. Aos israelitas seduzidos pela cultura grega lembra a herança comum, vincando a grandeza dos seus valores e que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.
O trecho em referência é uma instrução de pai ao filho, cujo tema fundamental é a humildade, que é uma das qualidades fundamentais que o homem deve cultivar, pois garante-lhe estima ante os homens (o que o Evangelho também anota) e graça ante do Senhor. Não se trata de uma forma de estar reservada aos mais pobres e menos cultos, mas de algo que deve ser cultivado por todos, a começar pelos que se têm como importantes. Este sábio não tem dúvida de que é na humildade e na simplicidade que reside o segredo da sabedoria, do êxito, da felicidade.
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A 2.ª leitura (Heb 12,18-19.22-24a) convida os crentes instalados numa fé cómoda e sem grandes exigências, a redescobrir a novidade e a exigência do cristianismo e reitera que o encontro com Deus é experiência de comunhão, proximidade, amor, intimidade, que dá sentido à caminhada do cristão. Por isso, é de exigir uma conduta consequente com a fé cristã: manter e cultivar relações harmoniosas, adequadas, justas, para com os homens e para com Deus.
Neste trecho, o autor convida os destinatários da carta à fidelidade à vocação cristã. Para tanto, faz o paralelo entre a antiga religião e a proposta de salvação que Cristo apresenta. Os crentes são, assim, convidados a redescobrir a novidade do cristianismo e a aderir a ela com entusiasmo.
O autor estabelece profundo contraste entre a experiência de comunhão com Deus que Israel fez no Sinai e a experiência cristã. A experiência do Sinai gerou medo, opressão, mas não relação pessoal, proximidade, amor, comunhão, intimidade, confiança – com Deus, nem com membros do Povo de Deus. O quadro da revelação do Sinai é um quadro terrífico, que não fez muito para aproximar os homens de Deus, num genuíno encontro alicerçado no amor e na confiança. Em contrapartida, na experiência cristã, não há nada de assustador, de terrível, de opressivo. Pelo Batismo, os cristãos aproximaram-se de Deus, numa experiência de proximidade, de comunhão, de intimidade, de amor verdadeiro. Portanto, a experiência cristã é uma experiência festiva, de alegria. Por essa experiência, os cristãos associam-se a Deus, o santo, o juiz do universo, mas também o Deus da bondade e do amor; e foram incorporados em Cristo, o mediador da nova aliança, irmanados com Ele, tornados co-herdeiros da vida eterna. Assim, associam-se aos anjos na festa, no louvor, na ação de graças, na adoração, na contemplação; e associam-se aos outros justos que atingiram a vida plena na comunhão fraterna.
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O termo “humildade”, do Latim humilitas (de humus, terra fértil), designa a virtude que nos dá a consciência das próprias limitações e fraquezas e nos faz agir de acordo com essa consciência. Qualifica as pessoas que não tentam projetar-se sobre os outros, nem mostrar-se superiores a eles. Dá-nos o sentido exato do nosso bom senso ao avaliarmo-nos em relação às outras pessoas. Características como simplicidade, cordialidade, respeito e honestidade, embora ligadas à humildade, são independentes. Portanto, quem as possui não será necessariamente humilde.
Muito confundida com a modéstia, sentimento de velar-se quanto às qualidades intelectuais e morais (em oposição ao exibicionismo vaidoso), a humildade é a virtude de quem é humilde. E quem se vangloria mostra que lhe falta humildade. Talvez se situe nessa posição a confissão de Albert Einstein ao reconhecer que “por detrás da matéria há algo de inexplicável”.
Para o budismo, a humildade é a consciência que se tem do caminho a levar para se libertar do sofrimento. O filósofo Immanuel Kant afirma que a humildade é a virtude central da vida, porque dá a perspetiva apropriada da moral. Em contrapartida, para Friedrich Nietzsche, a humildade é a falsa virtude que dissimula as desilusões que a pessoa esconde dentro de si.
A humildade não significa ter de se rebaixar junto de e para as outras pessoas, mas, como afim da verdade, significa, contra a jactância e contra a hipocrisia, admitir as falhas pessoais, como reconhecer as nossas capacidades com dons que devemos pôr ao serviço da comunidade.
Para lá das diferenças em termos concetuais, as pessoas partilham a mesma visão sobre a humildade como sendo a característica que leva as pessoas a realizar a ação sem proclamar os resultados. Suponhamos, por exemplo, que um homem joga bem futebol e que é humilde, este não deve apresentar-se aos outros na qualidade de melhor jogador nem como sendo “o jogador que sempre marcou a diferença graças ao seu talento”.
As religiões tendem a associar a humildade ao reconhecimento da superioridade divina, que postula o reconhecimento da nossa dependência de Deus, ao mesmo tempo que nos reconhecemos vocacionados para a cooperação com Ele. Todos os seres humanos são iguais aos olhos de Deus, devendo agir e comportar-se como tal. Porém, as religiões, não definem inequivocamente nem a humildade nem o que é ser humilde.
O protótipo da humildade é Jesus de Nazaré, tornado o Senhor, mercê da sua humildade. A sua grande qualidade foi a humildade, como atitude de proximidade, serviço e entrega, pois a Carta aos Filipenses diz que Ele “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-Se a Si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Tal não O impediu de tomar atitudes clarificadoras em nome da verdade e usar, por vezes, linguagem dura, como O catapultou à categoria de Messias Senhor. “Por isso, Deus O elevou acima de tudo e Lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobrem os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra; e toda a língua proclame: ‘O Senhor é Jesus Cristo’ para glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11).  
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Para ilustrar a virtude da humildade e seu efeito positivo, ocorre-me o exemplo do Cónego Mário Augusto de Almeida, de Vila da Ponte (Sernancelhe). Em conversa dizia-me que, quando morresse, havia de ser sepultado na caminheira do cemitério, porque o sacerdote é pontífice, isto é, faz a ponte (Deus-homens) e a ponte é para ser pisada. E eu retorqui dizendo que há limites: a ponte é pisada, mas, no caso, impediria a livre deslocação das pessoas por via do temor reverencial pelo sacerdote; além disso, o excesso de humildade não é bom conselheiro.
Em alternativa, pediu que o sepultassem atrás da porta do cemitério, ao que não me opus. Assim, quando faleceu, a 30 de janeiro de 1986 (ano em que faria 76 anos), abriram-lhe sepultura detrás da porta do cemitério, na parte nova, pois não era possível o sepultamento na campa do irmão, o Cónego José Cardoso de Almeida, que falecera havia dois anos.
Ora, como procederam a nova ampliação do cemitério, a campa do Cónego Mário, sem sair do sítio, ficou naturalmente exposta à visão geral, como verifiquei da última vez que lá estive por ocasião do funeral do Senhor Nelson José Mota Soares, o amigo de há 43 anos, um dos grandes lutadores pelo progresso da sua terra, um homem com o coração na boca, amigo do seus amigos.
2022.08.29 – Louro de Carvalho 

