domingo, 21 de agosto de 2022

A porta é estreita, mas está aberta a todos

Foi a grande asserção do padre António Alves Pinto da Costa na homilia da Igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira neste 21.º domingo do Tempo Comum no Ano C.

Na verdade, o Evangelho desta dominga (Lc 13,22-30) mostra-nos Jesus confrontado com a questão do número dos que se salvam, respondendo que a porta é estreita, mas que o banquete do Reino é para todos. Porém, não há entradas garantidas, nem reservas feitas, pelo que urge a opção pela porta estreita e o seguimento de Jesus no dom da vida e no total amor aos irmãos.  

Continuamos a percorrer o caminho de Jerusalém com Jesus e com os discípulos, sendo o interesse central do evangelista Lucas descrever, nesta viagem, os traços do crente genuíno e apontar o caminho do Reino à comunidade cristã, herdeira e paladina do projeto de Jesus.

O texto é constituído por materiais de distintas procedências, ora agrupados por razões de índole temática. Eram ditos do Senhor, proferidos em contextos distintos, sobre a entrada no Reino, que Mateus apresenta sob formas e em contextos diferentes e que Lucas aproveita para vincar a diferença entre a teologia dos judeus e a de Jesus acerca da salvação, tema nuclear da pregação do Senhor e da pregação apostólica.

Na perspetiva da catequese lucana, as palavras de Jesus são uma reflexão sobre a salvação com base numa pergunta colocada na boca de alguém: “Senhor, são poucos os que se salvam?”

A temática da salvação era muito discutida em ambiente rabínico. Os fariseus sustentavam que a salvação era reservada ao Povo eleito e só a ele; e, nos círculos apocalípticos, defendia-se que muito poucos estavam destinados à felicidade eterna. No entanto, Jesus falava de Deus como o Pai cheio de misericórdia, cuja bondade acolhia a todos, especialmente os pobres e os débeis.

Jesus não responde diretamente à pergunta, pois, mais do que falar em números a propósito da salvação, importa definir os pressupostos de pertença ao Reino e criar nos discípulos as condições para a decisão consentânea. Ora, na ótica de Jesus, entrar no Reino implica esforçar-se por “entrar pela porta estreita”. A imagem da porta estreita significa a renúncia aos fardos que engordam o homem e o impedem de viver a lógica do Reino. São eles o egoísmo, o orgulho, a riqueza, a ambição, a sede de poder e de domínio. De facto, tudo o que impede o homem de embarcar na lógica de serviço, de entrega, de amor, de partilha, de dom da vida, impede a adesão ao Reino.

Para explicitar melhor este ensinamento, o evangelista põe na boca de Jesus uma parábola em que o Reino é descrito, na linha da tradição judaica, como o banquete em que os eleitos estarão lado a lado com os patriarcas e com os profetas e em cuja mesa se sentarão todos aqueles que acolheram o convite de Jesus, aderiram ao seu projeto e aceitaram viver, no seguimento de Jesus, a vida de amor, de doação e de serviço. Não haverá critérios com base na raça, na geografia, na etnia, que barrem a alguém a entrada no banquete do Reino: o que é decisivo é a adesão a Jesus. E quem não acolher deliberadamente a proposta de Jesus ficará autoexcluído do banquete do Reino, ainda que se considere muito santo e tenha pertencido, institucionalmente, ao Povo eleito.

Jesus fala a judeus e sugere que não é pelo facto de pertencerem a Israel que têm a entrada no Reino assegurada. Porém, a parábola aplica-se aos discípulos que não queiram despojar-se do orgulho, do egoísmo, da ambição, para percorrerem, com Jesus, a via do amor e do dom da vida.

Já no texto que foi assumido como 1.ª leitura (Is 66,18-21), um profeta não identificado dá-nos conta da visão da comunidade escatológica: uma comunidade universal, a que acederão todos os povos da terra. E os pagãos serão chamados a testemunhar a Boa Nova e convidados para o serviço de Deus, sem qualquer discriminação baseada na raça, na etnia ou na origem.

Os capítulos 56-66 do livro dito de Isaías (conhecidos como Tritoisaías) são atribuídos comummente a vários autores, vinculados ao Deuteroisaías e que apresentaram a sua mensagem nos fins do século VI e princípios do século V a.C., em contexto pós-exílico.

Há, então, dentro do antigo reino de Judá, uma comunidade heterodoxa, que junta regressados do Exílio, judeus que ficaram no país após a catástrofe de 586 a.C., estrangeiros que se estabeleceram em Jerusalém durante o Exílio e outros que, após o regresso dos exilados, vieram oferecer mão-de-obra. Neste ambiente, levanta-se a questão se os estrangeiros, cada vez mais numerosos, se podem integrar no Povo de Deus. Ora, a comunidade regressada do Exílio sente-se ameaçada por inimigos internos (os que ficaram no país e não entendem o zelo dos retornados) e por inimigos externos (sobretudo os samaritanos), pelo que tende a fechar-se. E Esdras e Neemias – os líderes desta fase – favoreceram uma política xenófoba, proibindo até os casamentos mistos.

