quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Pedidos de escusa de responsabilidade e os direitos dos utentes

Tem ecoado nos diversos órgãos de comunicação social o fenómeno corrente do pedido de escusa de responsabilidade por parte de muitos profissionais de saúde que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente médicos de diversas especialidades, enfermeiros e mesmo assistentes operacionais. O Presidente da República, em recente entrevista a uma jornalista da CNN Portugal, referiu que a lei prevê a escusa da responsabilidade, mas em muito poucos casos, asserção que fez eco em declarações subsequentes da Ordem dos Médicos.      

Sobre esta matéria, a DECO (Associação de Defesa do Consumidor) refere que a suposta falta de condições na prestação dos cuidados de saúde tem motivado muitos profissionais do setor a fazer pedidos de escusa de responsabilidade, mecanismo a que podem recorrer médicos ou enfermeiros e profissionais de outras áreas (por exemplo, bombeiros), sendo que tais pedidos podem ser feitos por profissionais do setor público e do setor privado.

A DECO aponta diversos pedidos de escusa de responsabilidade de enfermeiros da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santa Maria, a pretexto de não haver profissionais suficientes, de alguns médicos internos de ginecologia e de obstetrícia em todo o País, por não terem as condições necessárias no trabalho, e de alguns farmacêuticos do Instituto Português de Oncologia (IPO), por não verem garantidas as suas condições de segurança.

A questão da escusa de responsabilidade está na ordem do dia, mas não é de agora. Por exemplo, foram apresentados, em 2020, vários pedidos decorrentes da prática de atos médicos no âmbito da medicina geral e familiar, baseados no excesso de tarefas atribuídas ou no acompanhamento inadequado dos utentes com patologias devido à situação pandémica. 

O pedido de escusa de responsabilidade é um pedido unilateral efetuado por um profissional de determinada área, invocando a exclusão de responsabilidade, com base num determinado motivo, como falta de recursos humanosescassez de equipamentos ou outros fatores que possam comprometer o exercício da respetiva profissão. Tal pedido deve mencionar: a identificação do profissional; o local de trabalho; a identificação dos constrangimentos; e os riscos ou a repercussão que os constrangimentos podem causar aos utentes.

Há três tipos de responsabilidade: a disciplinar, a civil e a criminal.

No setor público, a responsabilidade disciplinar resulta da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, cuja última alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 51/2022, de 26 de julho), segundo a qual todos os trabalhadores são disciplinarmente responsáveis perante os respetivos superiores hierárquicos. Todavia, a lei prevê a exclusão da responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no cumprimento de ordens de superior hierárquico, quando antes tenha reclamado ou tenha solicitado a transmissão ou a confirmação das mesmas por escrito.

Estabelece o artigo 177.º da LGTFP:

“1. É excluída a responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, quando previamente delas tenha reclamado ou exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.

“2. Considerando ilegal a ordem ou instrução recebidas, o trabalhador faz expressamente menção desse facto ao reclamar ou ao pedir a sua transmissão ou confirmação por escrito.

“3. Quando a decisão da reclamação ou a transmissão ou confirmação da ordem ou instrução por escrito não tenham lugar dentro do tempo em que, sem prejuízo, o cumprimento destas possa ser demorado, o trabalhador comunica, também por escrito, ao seu imediato superior hierárquico, os termos exatos da ordem ou instrução recebidas e da reclamação ou do pedido formulados, bem como a não satisfação destes, executando seguidamente a ordem ou instrução.

“4. Quando a ordem ou instrução sejam dadas com menção de cumprimento imediato e sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2, a comunicação referida na parte final do número anterior é efetuada após a execução da ordem ou instrução.

“5. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime.

Também o artigo 5.º do Estatuto Disciplinar da Polícia De Segurança Pública (PSP), aprovado pela Lei n.º 37/2019, de 30 de maio estabelece

“1. É excluída a responsabilidade disciplinar dos polícias que atuem no cumprimento de ordem ou instrução emanada de superior hierárquico em matéria de serviço.

“2. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento de ordem ou instrução implique a prática de crime.

Não se vislumbra a figura de exclusão de responsabilidade disciplinar no regulamento de disciplina militar, nem no da Guarda nacional Republicana (GNR).

Já a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal dependem dos atos praticados pelo profissional. Por exemplo, a responsabilidade civil será avaliada em função da prova apresentada, pois a mesma é essencial para declarar se o profissional é ou não responsável, ou seja, se houve ou não violação das leges artis (leis da arte).

Alguns defendem que o pedido de responsabilidade releva mais no plano disciplinar e menos no plano civil ou criminal, pois a declaração isolada não retira a responsabilidade dos profissionais nestes dois últimos, pois deve ser provada. A situação não é linear, pelo que devem ser provados os condicionalismos invocados pelo profissional. Com efeito, se o profissional de saúde recorre à escusa de responsabilidade e nega qualquer tipo de responsabilidade por atos praticados num determinado período, por exemplo, devido a falta de recursos, e, se ocorrer um erro e estiver em causa a responsabilidade do profissional, será necessário provar em tribunal que, na altura em que ocorreu o erro, não havia os recursos em causa. Caso contrário, o profissional pode ser condenado, mesmo com pedido de escusa. Por isso, há quem sustente que este mecanismo é forma de pressão ou de protesto, por exemplo, quanto ao mau funcionamento de um serviço de saúde, o que pode levar, no limite, à condenação da unidade de saúde em que tal serviço é prestado.

A DECO tranquiliza a opinião pública no sentido de que os direitos dos utentes não podem ficar comprometidos, mesmo que um profissional apresente um pedido de escusa de responsabilidade, visto que o Estado continua a ser responsável perante os utentes e, em caso de erro, mantém-se o direito de indemnização. Não obstante, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, dizia que, nestas circunstâncias, os utentes continuam a pagar os erros e as insuficiências do SNS. Ora, garantir que os direitos dos utentes se mantêm inalterados, porque vigora o direito à indeminização, a ter de provar em tribunal, é ficar-se por uma garantia minimalista e, na maior parte dos casos, nula.     

A Rádio Renascença recolheu dois pontos de vista diferentes sobre se o pedido de escusa de responsabilidade isenta de indemnização ou condenação, posição que divide os especialistas. Certo é que a unidade hospitalar responde sempre ante casos de fracasso clínico que tenham desfechos mais ou menos graves. Quanto aos profissionais, a responsabilização disciplinar parece afastada, o que não se pode dizer da responsabilidade civil e criminal.

Segundo Rita Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, os profissionais, neste caso, os da saúde, têm três tipos de responsabilidade: a disciplinar, a civil e a criminal. Quer dizer que, por erro grosseiro no exercício da profissão, podem responder simultaneamente em três planos distintos. Estas declarações visam isentar os trabalhadores que pretendem dizer que, se houver erro grosseiro, é causado pela ausência total de circunstâncias. Os utentes podem reclamar, não quanto ao profissional, mas quanto à instituição onde se apresentaram. Ao hospital pode sempre ser assacada responsabilidade. Quanto ao trabalhador, a responsabilidade civil e criminal varia consoante os casos. Mediante esta declaração, a anulação da responsabilidade disciplinar é pacífica, a da civil cria dúvidas junto dos tribunais e a penal também, o que não significa que os utentes não tenham direito a ser indemnizados e que não o sejam, mas que se transfere única e exclusivamente para o hospital a responsabilidade e não para o profissional em causa.

E, mesmo sobre a responsabilidade disciplinar, a advogada explica: “Imagine que eu apresento a declaração, mas naquele turno não se verifica a falta de condições que motivou a apresentação da escusa de responsabilidade. Então aí a mesma declaração não serve.”

As decisões dos tribunais têm sido distintas. Decisões eximem a responsabilidade do profissional e decisões a mantêm a sua responsabilidade, porque o condicionalismo alegado já não se verificava. Num caso concreto, a escusa era pedida porque não havia profissionais suficientes em escala, mas, quando se deu o erro já existiam, o que acabou com a condenação do profissional, em termos criminais e civis e, obviamente, em termos disciplinares.

Tiago Leote Cravo, especialista em Direito Administrativo e Responsabilidade Civil, para quem o pedido de escusa de responsabilidade tem mais impacto na pressão do trabalhador junto da entidade patronal do que na justiça, considera que o documento pouco vale legalmente e na defesa em tribunal. Com efeito, para o especialista, “não será uma declaração destas a colocar em causa os direitos dos utentes que permanecem intocados e a responsabilidade do Estado mantém-se”, não isentando juridicamente o Estado e os profissionais. Este documento não abre portas à ausência de responsabilidade de médicos e enfermeiros. Não pode ter o valor que se pretende, pois não se pode demitir o Estado das suas obrigações e das suas responsabilidades ante os utentes, mas os médicos e os enfermeiros não podem deixar de ser responsáveis. Porém, o documento denuncia a falta de condições dos profissionais de saúde e é usado como forma de luta.

Uma coisa são as circunstâncias em que a pessoa trabalha e o profissional não é responsável pelas poucas condições que o Estado lhe dá para exercer funções. Aí pode haver responsabilidade de quem tem de decidir em relação aos meios. Mas o pedido de escusa, em si, não demonstra nada e não isenta; é mero elemento de pressão, muito importante para que se tomem decisões políticas urgentes porque se trata de “um bem imprescindível para todos que é a saúde pública”.

Para Leote Cravo, se a ausência de cuidados ou a deficiência na prestação de auxílio e cuidados aos doentes resultarem em danos, os profissionais não ficarão livres de responder em tribunal, eles e as unidades de saúde.

***

É recorrente no Estado a falta de meios e de outras condições de trabalho. Porém, interrogo-me sobre o que seria se, por exemplo, polícias, bancários, professores e assistentes operacionais (nas escolas) pedissem a exclusão de responsabilidade. E já agora as pergunta maliciosas: Porque só há pedido de escusa de responsabilidade e protestos no SNS? No setor privado, há condições de trabalho, equipamentos, falta de erros? Ou há só melhores condições de faturação?

2022.08.18 – Louro de Carvalho 

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