Funerais de José Eduardo dos Santos no dia dos seus 80 anos

 

Embora falecido a 8 de julho, num a clínica catalã, onde estava internado, o ex-presidente de Angola só foi sepultado no dia 28 de agosto. Com efeito, a sua morte fora do seu país suscitou polémica entre os filhos mais velhos, que não queriam que o defunto fosse sepultado em Angola, onde alegadamente fora maltratado nos últimos tempos, e a viúva com os filhos mais novos, por um lado, e entre aqueles e o Governo, por outro, que desejavam que o antigo estadista fosse sepultado no país e com honras de Estado.  

Apesar de o velório ter sido emoldurado por uma multidão menor que o esperado, como provam as cadeiras vazias perto do Mausoléu Agostinho Neto, os que acorreram à Praça da República, elogiaram o ex-presidente e agradeceram-lhe o facto de ter obtido a paz no país. Paulo Paz foi um dos que homenagearam “uma figura considerada muito forte a nível de África” que “assegurou o país no tempo da guerra, trouxe a paz e grandes benefícios, inclusive a reconstrução do país”. E, sem referir a polémica do atual Presidente sobre a anterior gestão ou os processos judiciais a elementos da família, frisou que, após a sua saída do poder, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) “tratou muito bem” Eduardo dos Santos – o que não é consensual.

Depois, defendeu que, para Angola, o Presidente João Lourenço está só a cumprir um plano que é do MPLA no poder e que o antigo presidente deixou. E, minimizando a polémica em torno das eleições do dia 24, com resultados contestados pela oposição, sobretudo pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), sustentou que as forças armadas e a polícia de segurança pública estão preparadas, nada havendo a temer. A manifestação de jovens, agendada nas redes sociais, entre o cemitério de Santa Ana e a praça 1.º de Maio, quase inexistente. A UNITA almeja o poder e “ninguém aceita perder de ânimo leve”, mas a defesa face a qualquer rebeldia está assegurada pelo Governo, ainda que a oposição conteste os resultados pelas vias legítimas e a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) se tenha disponibilizado para a recontagem dos votos, sobretudo para rever a distribuição de mandatos, revisão que pesará para a UNITA.  

Madalena Joaquim preferiu não discutir política e insistiu que estava apenas a prestar homenagem ao ex-presidente, “o nosso pai, foi o nosso pai, um líder que liderou tantos anos”.

Diamantino Mbarfungo considerou que a “perda deste presidente significa muito” para Angola, porque “foi um grande líder”. Quanto aos resultados eleitorais, minimizou a crítica, pois “o MPLA não perde nada” (mas perdeu na Província de Luanda) e observou que a morte de Eduardo dos Santos nada tem a ver com os resultados do MPLA, que, segundo os dados da CNE, baixou de maioria qualificada para maioria absoluta. E, sobre a ausência das filhas mais velhas de Eduardo dos Santos, disse que “são angolanas, podem vir” prestar a “sua homenagem ao pai em Angola”.

A urna chegou, num cortejo sem multidões, no dia 28, pelas 10 horas, à Praça da República, local do Memorial António Agostinho Neto, consagrado ao primeiro presidente de Angola, pois a praça da República foi escolhida para as cerimónias fúnebres, depois de ter acolhido um velório público sem corpo logo após a morte do estadista, durante um luto nacional de sete dias. E, no dia 28, houve honras militares num programa que incluiu música lírica, leitura de mensagens do Estado angolano e da família, do MPLA, da Fundação José Eduardo Santos, leitura do elogio fúnebre e um culto ecuménico, acompanhado de grupos corais.

Familiares do estadista, em particular a viúva Ana Paula dos Santos e os três filhos em comum, estavam na tenda onde decorreu a homenagem, tal como vários membros do Governo, dirigentes do MPLA e amigos do ex-presidente. Estiveram também o presidente da UNITA, bem como líderes de outros partidos da oposição, bispos católicos, membros do executivo angolano e outras individualidades.

Compareceram nos funerais 24 delegações estrangeiras, incluindo vários chefes de Estado e de Governo, com destaque para o primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe e os presidentes de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de Portugal, além de outros países africanos.

Téte Antonio, ministro das Relações Exteriores, assinalou o impacto internacional da ação do ex-presidente, que levou Angola ao reconhecimento da comunidade internacional, numa presidência internacional marcada pelo papel “que teve na nossa própria região e pacificação da região”.

Ao invés do que sucedia em vida, quando no dia do aniversário de Eduardo dos Santos, a 28 de agosto, todos queriam estar presentes, tornando-se um dia de festa em que muitos angolanos se juntavam à celebração, as cerimónias ficaram marcadas por alguma falta de pessoas. As exéquias, apesar de o corpo ter aterrado em Luanda em campanha eleitoral, foram celebradas depois das eleições, embora no rescaldo pós-eleitoral, quando se aguardam os resultados definitivos das eleições, com os dados preliminares a apontar à vitória do MPLA, contestada pela UNITA.

O ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) português João Gomes Cravinho salientou o papel do ex-presidente angolano, vincando que soube criar proximidade com Portugal e que o país “lhe deve muito”. Disse que soube estabelecer com todos os Presidentes da República portugueses eleitos em democracia, devido à longevidade da carreira, relações que propiciaram a proximidade entre os nossos povos. Para Cravinho, esta “é a homenagem que Angola e o mundo devem” a José Eduardo dos Santos, que foi Presidente durante 38 anos “em tempos difíceis e complexos”, mostrando “liderança extraordinária em momentos decisivos para Angola e para o continente africano e naturalmente Portugal não podia deixar de estar presente ao mais alto nível”.

Uma das filhas mais novas do ex-presidente recordou o “pai da nação” e agradeceu o apoio do Governo à família na realização das cerimónias oficiais de exéquias fúnebres. Para Josiane dos Santos, que colaborou com o Governo na realização da cerimónia, Eduardo dos Santos assumiu principalmente o papel de pai, “adotando uma nação inteira e logo o continente que o carrega”. Em nome da família, agradeceu a todos os que se lhe juntaram para celebrar “a vida do grande homem que perdemos” e deixou um “reconhecimento aos membros do executivo que tornaram possível este dia”. E assegurou não deixar que usem o nome do pai em vão e em benefício próprio e que lutará nas batalhas dele “com determinação”, pois as lutas do pai “não foram em vão” e mencionou a música e o desporto, sobretudo o futebol, como suas paixões.

Isabel, Tchize dos Santos e o irmão Coreon Du, que recusaram participar no funeral de Estado, choraram o pai nas redes sociais e recordaram o seu aniversário. O cantor Coreon Du, que já tinha manifestado os momentos difíceis que estava a atravessar depois de um tribunal espanhol decidir entregar a custódia do corpo do ex-presidente à viúva contra a vontade dos filhos mais velhos, lamentando ter-lhe sido roubada a oportunidade “de dar-lhe o último adeus na terra que nos viu nascer”, neste dia, quis marcar o aniversário. Garantiu que, “nos momentos mais difíceis” se lembrará da voz serena e do sorriso do pai, que espera que o motivem a não perder o otimismo e nem a sensatez. A empresária Isabel dos Santos, que tinha expressado a sua mágoa na véspera, apenas disse: “Feliz aniversário, papá.” E a empresária Tchize dos Santos, ex-deputada do MPLA e influenciadora, desejou “feliz aniversário” ao pai, num ‘post’ acompanhado de uma música em que acrescentou: “Em tua memória, continuarei a lutar pela pátria”.

Estes filhos não visitam Angola há anos, como Eduardo dos Santos, que se exilou em Barcelona quando o regime liderado por Lourenço a partir de 2017 ergueu a bandeira da luta contra a corrupção atingindo alguns deles, sobretudo Isabel do Santos, que enfrenta processos na justiça.

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Governo, amigos e partido governamental recordaram a figura do ex-presidente angolano, o “bom patriota” que promoveu a paz e reconciliação no país. Em nome da direção do MPLA, de todos os militantes, simpatizantes e amigos do partido, Luísa Damião, vice-presidente do partido do Governo, ofereceu uma flor e disse adeus ao presidente emérito, arquiteto da paz. Em representação da Fundação José Eduardo dos Santos, João de Deus recordou que o povo falava do ex-presidente como Zedu, “dada a sua natureza de humildade e trajetória simples”. E este orador, que desmaiou durante o discurso, tendo sido assistido pelos serviços médicos, disse que Eduardo dos Santos “sacrificou a sua juventude”, assumindo, em 1979, a “substituição necessária para dar sequência ao prematuro passamento físico do imortal guia da revolução” (referência a Agostinho Neto). O chefe da Casa Civil do Presidente de Angola, Adão de Almeida, afirmou que o país se despede de Eduardo dos Santos, “bom patriota” que “trouxe a paz” e garantiu a “unidade territorial” ao longo dos 40 anos de governo. Elogiou o seu legado histórico e o seu papel na transição para o regime democrático, economia de mercado e na construção de um conjunto de “direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, dos quais destacou a abolição da pena de morte. Mas, em particular, elogiou a “invulgar sagacidade” do ex-presidente que, após a vitória na guerra civil, promoveu a reconciliação nacional, de “cujos frutos Angola usufrui há 20 anos”. E Roberto Almeida, antigo presidente da Assembleia, falou do amigo como “arquiteto da paz” que pôs fim a “décadas de guerra fratricida”, num “reencontro da grande nação angolana”.