Os textos do Tritoisaías abordam o problema dos estrangeiros, manifestando uma vasta gama de atitudes, que vão desde o apelo ao aniquilamento das nações que se obstinam no mal até à admissão de estrangeiros no Povo de Deus. Contudo, domina a ótica universalista, aberta e tolerante para com os outros povos.

Todas as nações são chamadas a integrar o Povo de Deus. E é nessa perspetiva que o hagiógrafo compõe a visão de caráter escatológico que o texto em causa nos apresenta: no mundo novo que virá, todos são convocados. Primeiro, Deus virá iniciar o processo de reunião das nações; depois, dará um sinal e enviará missionários, escolhidos de entre os povos estrangeiros, para anunciarem a glória do Senhor – mesmo às nações mais distantes; em seguida, as nações responderão ao sinal e dirigir-se-ão para o monte santo de Jerusalém (Jerusalém é, na teologia judaica, o umbigo do mundo, o lugar onde Deus reside no meio do Povo e donde irromperá a salvação), trazendo como oferenda ao Senhor os israelitas dispersos no meio das nações; por fim, o Senhor escolherá de entre os que chegam – os regressados da diáspora e os pagãos que acolheram o convite do Senhor para integrar a comunidade da salvação – sacerdotes e levitas para O servirem.

Naquele contexto político, era difícil a visão tolerante sobre as outras nações. Dizer que todos os povos são convocados por Deus e que Deus a todos oferece a salvação era algo de escandaloso para judeus; é inaudito dizer que Javé escolherá de entre eles missionários, para os enviar às nações; e é inconcebível que Deus escolha, entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrem no espaço reservado do Templo (onde pagão que entrasse era réu de morte) para o serviço do Senhor.

Não obstante, não falta ao profeta a coragem e o desassombro para proclamar o desígnio do Senhor, que faz maravilhas em quem e com quem muito bem entende, cabendo-nos acolher o dom da bondade e a graça do auxílio de que necessitamos, bem como tornar-nos profetas e arautos do mesmo Senhor.

***

Talvez seja oportuno, nesta hora de refugiados e de imigrantes, reforçar a aprendizagem da tolerância, do acolhimento, do respeito pelas suas culturas, e da integração na nossa sociedade, partilhando com eles – venham de onde vierem – a nossa cultura e os nossos desígnios e aproveitando a sua capacidade de trabalho cooperante e a sua força de viver.

Por outro lado, urge precavermo-nos para que a fé pessoal e a sua expressão comunitária não definhem e não se amoldem a situações antievangélicas. Também a comunidade ou o grupo de comunidades a que se dirigia a Carta aos Hebreus perdera já o entusiasmo inicial e arrastava-se numa fé instalada, cómoda e sem grandes exigências; e, em tempo de tribulações e de perseguições, corria o risco da apostasia.

Assim, no trecho (Heb 12,5-7.11-13), assumido como 2.ª leitura da liturgia desta dominga, o hagiógrafo, tendo apelado aos crentes a que se esforçassem, como atletas, para chegarem à vitória, a exemplo de Cristo, incita-os agora a aceitar a correção e a repreensão de Deus como atos pedagógicos de Pai preocupado com a felicidade dos filhos.

A temática fundamental gravita em torno do sentido do sofrimento e das provações que os crentes têm de suportar. A mentalidade religiosa popular via no sofrimento um castigo de Deus para o pecado do homem, mas o autor da Carta aos Hebreus ensina que o sofrimento não é castigo, mas medicina e pedagogia, que Deus utiliza para nos amadurecer e ensinar a viver e nos demonstrar a sua solicitude paternal. Como sinal do amor de Deus o sofrimento é prova da nossa condição de filhos de Deus. E, além de nos mostrarem o amor de Deus, as provações aperfeiçoam-nos, transformam-nos e levam-nos a mudar a vida. Por essa transformação, fazemo-nos interiormente capazes da santidade de Deus. Por isso, quando chegam, as provações devem ser vistas como parte do projeto salvador, portadoras de paz e de salvação e motivo de agradecimento.

Citando Is 35,3, o autor da Carta aos Hebreus exorta os crentes a confiarem e a vencerem o temor que desalenta e paralisa.

Parece que nos deslocamos, em relação ao que nos é proposto pelos outros dois textos. Todavia, as ideias da Carta aos Hebreus são outra forma de abordar a questão da porta estreita, mas aberta a todos. E o crente, enfrentando com coragem os sofrimentos e as provações, vê neles sinais do amor de Deus que educa, corrige, mostra o sem sentido de certas opções e nos prepara para a vida nova do Reino. Por isso, há que ir por todo o mundo anunciar a boa nova, de modo que todos os povos louvem e aclamem o Senhor, pois é firme a sua misericórdia para connosco e a sua fidelidade permanece para sempre (cf. Salmo 117). E fica a certeza de que Jesus é o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por Ele (cf. Jo 14,6).

2022.08.21 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário