sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Visita de Nancy Pelosi a Taiwan mostra que os EUA brincam ao fogo?

 
Desde a invasão da Ucrânia Rússia, explodiu a procura de cursos de qualificação dos taiwaneses para cenários de catástrofe, pois, há muitos anos, a ilha vive a ideia de ataque chinês a qualquer instante. Agora, o perigo é iminente e parece inevitável, já que o presidente Xi Jinping considera a reunificação uma missão histórica a cumprir, se necessário, pela força. Em 1949, quando os republicanos do Kuomintang (KMT) – ou Partido Nacionalista Chinês (PNC) – perderam a guerra civil contra os comunistas, cerca de dois milhões fugiram para Taiwan. O plano era reconquistar o país, mas a República Popular da China (RPC) tornou-se poderosa e próspera e o mundo tomou o lado de Pequim, com raras exceções.
Os peritos de defesa taiwaneses sustentam que não basta a estratégia de defesa da ilha. Há uma manta de retalhos de soldados profissionais, voluntá­rios que ajudam em tarefas como na reparação de estradas e em iniciativas civis, como a Aliança Adian­te (AA), que organiza um curso de primeiros socorros no adro de uma igreja presbiteriana. A ameaça é crescente e o Governo devia dizer o que fazer. A presidente Tsai Ing-wen reagiu às palavras de Xi, assegurando que o Partido Comunista não manda em Taiwan.
Pequim cortou comunicações com Taipé desde o início do segundo mandato de Tsai, em 2020. Só o KMT, que defende relações com a China, tem laços com o Partido Comunista Chinês (PCC). Porém, Tsai, do Partido Democrático Progressista (PDP), usa palavras duras e quer investimentos chorudos em armamento. Desde 2010, a ilha comprou €23 mil milhões de armas americanas. É a estratégia do porco-espinho que passa por voltar o maior número possível de mísseis para grandes cidades chinesas, munindo-as de aviões de combate. Se, como diz o ditado chinês, “não se pode engolir um porco-espinho”, já é possível matá-lo à fome, como contrapõe Alexander Huang, do KMT, perito em relações externas e em forças armadas taiwanesas.  
A ilha só tem gás natural liquefeito para um mês. E o abastecimento energético depende de transporte naval. “Um líder só precisa do Instagram e do Facebook para dizer ao povo: Estou convosco até ao último fôlego!” – diz Huang.  Mas as baterias dos computadores e dos telemóveis falham, se não houver energia. E a China, que aprendeu com a invasão da Ucrânia, não permitirá que surja um Zelensky. E Huang lembra que, se Pequim bloquear o estreito de Taiwan, deixarão de entrar as armas, sem necessidade de declaração de guerra. E o Exército Popular de Libertação (EPL) chinês pode fazer exercícios perto da ilha durante um mês, cortando a passagem aos navios – tática de desgaste que a RPC já usa no espaço aéreo taiwanês.
Taiwan passa do porco-espinho clássico para o porco-espinho aditivado, no dizer de Huang. Ou seja, faz preparação militar mais refinada e variada, com foco na guerra assimétrica, com mais armas defensivas, como lança-mísseis, F16, drones e minas navais. E, como diz o almirante taiwanês Li Hsi-min, na reserva, já não querem vender-lhe “armas reluzentes, só material barato”. O criador do “conceito de defesa global”, conta que este demorou a chegar aos governos de Taipé e Washington, mas “o público não percebia” e “só queria aviões F35”. É Washington quem determina a estratégia de defesa de Taiwan, sem ir além do fornecimento de armas e de patrulhas no estreito. Porém, a Administração Biden não quer autorizar a venda de tanques e de helicópteros. E, se o exército chinês penetrar as defesas da ilha, Biden já o disse três vezes, os Estados Unidos (EUA) intervirão militarmente. Os taiwaneses, sobretudo os jovens, presumiram que os americanos viriam combater os chineses. Contudo, ao verem que nenhuma tropa estrangeira está na Ucrânia, percebem que têm de cuidar de si mesmos.
É preciso treinar as Forças Armadas, mas, enquanto a Ucrânia está integrada na comunidade internacional, Taiwan só é independente na prática: sem reconhecimento internacional, não é membro da Organização das Nações Unidas (ONU), nem de alianças militares. E quem ajudar a ilha arrisca a ira de Pequim. Todavia, o Departamento de Defesa dos EUA pode contratar empresas privadas (ideia abstrusa, mas cada vez com maior viabilidade). A resistência ucraniana deu tempo à comunidade internacional para se organizar. E este não país deve aproveitar a insularidade, unir a população e confiscar recursos, como veículos e edifícios, para o esforço de guerra, podendo mesmo criar reservas estratégicas e formar coordenadores na sociedade.
A estratégia militar é consensual entre o KMT e o PDP, mas separa-os a relação com Pequim. Li pensa que a China é demonizada pela presidente Tsai. E, defendendo as boas relações com Pequim e criticando PCC, cita Theodore Roo­sevelt, Presidente dos EUA entre 1901 e 1909: “falar suavemente, mas andar com um grande pau”.
Foi neste contexto que ocorreu a curta visita de Nancy Pelosi, presidente da câmara dos representantes do Congresso dos EUA, a Taiwan, onde foi condecorada pela presidente Tsai e com quem posou para a fotografia. Dizem que foi sem o aval da Administração Biden. Contudo, fez-se porta-voz do desiderato ambíguo: “Uma só China”. Por Taipé ou por Pequim?
Como era de esperar, Pequim reagiu, condenando essa afronta dos EUA e, para mostrar que estava ativo e não podia parecer fraco diante do povo, lançou alguns mísseis sobre as águas de Taiwan, que, acidentalmente, caíram em águas da Zona Exclusiva (ZE) do Japão. Ao mesmo tempo cortou a cooperação com os EUA na defesa, na ação climática e no combate ao tráfico e de droga.
Entretanto, contam-se os efetivos das forças armadas de Pequim e os das de Taipé, com enorme vantagem para Pequim.