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Paz à alma do ex-presidente e que Angola enverede mesmo pelas sendas da democracia plena.

2022.08.29 – Louro de Carvalho

domingo, 28 de agosto de 2022

Papa desafia novos cardeais a pregarem o Evangelho a todos

 

 

No passado dia 27 de agosto, celebrou-se um consistório (assembleia de cardeais) extraordinário, na Basílica de São Pedro, em Roma, para a criação de 20 novos cardeais (dos quais 16 serão eleitores, por não terem 80 anos) e para o voto sobre algumas causas de canonização.  

Entre os cardeais ora criados contam-se: Dom Virgílio do Carmo Silva, arcebispo de Díli (Timor-Leste), Dom Leonardo Ulrich Steiner, arcebispo de Manaus (Brasil), Dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília (Brasil), e Dom Filipe Neri António Sebastião do Rosário Ferrão, arcebispo de Goa e Damão (antigo Estado da Índia) – ligados ao mundo da lusofonia.

Francisco, 85 anos, tem lidado com dores persistentes no joelho, pelo que entrou na celebração em cadeira de rodas e permaneceu sentado praticamente todo o tempo.

Na homilia da Celebração da Palavra, que enquadrou a cerimónia, depois de proclamado um passo do Evangelho de Lucas (Lc 12,49-50), a alocução do Sumo Pontífice gravitou em torno da asserção do Senhor, bem no centro do Evangelho lucano: “Vim lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”.

O fogo é a chama poderosa do Espírito de Deus, “Amor apaixonado que purifica, regenera e transfigura tudo” e que se revela plenamente no mistério pascal de Cristo, abrindo Ele, como coluna ardente, caminho da vida através do mar escuro do pecado e da morte. Há também o fogo das brasas, que se encontra no Evangelho de João, no relato da terceira e última aparição do Ressuscitado aos discípulos. Este fogo foi aceso por Jesus, junto da praia, enquanto os discípulos puxavam dos barcos a rede cheia de peixes. É fogo, suave e escondido; dura muito tempo; é usado para cozinhar; e cria ambiente familiar de fruição, maravilha, emoção e intimidade.

Foi esta dupla imagem do fogo que o Santo Padre expôs como guia de vida dos cardeais e como pauta da oração por eles. Com efeito, Jesus chama a segui-Lo na rota da sua missão, missão de fogo para os que, na Igreja, foram tirados do meio do povo para um especial ministério de serviço. A imagem do fogo, qual tocha acesa que o Senhor nos entrega, significa que Ele comunicar-nos a sua coragem apostólica, o seu zelo pela salvação de cada pessoa, sem excluir ninguém, e quer comunicar-nos a sua magnanimidade sem limites, sem reservas, sem condições, porque a misericórdia do Pai arde no seu coração. E, neste fogo, há a luz da misteriosa tensão, própria da missão de Cristo, entre a fidelidade ao seu povo e a abertura a todos os povos, sem exceção, com destaque para a saída às periferias ainda desconhecidas. Este fogo, que torna incansáveis os apóstolos, é o que Jesus veio lançar sobre a terra e que o Espírito Santo acende no coração, nas mãos e nos pés daqueles que O seguem.

Também o Senhor nos comunica o fogo das brasas, da mansidão, da ternura, da fidelidade, da proximidade. É o fogo do estilo de Deus, que ilumina e arde de modo especial na adoração, quando, em silêncio perto da Eucaristia e saboreamos a presença humilde, discreta do Senhor.

