segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Duas posturas antagónicas face ao Português, que devem equilibrar-se

O Público do passado dia 31 de julho dá conta da polémica gerada na classificação das provas de Português realizadas a 22 do mesmo mês, no âmbito da segunda fase dos exames nacionais, a propósito da admissibilidade ou não da variante brasileira da Língua Portuguesa nos testes escritos, nos trabalhos e nos exames apresentados em Portugal.

É estranho que a questão se tenha levantado após uma longa experiência de exames nacionais em que se prestam provas de Português, Português Língua não Materna, Português Língua Segunda. Aliás, a questão foi abordada já em 2009 através do documento “Perfis Linguísticos da População Escolar que frequenta as Escolas Portuguesas” (coordenado por Isabel Leiria), solicitado pela então Direção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), do Ministério da Educação (ME).

A questão parece ter sido suscitada por um professor de Português que, chamado a corrigir e classificar provas depois de estar muito tempo sem experiência nesse mister, se sentiu induzido a não aceitar a variante brasileira do Português espelhada nas provas, alegadamente porque o Instituto de Avaliação Educativa, Instituto Público (IAVE, IP), através do respetivo coordenador, ter dado a indicação de que só deve ser aceite a variante europeia. As razões invocadas terão sido: em território nacional utiliza-se a variante europeia (?!); os professores não são obrigados a conhecer as diversas cambiantes da variante brasileira (Cuide-se da sua formação); está implícita, no currículo, a obrigação da utilização da variante europeia (Ainda que fosse verdade, o implícito não faz lei); e apenas seria possível se o aluno pudesse ser identificado como brasileiro, o que poria em causa o anonimato (não, se apenas indicar que é brasileiro).

Por seu turno, os contestatários entendem que os alunos não têm de se adaptar e acusam o toque de xenofobia linguística ou, pelo menos, de discriminação, pois “a língua é a mesma” e “pode ser muito frustrante escrever na sua própria língua e ser penalizado, quando no seu país não era errado”. E todos esperam clara do IAVE, IP sobre variante brasileira em exames de Português para evitar desigualdades, pelo que a Associação de Professores de Português (APP) vai pedir reunião ao conselho científico daquele instituto”.

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O episódio traz-me ao pensamento duas posturas atitudinais que se tomam em relação à Língua Portuguesa e, provavelmente, face a outras: uma postura matricialista e uma postura plataformista. São antagónicas, mas deviam caminhar para um equilíbrio em regime de complementaridade, como faces da mesma moeda.

A postura matricialista parte do inquestionável princípio de que o Português se formou a partir do Latim vulgar, que alguns reduzem ao Latim da plebe, da soldadesca e dos tabeliões, esquecendo que os grandes senhores e as matronas não empreendiam fluentemente realizações como aquelas peças de longos períodos carregados de subordinação encadeada. Os adeptos desta postura admitem que muito do Léxico latino chegou até nós, mas proveniente do Grego. Sabem que, no século XVI, se procedeu a uma “refontalização” do Português com recurso ao Latim clássico, tendo aparecido palavras que evoluíram do Latim por via erudita, a par das que tinham evoluído por via popular, como “solitário” e “solteiro”, “digno” e “dino”, “lunar” (adjetivo) e “luar” (nome), “operar” e “obrar”, “operário” e “obreiro”, “mácula” e “mágoa”, “malha”, “mancha”; e surgiram palavras novas ao lado das existentes, como “labor”, ao lado de “trabalho”. Aceitam, com garbo, que vocábulos latinos tenham servido para as designações dos indivíduos das diversas espécies da fauna e da zoologia, para não falar de alguns termos da geografia (mesmo celeste), da física, da química e da geologia, como aceitam que os termos gregos tenham batizado ou crismado doenças, cirurgias, anatomias, nomenclaturas médicas. E creem que, apesar de a romanização haver extinguido as línguas autóctones, alguns vocábulos resistiram e foram incorporados nas línguas românicas, subsequentes ao Latim, e que o Português recebeu palavras do Árabe, dos povos Anglo-saxónicos, Germânicos e do Norte europeu, como de Castela e da Provença.

Porém, resistem à inovação, considerando que o Português que estudaram e como o estudaram é o único genuíno, considerando o resto como corrosão da língua. E uma das coisas a que resistem são as reformas ortográficas. Não sei se a ortografia do século XVI teve opositores, mas a de 1911 teve-os, como os teve a de 1945 (a essa a oposição foi mais contida, dado o cariz do regime) e como os tem a atual. A ortografia imediatamente anterior é que era a melhor!    

Anoto que a ortografia do século XVI presumia-se de etimológica, obviamente alatinada (esquecendo as outras fontes), retomando consoantes duplas que tinham caído com a evolução natural do Português e assumindo algumas grafias erróneas face aos étimos. Agora, a oposição à supressão de consoantes mudas baseia-se no que se passa com as demais línguas, não advertindo que, se as mantêm, é porque ainda as pronunciam, com exceção do Italiano.

Se quisermos reduzir o Português ao tempo de D. Dinis, ficaremos com um património paupérrimo, até porque muitas palavras de então caíram em desuso e jazem na bruma da memória.                 

Ao invés, uma postura plataformista quer saber pouco da matriz da língua. Os seus adeptos aplicam-se à descrição das diversas realizações do Português nos diversos recantos do mundo onde se fala e escreve a língua de Camões (países, regiões, comunidades da diáspora…) – todas aceitáveis. Fogem, como o diabo da cruz, do estabelecimento de normas linguísticas, atendo-se a um mínimo de regras que possibilitem a comunicação e o intercâmbio. Assim, praticam-se várias pronúncias, aceitam-se variações ortográficas, fazem-se realizações sintáticas diferentes, diverge-se na Semântica, multiplica-se o Léxico. No entanto, mantém-se intacta a língua técnico-científica e cada comunidade linguística estabelece o seu padrão mínimo.