Teremos guerra entre Pequim e Taipé, entre Pequim e Washington, entre Pequim e Tóquio? E, se as posições se extremarem, teremos formal e efetiva nova guerra mundial?     
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Há vários nomes para referir a ilha de Taiwan, derivados dos exploradores ou governantes de cada período histórico. A designação de Formosa data de 1542, quando os portugueses avistaram a ilha principal e a chamaram Ilha Formosa. Com o tempo, esta designação substituiu todas as outras na literatura europeia e era de uso comum entre anglófonos, ainda no início do século XX.
Não obstante, no início do século XVII, a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabeleceu um posto comercial em Fort Zeelandoa (atual Anping), num banco de areia costeiro a que chamaram Tayouan, que significa estrangeiros na língua indígena siraya. Este nome sirayan era  adotado no vernáculo chinês como o do banco de areia e da região próxima (atual Tainan). A palavra moderna Taiwan deriva dessa utilização. E a área da moderna Tainan foi o primeiro assentamento de colonos ocidentais e imigrantes chineses, tornando-se um importante centro comercial e servindo como a capital da ilha até 1887. O uso do nome chinês atual foi formalizado em 1684, com o estabelecimento da Prefeitura de Taiwan. Com o seu rápido desenvolvimento, a ilha Formosa tornou-se conhecida como Taiwan.
O nome oficial do país é República da China (RC) e foi também conhecido por vários nomes ao longo da sua existência. Após o estabelecimento da RC em 1912, enquanto estava localizada no continente asiático, o governo usava a sigla China (Zhōngguó) para se referir a si próprio. Entre os anos 1950 e 1960, era comum referir-se o país como China nacionalista ou China livre, para o diferenciar de China comunista ou China vermelha. Este governo nacionalista foi membro da ONU, representando a China como um todo, até 1971, quando perdeu a vaga para a RPC. Ao longo das décadas subsequentes, a RC tornou-se conhecida como Taiwan, devido ao nome da ilha que compõe a maior parte do território de facto. E participa na maioria dos fóruns e organizações internacionais sob a designação de Taipé Chinesa, mercê da pressão diplomática da RPC. Esta designação, por exemplo, foi usada nos Jogos Olímpicos de Verão de 1984 e é utlizada como observador da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Assim, a RC é um Estado insular da Ásia Oriental, que evoluiu de regime unipartidário, com reconhecimento mundial e jurisdição plena sobre toda a China, para uma república representativa, de reconhecimento internacional apenas com competência sobre a ilha Formosa e sobre outras ilhas menores, apesar de usufruir de relações de facto com muitos países. Até 1949, foi o governo chinês da RC, reconhecido internacionalmente, um dos membros fundadores da ONU e um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da organização até ser substituído, em 1971, pela RPC. Fundada em 1912, a RC abrangia grande parte da China continental e da Mongólia. Com a rendição do Japão, no fim da Segunda Guerra Mundial, o país anexou o grupo de ilhas de Formosa e Pescadores (Penghu). Quando o  KMT perdeu a guerra civil para o PCC, em 1949, o governo da RC, de Chiang Kai-shek, transferiu-se para Taipé, capital temporária e capital da guerra, enquanto o PCC fundou a RPC na China continental. E a Formosa, a par das ilhas Penghu, Kinmen, Matsu e outras menores, tornou-se a extensão da autoridade da RC. Apesar de a sua competência abranger só esta área, no início da Guerra Fria, a RC era reconhecida por muitos países ocidentais e pela ONU como o governo legítimo da China.
Constitucionalmente, a RC não abdicou da reivindicação de ser o governo legítimo de toda a China, mas não pode prosseguir com este objetivo. Os partidos políticos têm visões diferentes a respeito da soberania de Taiwan. Os ex-presidentes Lee Teng-hui e Chen Shui-buan sustentavam que é um país soberano, separado da China continental, não havendo necessidade de uma declaração formal de independência. Contudo, o presidente Ma Ying-jeou considerou que a RC é um país soberano e independente, que inclui a China continental e a Formosa. É uma democracia semipresidencialista com sufrágio universal. O presidente é o chefe de Estado e a Assembleia Nacional é o órgão legislativo. Tida como um dos quatro tigres asiáticos, é a 21.ª maior economia do mundo. A sua indústria de tecnologia desempenha papel-chave na economia global. A RC é tida como desenvolvida, entre outros indicadores socioeconómicos, pela liberdade de imprensa, pela saúde, pela educação pública e pela liberdade económica. 
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Se a ambição da RPC não fosse a unificação do país sob a égide do PCC e se a dos EUA não fosse, em Taiwan, uma frente de controlo nas barbas do gigante chinês, não chegaríamos a este género de confronto. Bem poderíamos ter em Taiwan um país como Timor-Leste face à poderosa Indonésia. Para tanto, era preciso calar as armas e pôr a diplomacia a falar, renunciando alguns países ao seu desígnio de potência predadora. De resto, não creio que Taiwan tenha hipótese de presidir a uma unificação da China. Perdeu a guerra civil e as diplomacias adularam o vencedor.
Fala-se em direitos humanos, que a RPC não respeita. É complicado, se o sentido da vida humana é equívoco em países como a Rússia, a China e o Japão, e se o direito da força se sobrepõe à força do direito. Porque é que a ONU aceitou a substituição da RC pela RPC, quando aquela é que participou na vitória da Segunda Guerra Mundial? A História não pode dar para tudo…

2022.08.05 – Louro de Carvalho


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