Ora, um cardeal ama a Igreja sempre com o mesmo fogo espiritual, nas grandes questões e nas pequenas, no encontro com os grandes do mundo e com os pequenos, grandes diante de Deus.

Porém, só Jesus conhece em pleno o segredo da humilde magnanimidade do fogo, desta força branda, desta universalidade atenta ao detalhe. É o segredo do fogo de Deus, que desce do céu, iluminando-o de um extremo ao outro e que lentamente cozinha a comida das famílias pobres, dos migrantes ou dos sem-abrigo. Jesus quer acendê-lo novamente nas margens das nossas histórias diárias de alegria e de compromisso. A cada um de nós chama pelo nome, olha nos olhos e pergunta se pode contar com cada um de nós. Rica lição para os novos cardeais!

Depois da alocução papal, Francisco pediu orações pelo bispo de Wa (Gana), Richard Kuuia Baawobr, que integra a lista de novos cardeais, hospitalizado quando chegou a Roma, no dia 26.

A seguir, proclamou os novos cardeais indicando o título ou diaconia atribuídos.

Os novos cardeais fizeram a profissão de fé segundo a fórmula do Símbolo dos Apóstolos e cada um prestou o juramento de fidelidade a Cristo e ao Evangelho e de obediência cooperante ao Papa, bem como de total comunhão com a Igreja por palavras e por obras, fazendo o necessário anúncio e guardando todo e qualquer segredo que lhe seja confiado na nova missão. Depois, o Papa concedeu a cada novo cardeal o anel de sinete, o chapéu vermelho, conhecido como barrete cardinalício, e o título ou diaconia, conforme se trate de cardeal presbítero ou de cardeal diácono. E cada um se ajoelhou para receber o barrete cardinalício, de acordo com a ordem de criação.

O anel entregue aos cardeais visa o reforço do “amor pela Igreja”; e a atribuição de uma igreja de Roma a cada cardeal simboliza a participação na solicitude pastoral do Papa na cidade.

A criação do novo cardeal e o título ou diaconia ficam documentados na respetiva bula.  

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Este foi o oitavo consistório do atual pontificado, após os realizados a 22 de fevereiro de 2014, a 14 de fevereiro de 2015, a 19 de novembro de 2016, a 28 de junho de 2017, a 28 de junho de 2018, a 5 de outubro de 2019 e a 28 de novembro de 2020. Nos dias 29 e 30, os cardeais participam na reunião convocada por Francisco, para reflexão sobre a nova constituição apostólica para a Cúria Romana (serviços centrais de governo da Igreja Católica), a Praedicate evangelium (Pregai o Evangelho), que termina, com a Missa, às 17,30 horas, na Basílica de São Pedro.

Este consistório extraordinário para instituir 20 novos cardeais e o subsequente encontro de dois dias revestem-se de vários condimentos que os tornam especiais e sobre eles concentra-se o interesse de quem segue de perto a vida e o rumo da Igreja Católica.

É rara e atípica a altura do ano, pois os consistórios têm habitualmente lugar em junho, em fevereiro ou em novembro. O mês de agosto costuma ser quase inativo no ritmo da Cúria Vaticana e mesmo de Roma, mas não o é com Francisco. E, desta vez, o Papa coloca os purpurados ante uma das grandes reformas do pontificado: a Constituição Praedicate Evangelium, promulgada a 19 de março, solenidade de São José, esposo da Virgem Santa Maria, e em vigor desde 5 de junho, domingo de Pentecostes. É a reforma sobre “a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja no mundo” que está em questão, tendo sido um dos principais pontos do “caderno de encargos” que Francisco recebeu dos que o elegeram. Por outro lado, generalizou-se a ideia de que o consistório e o encontro de dois dias que permitem que os cardeais se escutem, se conheçam e conversem uns com os outros, tem ar de pré-conclave. A imagem da cadeira de rodas, reveladora da dificuldade de locomoção do Bispo de Roma, que o obrigam a reduzir, em especial, as viagens pastorais pelo mundo, serviram a quem não o aprecia ou o detesta, para insistir que ele poderia anunciar a sua resignação. Até a viagem do dia 28  para abrir o Perdão Celestino, ritual que vem de finais do séc. XIII, da autoria do Papa Celestino V, tem servido como premonição da resignação, visto que Celestino V tinha sido o último pontífice a resignar até Bento XVI.  