Estas duas posturas devem congraçar-se: teimar na preservação das raízes a todo o custo pode afunilar o Português, tornando-o objeto de museu e enclausurá-lo no jardim retangular plantado à beira do Oceano; esquecer as raízes pode significar construir uma língua sem história e as suas realizações voarem nas asas do vento do esquecimento, do desinteresse e da falta de vínculos. Não se quer na língua o que sucedeu com um dado momento em que a antiga Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais (DGMN), na obsessão de restaurar monumentos expurgando-os do que não era original, ia deixando imóveis arquitetonicamente valiosos e de boas talhas reduzidos a metade ou espoliados do seu recheio artístico. A par de outras proveniências (desativação de templos, conventos, solares…), esta deu azo a muitas unidades museológicas do país.                     

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Voltando ao caso das provas de Português, há que atentar no conteúdo do predito documento da DGIDC e respigar o seguinte:

Um brasileiro em Portugal e um português no Brasil falam a mesma língua materna: a Língua Portuguesa. E os alunos integrados no sistema de ensino português falantes do Português do Brasil (PB) mantêm-se falantes do PB. Por isso, o documento integra num mesmo grupo alunos para quem o Português Europeu (PE) ou o PB sempre foi língua materna, língua de comunicação com os seus pares, e foi sempre a língua da escola e da família. Não apenas se assume que o português do Brasil deve ser aceite nas escolas portuguesas, como também se faz o alerta ao professor de Português para o facto de ele ter de dominar conhecimentos sobre as variedades sociais e dialetais do PB, de modo poder distinguir o que são e o que não são caraterísticas próprias das variedades do Português do Brasil (PB) “tão legítimas e respeitáveis como as manifestações do padrão PE”.

Por conseguinte, não se entende como, em 2009, uma nota informativa da Agência Nacional para a Qualificação e o Enino Profissional, IP (ANQEP) para os Centros de Novas Oportunidades (CNO”, diz que os candidatos estrangeiros que possuam habilitações de nível não superior e queiram desenvolver processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) “não podem desenvolver na íntegra o Portefólio Reflexivo de Aprendizagens em língua estrangeira”, pois a oferta educativa/formativa resulta do Sistema Nacional de RVCC português e “o Portefólio tem de ser desenvolvido na língua do País que desenvolve este Sistema”.

A este respeito, Ana Maria Martins, a 16 de fevereiro de 2009, faz as seguintes observações, que registo de forma livre:

Quando falamos do uso da variante europeia/variante brasileira do Português em contexto de formação e escolarização, não falamos das manifestações orais em PB, dado que não passa pela cabeça de ninguém “obrigar” o cidadão brasileiro a fechar a vogal da primeira sílaba das palavras “caminho” ou “família”, por exemplo, ou a deixar de pronunciar [tch] ou [dj] antes do som [i], como em “pente e cidade”. A tal obrigatoriedade, a existir, deverá afe{#c|}tar apenas a escrita.

Portugal ratificou o Acordo Ortográfico, que dá como válidas grafias diferentes, próprias de cada variedade nacional (pode escrever-se cómico ou cômico). Isto quer dizer que as duas variantes ortográficas são oficialmente aceites. Portanto, a “grafia brasileira” é obrigatoriamente válida em exames, testes ou trabalhos, de qualquer natureza, realizados em Portugal.

A nível do Léxico, é de considerar que, nos últimos 30 anos, entraram no PE muitas palavras dadas como específicas do PB, constando algumas de dicionários editados em Portugal. A par disso, o aluno ou formando, ao realizar exame, teste ou trabalho escrito, tem de usar um dado tecnoleto e a diferença entre PE e PB esbate-se, não por haver uniformidade terminológica ou metalinguística entre edições técnico-científicas de um e do outro lado do oceano (muito ao invés, mas pela razão de o aluno ou formando estudar com base em bibliografia editada em Portugal. E,

na Sintaxe, as diferenças de construção frásica entre o PB e o PE prendem-se com aspetos relativos à ordenação dos constituintes, à regência ou à omissão do artigo, entre outros. Nestes termos, se houver lei a impor o uso do PE em contexto de formação e escolarização, esta variante só pode ser aplicada na Sintaxe. Porém, como os alunos falantes do PE, na prática, só são desclassificados neste nível, quando a frase deixa de ser compreensível, é estranho que o falante do PB seja penalizado por usar as estruturas corretas da sua língua materna, o Português. (1)

Aliás, muito da Sintaxe do PB é do aplicado no PE em tempos. Por exemplo, a ênclise (diga-se) e a tmese (cantar-se-á) não são muito antigas e não se usam na subordinação. E o artigo definido antes do determinante é excrescente (o meu livro). Apenas pode enriquecer o ritmo frásico.  

Se a suposta reunião da APP desdisser do que foi reportado à DGIDC, algo vai mal neste reino.

Quanto ao mais estude-se a história da língua, que muito ensinará às comunidades e estabeleça-se o Português como sólida e alargada plataforma de comunicação entre os seus falantes. Mais história, geografia e política da língua, portanto! E temos de nos habituar à variante do Português utilizada por quem pontificar em prol da lusofonia nos diferentes areópagos internacionais.  

(1) Cf. Ana Martins, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/portugues-falado-pelos-brasileiros-em-portugal/25778# [consultado em 01-08-2022]

2022.08.01 – Louro de Carvalho


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