O ruído da hipotética resignação, criado à volta dos preditos encontros, pode levar a subestimar a importância da cimeira com os cardeais, que é um acontecimento que se eleva acima da espuma dos dias, na atualidade e no futuro da Igreja. A Praedicate Evangelium procura arrumar a casa, com soluções sempre reformáveis e questionáveis, mas coloca a estrutura, os serviços e as pessoas da Cúria em sintonia com os caminhos pastorais da Igreja, prestando serviço ao Papa e aos bispos de todo o mundo. A limitação do número de mandatos dos titulares de cargos e a abertura desses cargos a fiéis leigos são algumas das inovações já no terreno.

Não admira que as soluções encontradas concitem dúvidas, resistências e perplexidades. E não é de estranhar que haja questões de natureza teológico-pastoral que os cardeais queiram debater. O historiador italiano Alberto Melloni, autor e coordenador de uma história do Concílio Vaticano II, escrevia, na sua coluna da edição do dia 24 de agosto no jornal La Repubblica, sobre as ambiguidades e riscos que podem estar contidas na medida que abre os cargos a leigos, a qual tanto pode significar assunção de responsabilidades a partir da base, a condição batismal, como o reforço do poder discricionário do Papa. Outro aspeto que se entrosa com o papel da Cúria é o caminho da sinodalidade em curso, que o Papa e um significativo número de cardeais levam para a agenda do debate. Seria incompreensível que, ensejo como este, não se conjugassem os diferentes eixos e frentes que têm pautado o pontificado de Francisco.

Sinais de tensão afloraram na imprensa italiana, com notícias de que os cardeais seriam apenas informados sobre o caminho feito e sobre os fundamentos das opções na reforma da Cúria, sem possibilidade de perguntas e de debate sobre as suas preocupações. Mas essas informações carecem de fundamento pelo que se conhece da metodologia de trabalho nos dois dias.

Dos 21 cardeais previstos para criação neste consistório, um desistiu, poucas semanas depois da nomeação, devido a informações sobre encobrimento de abusos sexuais. Dos restantes 20, quatro já têm mais de 80 anos e 16 serão eleitores do próximo papa. Onze do total provêm de dioceses que não são tradicionalmente sedes cardinalícias e três trabalham em dicastérios da Cúria. Dois – os arcebispos de Marselha e de Brasília – são ordinários de dioceses que nas últimas décadas já tiveram cardeais. Entre os que vêm de dioceses e países improváveis, merece referência o novo cardeal de Timor-Leste.

Nos perto de dez anos de pontificado, Francisco nomeou 94 cardeais; quase metade (48 por cento) foram os primeiros bispos das respetivas dioceses. Estes números, que não encontram paralelo em papados anteriores, asseguram uma diversidade de experiências como nunca houve no Colégio Cardinalício. Porém, é muito provável que muitos deles não se conheçam entre si, até porque as oportunidades de encontro foram diminutas, sobretudo por causa da pandemia, razão acrescida para tornar este encontro promovido pelo Papa ainda mais importante.

O site católico The Pillar apresentou, a 23 de agosto, um quadro da evolução do colégio de cardeais desde 1880 até 2020, com dados pormenorizados por idade, procedência, tipo de sé a que estavam ligados, número de católicos por cardeal, entre outros critérios. Terá sido o trabalho mais completo, mais atualizado e mais relevante para se perceber o alcance do próximo conclave.

Enfim, um evento que põe a Igreja Católica nas pantalhas da exposição ao mundo, crente ou não!

2022.08.28 – Louro de Carvalho